Citado
constantemente na jurisprudência penal brasileira, o ministro aposentado da
Suprema Corte da Argentina Eugenio Raúl Zaffaroni não economiza frases de
efeito. Não apenas pela fala simples e direta, mas pelo pensamento bem
organizado. Com opiniões fortes, o jurista argentino falou com exclusividade à
revista eletrônica Consultor Jurídico sobre questões atualíssimas na Justiça
brasileira, como a delação premiada, a figura do juiz de instrução, a escalada
do punitivismo e o combate à corrupção.
Na
Argentina, a delação premiada é traduzida pela figura do “arrependido”, segundo
o Código Penal do país. Para o ministro aposentado da Suprema Corte do país,
quem resolve colaborar com a Justiça em troca de benefícios como redução de
pena é, sem meias palavras, um um psicopata, porque “não respeita sequer as
regras da ética mafiosa para negociar a sua impunidade”.
Ainda
assim, todas as garantias desse réu precisam ser respeitadas, pois a quebra das
garantias em um processo pode coloca em risco todo procedimento. “Talvez,
respeitando as garantias, algum corrupto possa fugir ou ficar impune. Mas,
quebrando as garantias, suja-se todo o procedimento”.
Ele
conta que, na Argentina, órgãos de direitos humanos exigiram procedimentos
extraordinários e lei especial para julgar quem cometeu crimes durante a
ditadura militar argentina, nos anos 1970 e 1980, chamados por ele de
“genocidas”. Zaffaroni explica que os juízes resistiram à pressão para os
julgamentos não serem questionados depois pelos réus. “Eles foram condenados
segundo o Código Penal, o Processo Penal, por juízes naturais e com garantia de
defesa. O genocida preso não pode falar hoje que foi condenado por processo
político.”
Na
opinião do criminalista, que esteve recentemente no Brasil para participar de
um evento sobre garantia do direito de defesa organizado pelo Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil, em Brasília, para se combater a corrupção
seriamente é preciso melhorar o sistema institucional de controle, porque o
Direito Penal entra em cena quando o crime já foi cometido. Para Zaffaroni, é
mentira dizer que a corrupção vai ser derrotada com o Direito Penal, porque a
punição do corrupto não vai acabar com a prática do crime.
Leia
a entrevista:
ConJur
— Quais são os riscos das quebras das garantias constitucionais dos acusados?
Raul
Zaffaroni — Isso cria e reforça a suspeita de que houve manobra política. O
criminoso, seja um genocida ou corrupto, deve ser condenado, respeitando-se as
garantias para que não surjam dúvidas. Hoje, ninguém consegue desviar milhões e
milhões em dinheiro, transferir grandes quantias em dólares sem deixar marcas,
é impossível. Não é preciso meios extraordinários nem de quebra de garantias
para punir quem cometeu crimes.
ConJur
— Como o senhor vê o que está acontecendo no Brasil atualmente em relação à
operação “lava jato”? Aponta-se que algumas garantias processuais não estão
sendo respeitadas.
Raul
Zaffaroni — É um erro, porque vai ficar a dúvida sobre a clareza do julgamento.
Talvez, respeitando as garantias, algum corrupto possa fugir ou ficar impune.
Mas, quebrando as garantias, suja-se todo o procedimento, esse é o grande
problema.
ConJur
— A pressão é grande para que elas sejam quebradas, não?
Raul
Zaffaroni — Na Argentina, alguns órgãos de direitos humanos exigiam
procedimentos extraordinários e lei especial para julgar os genocidas da
ditadura militar. Defendemos que não poderíamos fazer isso. Eles foram
condenados segundo o Código Penal, o Processo Penal, por juízes naturais e com
garantia de defesa. O genocida preso não pode falar hoje que foi condenado por
processo político.
ConJur
— Reduções ou até esquecimento dos direitos individuais são justificáveis para
combater a corrupção?
Raul
Zaffaroni — Para combater a corrupção seriamente é preciso antes melhorar o
sistema institucional de controle porque o Direito Penal sempre chega tarde,
quando o dano já está feito. É como dizer que punindo o genocida, evita-se o
genocídio. É justo punir o genocida e o corrupto, mas não vai prevenir a
corrupção nem evitar o genocídio. É mentira dizer que a corrupção vai ser
derrotada com o Direito Penal.
ConJur
— Qual é a opinião do senhor sobre a delação premiada? A figura do arrependido,
como é chamada na Argentina.
Raul
Zaffaroni — Não é só um arrependido, é um criminoso relevante, porque quem faz
a delação está no núcleo do esquema criminoso, não é um marginal que assinou
alguma coisa ou que levou uma malinha. É também psicopata, porque não respeita
sequer as regras da ética mafiosa para negociar a sua impunidade em troca de
informações que não são confiáveis.
ConJur
— Existe atualmente uma escalada de punitivismo?
Raul
Zaffaroni — A escalada tem um pouco de terrorismo midiático e corresponde a um
modelo de sociedade. Se quisermos ter uma sociedade 30% incluída e 70%
excluída, precisamos punir mais, para conter os 70% que ficam de fora. Se nós
pensarmos em uma sociedade mais ou menos inclusiva, com Estado de bem estar
social, outro grau de punitivismo é aplicado.
ConJur
— O Processo Penal perdeu legitimidade?
