Em quatro anos e dez meses,
o ministro João Otávio de Noronha será presidente do Superior Tribunal de Justiça.
Dos mais antigos integrantes da corte, ele passou os últimos anos em posições
privilegiadas de observar e interferir no processo de formação de juízes do
Brasil.
O diretor da Escola de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) é crítico: “Aqui você faz uma
prova de decoreba, um teste psicotécnico, toma posse do cargo, faz um curso de
um mês e começa a trabalhar”, afirma, em entrevista à ConJur. Noronha esteve na
França para acompanhar o sistema de Justiça e ver como são formados os
magistrados de lá. E tirou alguns exemplos, como um curso de 27 meses que faz
parte do concurso. Quem não for aprovado ao final do período, não pode ser
juiz.
“Como é que um jovem de 24
anos que nunca nem namorada teve direito vai julgar causas de Direito de
Família? Que experiência ele tem? Como ele pode sentar com a senhora idosa que
está separando, com problemas com os filhos e o marido, e conciliar?”, questiona.
“O jovem juiz precisa ser preparado, aprender a medir as repercussões de suas
decisões no seio social, estudar psicologia judiciária.”
Noronha também trata de uma
realidade já incontornável no Brasil. Ao juiz não basta conhecer Direito, ter
cultura jurídica e domínio da técnica judiciária. “É preciso ser um líder”,
vaticina. O ministro conta que o juiz precisa estudar administração e saber
administrar uma vara. Segundo ele, muitas vezes a produtividade é afetada por
problemas de relacionamento entre o magistrado e os funcionários, ou porque ele
trata mal os servidores e passa a ser boicotado.
O ministro também acaba de
terminar seu mandato como ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Durante as
eleições presidenciais de 2014, foi corregedor-geral Eleitoral. Em outras
palavras, o "xerife" do processo eleitoral.
A conclusão a que Noronha
chega é que o maior problema dos partidos é a falta de organização, o que se
refle em contas mal prestadas.
Ele concorda com a ideia de
que as eleições estão cada vez mais judicializadas. “Todo mundo que perde quer
ganhar no tapetão.” Mas também observa o outro lado da mesma moeda: “A
influência do poder econômico e do poder político é altamente questionada, e
macula a vontade popular. Se a Dilma tivesse dito, por exemplo, que não teria
dinheiro para aumentar — como ela já deveria saber — o Bolsa Família, e não
teria dinheiro para o crédito educacional... Se tivesse dito toda a verdade, o
eleitor teria votado nela, na mesma quantidade? Eu não acredito. E isso é o
quê? É abuso de poder político”.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor esteve na
França, como diretor das escolas de magistratura. Que tipo de comparação é
possível fazer entre os juízes de lá e os brasileiros?
João Otávio de Noronha —
Estive na França examinando seu sistema de recrutamento de juízes. No Brasil,
você faz uma prova de decoreba, depois um psicotécnico, toma posse, faz um
curso de um mês e começa a trabalhar, julgando causas com plena autonomia, que
importam, com repercussão no patrimônio e na liberdade do seu semelhante. Na
França é o contrário, o juiz passa 27 meses na escola da magistratura, mais de
dois anos. Mas não fica estudando Direito Civil e Direito Constitucional, ele
fica aprendendo a ser juiz. Estuda psicologia judiciária.
ConJur — O juiz entra na
carreira mais preparado para o trabalho que fará, então.
Noronha — O juiz de 22, 23, 24, 25 anos que passa no
concurso não tem uma experiência de vida, nem é preparado para ser juiz. Como é
que um jovem de 24 anos que nunca nem namorada teve direito vai julgar causas
de família? Que experiência ele tem? Como ele pode sentar com a senhora idosa
que está separando, com problemas com os filhos e o marido, e conciliar? Ele
precisa ser formado para isso, precisa ser preparado para fazer a mediação. Não
cabe ao juiz maltratar o réu, o réu tem um mínimo de dignidade. Precisamos
aprender que a pena tem uma função reparativa e não só punitiva. Estamos
tomando a pena no Brasil hoje como um instrumento de vingança institucional.
ConJur — O que o juiz brasileiro
precisa aprender?
Noronha — Precisamos
preparar o jovem para lidar com a administração da vara. Às vezes ele não
produz porque administra mal, trata mal seus funcionários e é boicotado pela
sua equipe. Ele precisa aprender a ser líder, a decidir com segurança. O jovem
precisa ser preparado, estudar psicologia judiciária, aprender a medir a
repercussão das suas decisões no seio social. Você às vezes, por uma
formalidade, tira uma criança de um lar e põe num abrigo, tenho visto muito
isso.Temos que preparar o jovem a ser juiz, e isso requer um espaço de tempo e
requer investimento, precisamos aprender a investir em formação. E a Enfam é
importante para direcionar e acompanhar a formação dos magistrados
recém-ingressos na carreira, de forma a garantir-lhes uma formação profissional
baseada numa abordagem humanística.
ConJur — Hoje não se investe
em formação?
Noronha — O Brasil não tem
essa paciência. Os tribunais querem, logo que o juiz é aprovado, colocá-lo numa
vara do interior. É pior ficar sem juiz ou colocar um juiz mal preparado, que
vai assumir a comarca e criar mais problemas do que resolver, e desmoralizar a
própria instituição? Essa é a nossa grande preocupação: formar um juiz para que
ele possa entregar à sociedade uma prestação jurisdicional não apenas justa,
mas adequada.
ConJur — O que deve ser
feito para se chegar a isso? Basta mexer no concurso?
Noronha — Precisamos mexer
no concurso, mas nós temos trabalhado a formação. Os juízes hoje já ficam 420
horas [em curso], já ampliamos. Antes ficavam uma semana, depois passou para um
mês e agora ele fica quatro meses estudando. Mas é pouco, precisamos ampliar,
criar a verdadeira universidade da magistratura, onde o cidadão vai aprender a
lidar com tudo, a julgar todos os tipos de causa, de empresa, de família, de
sucessão.
ConJur — O juiz brasileiro é
preparado?
Noronha — De uma certa
forma, sim. Muito pelo seu talento, pela sua dedicação. Não falta cultura
jurídica, mas de preparação de lidar como juiz. Decidir é uma arte, é um
sacerdócio, você tem rituais, tem que ter psicologia. Não pode ofender o réu,
você tem que tratar bem os advogados. Quantas brigas, quantos atritos têm entre
juízes e advogados e promotor? Isso é falta de preparação. O juiz tem que se
tornar um líder, tem que administrar a sua audiência, administrar o seu
gabinete, lidar com as pessoas, relacionar com a sociedade. E as atividades da
Enfam possibilitam ao juiz entender que é um agente político capaz de construir
o modelo de justiça que os brasileiros anseiam. Uma formação mais completa
possibilita ao magistrado refletir sobre as consequências de suas decisões na
sociedade.
ConJur — Mas ainda existe a
mentalidade de que o juiz não precisa se preocupar com a sentença tecnicamente
perfeita, porque há três instâncias para corrigir...
Noronha — É isso o que
queremos mudar. O juiz não tem que se desincumbir do processo, ele tem que
entregar uma prestação jurisdicional justa, proferir uma sentença que resolva o
conflito, que apazigue as partes. É um ato de irresponsabilidade julgar
pensando que a instância superior vai reformar. Fica todo mundo fugindo da sua
obrigação, que é entregar uma prestação jurisdicional justa. Isso é uma
molecagem, um mal a ser combatido. O juiz tem que sentir que é importante. Ele
decide, tem o poder de contribuir para a formação de uma pauta social. A
sociedade se comporta e se pauta conforme as decisões judiciais, e ele tem que
ser o primeiro agente disso, a dar exemplo nas suas decisões.
ConJur — O senhor concorda
com a criação de filtros de acesso ao STJ?
Noronha — Plenamente. No
mundo inteiro, os tribunais superiores têm crivo. Toda corte superior deve
apenas julgar questões relevantes, e não se congestionar de processos e ficar
se desincumbindo julgamento de causas repetitivas. Aqui devemos dar a última
palavra na interpretação da lei federal. Temos que ter tempo para elaborar boas
decisões e interpretar, e na medida em que a gente fica julgando, recebendo 1,5
mil, 2 mil processos todo o mês, não temos tempo para decidir com maturidade e
com a análise que o jurisdicionado espera. Por isso precisamos de um filtro. O
mundo inteiro tem. Não existe tribunal superior em que chegue a quantidade de
processos que chega aqui.