Raul
Zaffaroni — Ele tem alguns problemas. Na Argentina, o Processo Penal permite
detenções preventivas longas e possibilitando uma pena antecipada. A maioria
dos presos está nessa situação. Não são condenados. Nesse sentido, acho que
perdeu legitimidade. Um novo Código de Processo Penal argentino começará a
valer no começo do próximo ano, talvez esses problemas sejam resolvidos. Existe
hoje o juiz instrutor, que é uma figura fascista, napoleônica.
ConJur
— Por quê?
Raul
Zaffaroni — Alonga a instrução por cinco, seis anos. É incrível, mas acontece.
Mesmo que o sujeito não esteja preso, estar sob processo durante muito tempo é
um castigo. Ele não pode sair do país, cada vez que quiser, tem que pedir
permissão. É um absurdo.
ConJur
— O juiz que participa da instrução pode participar do próprio julgamento do
caso ?
Raul
Zaffaroni — Não, porque está apaixonado pelo seu trabalho. Ele fez a
investigação, juntou as provas, tem a convicção de que o sujeito é um
assassino, não pode julgá-lo de forma neutra. A instrução é um trabalho de
paciência, é natural apaixonar-se pelo trabalho feito, pela obra realizada.
ConJur
— Por que surgem juízes justiceiros e midiáticos?
Raul
Zaffaroni — Pode ser uma patologia. Não são loucos, mas neuróticos. São
atraídos pela possibilidade de fama, de entrar para a política, fazer
discursos.
ConJur
— É bom para a democracia o Judiciário ser protagonista?
Raul
Zaffaroni — O Judiciário sempre é protagonista porque é um ramo do Estado. Cada
julgamento, cada sentença é um ato de governo. O Judiciário é político nesse
sentido. Outra coisa é partidarização, quando também assume uma atitude
opositora ao governo ou até golpista. E tem também o problema do juiz que quer
virar estrela. O Judiciário é como o bandeirinha e juiz em uma partida de
futebol. Não é jogador, mas necessário, porque sem eles não há jogo.
ConJur
— O Direito Penal do Inimigo tem ganhado espaço nos tribunais?
Raul
Zaffaroni — Sempre temos aplicado. O inimigo é encontrado quando se vai à
cadeia. A seletividade do sistema penal atinge as classes sociais mais
vulneráveis, geralmente os presos são os mais pobres, que têm menos tempo de
estudo e, portanto, praticam os crimes mais grosseiros, que são mais fáceis de
ser descobertos. O sistema penal é seletivo sempre, é estrutural, no Brasil,
Argentina ou China, no mundo todo. Fala-se muito em responsabilidade penal das
pessoas jurídicas. É um risco, porque vai acabar castigando apenas a pequena e
média empresa, o pequeno e médio empreendimento, que é mais vulnerável.
ConJur
— Porque as grandes empresas vão ter condições de se defender...
Raul
Zaffaroni — Os maiores são invulneráveis. Podemos estar criando um filtro que
vai destruir os pequenos e médios empreendimentos, que são os maiores
empregadores.
ConJur
— A sociedade contemporânea tem vontade de vingança?
Raul
Zaffaroni — O poder punitivo e o sistema penal canalizam a vingança, que faz
parte da condição humana. A mídia, porém, exacerba a vingança, alimenta esse
desejo. Os meios de comunicação monopolizados fazem parte de um modelo de
sociedade excludente. Não estou falando de jornal, porque a cada dia lê-se
menos. Falo da televisão, o grande monopólio televisivo, seja Rede Globo,
Clarín, Azteca ou Televisa, que faz parte do capital transnacional pelo volume
dos seus negócios. Esse modelo precisa ter um sistema punitivo forte como forma
de contenção dos excluídos. Os meios de comunicação não têm culpa, o culpado é
o Estado, que permite a formação dos monopólios.
ConJur
— O senhor poderia fazer uma comparação em relação a criminalidade na Argentina
e no Brasil?
Raul
Zaffaroni — A realidade argentina de criminalidade violenta é menor, com um
índice de homicídios de 7,5 por 100 mil. Mas há pequenas semelhanças, como a
concentração de homicídios nas favelas, “villas misérias” como são chamadas lá,
embora haja menos favelados do que no Brasil.
ConJur
— O discurso hermético de juízes e advogados esconde a falta de conhecimento
técnico ou é intencional para não se comunicar com a sociedade?
Raul
Zaffaroni — É um dialeto cheio de eufemismos, as coisas mudam de nome. Algumas
pessoas não falam assim por má vontade, aprenderam a falar esse dialeto e não
sabem se comunicar de modo diferente. Outras aproveitam o dialeto para ocultar
coisas. No tempo da inquisição, registrava-se nas atas que a declaração havia
sido espontânea, mas ocultavam que tinha sido feita depois de tortura. Eu já
invalidei declarações policiais que diziam “num espontâneo afã por confessar”.
Era uma fórmula usada pela polícia na época da ditadura. A pessoa fez a
declaração porque foi violentada.
ConJur
— O que o senhor acha da redução da maioridade penal?
Raul
Zaffaroni — Na Argentina querem reduzir de 16 anos para 14. Brinco que deve
valer também para fetos, porque alguns são agressivos. Em Buenos Aires, há uma
incidência baixa de homicídios cometidos por menores de 16 anos. É
absolutamente irrelevante, mas existe a campanha pela redução. O regime militar
reduziu a maioridade penal para 14 anos em 1976 e em 1980 teve que voltar
atrás.
Por
Marcelo Galli. Conjur
http://www.conjur.com.br/2015-nov-01/entrevista-raul-zaffaroni-jurista-ministro-aposentado-argentino?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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