ConJur — E esse filtro seria
a partir do quê?
Noronha — Primeiro seria um
procedimento de arguição de relevância, como tem no Supremo. Há uma PEC no
Congresso sobre isso. Depois, por meio da inibição de alguns recursos
desnecessários. E terceiro, tornar irrecorríveis decisões que já estão em
conformidade com a orientação do STJ.
ConJur — Essa formulação
exigiria mais dos juízes das instâncias inferiores, e o senhor mesmo aponta que
há falta de preparo na magistratura.
Noronha — Há certa falta de
preparo no inicio, mas muitos conseguem se superar em tempo e ser bons juízes.
Mas, como o sujeito não foi formado adequadamente, aqueles que não têm vocação
e nem tanto preparo técnico vão ser juízes ruins a vida inteira, e a nossa
finalidade é não deixar que o juiz ruim entre no quadro da magistratura. Ou
seja, é o concurso avaliá-lo em dois anos, e se ver que ele não tem pendor, ele
sai.
ConJur — A magistratura
costuma apontar que o CNJ tem metas ambiciosas de produtividade. Dá pra
conciliar celeridade e qualidade?
Noronha — Não sei, mas essa
obsessão por produtividade não pode ser tão grande como se tem visto. Se eu,
aqui no tribunal, parar e for julgar só
agravo, baixo meu número de processos. Só que os processos difíceis, os que a
parte está esperando há muito tempo, vão ficar parados. Eu posso julgar 100
processos mais rápido que um só, mas esse um
está aqui há muito mais tempo que os outros. É razoável não julgá-lo?
Então, é necessário compatibilizar qualidade com velocidade, com a
produtividade, só que tem que lembrar: no gabinete entram processos fáceis
e repetitivos e processos difíceis, que
têm que ter a mesma assistência que os fáceis. Por isso eu tenho muito receio e
muita desconfiança do juiz muito produtivo. Não é um critério fácil de se
aferir, precisava olhar cada gabinete para ver o que chega e o que sai
qualitativamente.
ConJur — O que o senhor acha
da transferência da análise da admissibilidade para as instâncias superiores?
Noronha — É inviável. É uma
ingenuidade de quem defende essa tese que nós podemos acabar com a duplicidade
do juízo de admissibilidade. É preciso dizer que, dos recursos especiais
indeferidos nos tribunais regionais federais e nos tribunais de Justiça, apenas
a metade entra com agravo para cá. Então, já segura a metade, quem vê que não
tem chance não vem. O ganho de recebermos a metade do que manda cada estado é
não ver todos de uma vez só. Também não adianta aumentar o tamanho da corte.
Quanto maior um tribunal, mais difícil é a unificação da jurisprudência. A
Corte de Cassação da Itália dobrou o número de juízes e não aumentou a
produtividade. Então, temos que fazer o quê? Precisamos aprender a nos
comportar conforme a interpretação da lei.
ConJur — E a admissibilidade
do que é agravado é grande?
Noronha — É baixa. Do que
sobe por meio de agravo, julgamos não mais que 10%.
ConJur — Entrando agora nas
questões eleitorais, o senhor acha que a Justiça Eleitoral tutela demais a
vontade do eleitor?
Noronha — Há realmente um
excesso de tutela. A lei eleitoral regula o tamanho da propaganda, o tamanho do
outdoor. Isso não era questão de ser regulada pela Justiça Eleitoral, cria uma
burocracia, uma intervenção demasiada. Mas, afora isso, o que sobra de regulamento
é muito importante para o TSE. A Justiça Eleitoral garante eleições limpas e
transparentes, a urna eletrônica é um sucesso. Houve impugnação e não se provou
nada. As impugnações dos registros têm tido julgamentos rápidos, veja quantos
candidatos fichas-suja foram eliminados do sistema. A Justiça Eleitoral tem
conseguido purificar um pouco o sistema eleitoral.
ConJur — A purificação das
eleições não é, ou deveria ser, tarefa do eleitor?
Noronha — Não. Uma coisa é o
eleitor votar, e a gente nunca despreza a vontade do eleitor. Mas e quando o
eleitor é tapeado? Quando se utiliza dinheiro público extorquido para prometer
algo que sabe que não vai realizar? Você acha que o eleitor sabia que o
dinheiro da Petrobras estava financiando campanha? Se o eleitor soubesse, teria
votado naqueles candidatos? É preciso alguém para zelar pela vontade do
eleitor.
ConJur — E como é que se faz
isso?
Noronha — Eliminando do
sistema todos aqueles que burlaram o eleitor. A finalidade da Justiça Eleitoral
é exatamente fazer prevalecer o voto popular consciente e combater as fraudes
eleitorais. Paralelo a isso, temos a corrupção. As empresas doam para depois
ganhar licitações, para renovar contratos, se metem em dívida para doar para a
campanha. Isso é um absurdo que tem que ser banido, e está agora a nu no
Brasil, o que é muito bom. O país está vendo o que estava atrás dessas obras,
desse crescimento exagerado da Petrobras.
ConJur — O fim do financiamento eleitoral por empresas
ajuda a combater a corrupção nas eleições?
Noronha — Não. Sou favorável
ao financiamento empresarial, mas que se controle para evitar a lavagem. O pior
é o caixa dois. Vai permitir financiamento público. Os funcionários públicos
podem doar? Olha o PT, que tem um dízimo aí. Você acha o dízimo legal?
ConJur — Como assim?
Noronha — Criam cargos em
comissão para aumentar a renda do partido, e o partido que está no poder sempre
vai dar emprego para ter renda e aumentar. Por isso eu não acredito que a
proibição do financiamento eleitoral vá resolver. O fator da corrupção não é
porque tem doação de empresas privadas, é as pessoas corruptas estarem no
sistema. Hoje eu duvido que as grandes construtoras vão fazer o que fizeram.
ConJur — Se desse
transparência ao processo, talvez fosse mais efetivo, não é?
Noronha — Se você permitir a
doação de pessoa jurídica, mas com site aberto, dizendo quem doou, quanto doou
e para quem, e o partido disser para quem deu e de onde veio o dinheiro,
ajudaria muito. Porque o eleitor saberá que o deputado está votando favorável a
essa ou aquela empresa por ter recebido tanto na campanha dele.
ConJur — Existem outras
ideias além do afastamento das empresas, como a regulamentação do lobby, ou
proibir empresas que doaram para eleições de participar de licitações. Isso
resolveria?
João Otávio de Noronha —
Não. Porque aí estaríamos pressupondo que toda licitação é marcada e
fraudulenta. Temos que corrigir o processo de licitação. Que se faça um
processo de licitação sério, que o tribunal de contas fiscalize. Se a licitação
for séria, acabou o problema. Não importa que a empresa tenha doado ou não. O
Estado interferir na relação não resolve, proibir não adianta. Se a empresa é
proibida de participar, bota um testa de ferro, por exemplo.
ConJur — As eleições estão
ficando mais judicializados?
Noronha — Muito! Eu nunca vi
um índice tão alto de judicialização como o das duas últimas eleições. Isso não
é bom, todo mundo que perde quer ganhar no tapetão. Outros vêm [ao tribunal]
com razão. A influência do poder econômico e do poder político é altamente
questionada, e macula a vontade popular. Se a Dilma tivesse dito, por exemplo,
que não teria dinheiro para aumentar — como ela já deveria saber — o Bolsa
Família, e não teria dinheiro para o crédito educacional... Se tivesse dito
toda a verdade, o eleitor teria votado nela, na mesma quantidade? Eu não
acredito. E isso é abuso de poder político.
ConJur — Da experiência que
o senhor teve como corregedor eleitoral, o que aponta como a maior dificuldade
dos partidos?
Noronha — É a má
organização. Muitos têm dificuldades de prestar contas porque são
desorganizados. Outra dificuldade é legalizar dinheiro que, como a gente viu,
entrou de formas escusas.
Fonte. Conjur.
Por Pedro Canário
http://www.conjur.com.br/2015-out-25/entrevista-joao-otavio-noronha-ministro-stj
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