O
tema toca a mais extrema e sombria realidade da alienação parental — as falsas
denúncias de abuso sexual. E, como tenho feito neste espaço da ConJur, o
objetivo é o de buscar algum esclarecimento, com os aportes da psicanálise, da
(in)compreensão dos processos familiares levados ao Judiciário. São
intrincadas, no limiar entre objetividade e subjetividade, as questões que
envolvem o Direito de Família e seus operadores, sobretudo nestes casos.
As
denúncias de abuso sexual têm um efeito bombástico que precisa ser compreendido
por parte daqueles que devem interpretá-las e tomar medidas de proteção e de
reequilíbrio do sistema familiar. Sejam aquelas falsas ou verdadeiras, a
realidade é uma só: a de violência nas relações familiares. E a esta não se
pode fazer eco.
O
foco aqui é o das denúncias falsas de abuso sexual mas, por chocante que o
seja, elas sempre guardam um tanto de verdade em relação a desejos e fantasias
infantis que, de alguma forma, povoam a mente inconsciente de todos nós. E
disto decorre, em parte, a grande dificuldade em sua abordagem.
A
psicanálise enfrentou em sua origem o tabu da sexualidade com a candente
questão em, justamente, diferenciar o que seria o trauma devido à sedução
sexual por familiares, uma questão da realidade objetiva, do que seriam
fantasias inconscientes. Estas foram descobertas por Freud por meio do método
psicanalítico. Verificou ele que, a despeito dos relatos, não necessariamente
teria havido um abuso sexual, uma sedução, e sim que tais fantasias emergiriam
como sintomas, levando a confundir a realidade subjetiva com a ocorrência de
acontecimentos objetivos.
A
questão é atual: teria ocorrido um abuso, que fere a lei fundamental de
constituição da família — o tabu do incesto — ou a crença em sua ocorrência
seria produto de um sintoma de um transtorno mental, de tentativa de alienação
e mesmo de um erro de avaliação? O resultado de tais indagações foi, à época, o
descortinar da epistemologia psicanalítica sem, obviamente, desconsiderar a
realidade objetiva. E é neste terreno pantanoso, da realidade e da fantasia, da
objetividade e da subjetividade que caminha a investigação psicanalítica.
Na
situação em pauta é de todo evidente a necessidade em compreender as denúncias
com o instrumental epistemológico aportado pela psicanálise. Neste sentido é
que trago aqui estas breves considerações.
Os
impasses levados ao Judiciário são vistos pela psicanálise como sintomas de
relações disfuncionais, i.e., os integrantes da família não estão podendo
exercer suas funções, ocupar seus lugares — um desequilíbrio quanto ao
exercício do Poder Familiar. Os vínculos familiares são formados por afetos que
têm qualidades de agregar, no caso dos sentimentos de amor, e qualidades de
desagregar, no caso dos sentimentos de agressividade. Os sentimentos de amor
promovem o conhecimento de si e do outro, e a empatia. Já os sentimentos de
agressividade e ódio desagregam e promovem o desconhecimento do outro e de si
próprio.
Certo
é que amor e ódio não existem puros, mas sempre em combinação, dosados em
diferentes proporções. Mas, quando muito desbalanceados para o lado da
agressividade, não só são afetos que desagregam, e que promovem o
desconhecimento, como são afetos que pervertem as relações familiares. Relações
que devem pautar-se pelo cuidado sobretudo com os mais vulneráveis, inclusive
quanto à expressão da sexualidade adulta.
A
lei fundamental de constituição da família, o que define o que é proibido e o
que é permitido, é o tabu do incesto. Ela marca a diferença entre gerações e as
possibilidades e impossibilidades quanto à expressão dos afetos e manifestações
da sexualidade. Uma lei que define o estado — de pai, de mãe, de filho — e que
delimita as condições para o livre desenvolvimento da personalidade e para o
exercício dos direitos da personalidade — as funções materna, paterna,
parental, filial, fraterna. Uma diferença objetiva quanto ao exercício das
funções e essencial para a constituição da personalidade.
No
entanto, antes de se chegar ao estágio adulto de clareza e objetividade quanto
à diferença entre gerações, e entre o que é permitido e o que é proibido, há a
infância e sua alta dose de subjetividade. A mente infantil é povoada de
legítimas fantasias, ternamente românticas
em formar um par com a mãe e/ou com o pai, e surpreendentemente agressivas em
ao outro excluir. Fantasias que são reprimidas já muito cedo, no processo de
formação da mente, mas que habitam de forma latente o inconsciente de todos
nós. Fantasias que podem estar em camadas mais ou menos profundas do psiquismo,
mas que são susceptíveis de emergir em crises quando, então, pode se perder a
diferença entre o que é fantasia e o que é realidade, entre o que é subjetivo e
o que é objetivo, entre o adulto e a criança.
E
a questão é ainda mais complexa pois as situações de separação e crise familiar
podem ser particularmente férteis à confusão entre a realidade e as fantasias
mais próprias à infância. Isso porque, neste contexto, em que os lugares e
funções dos adultos devem ser redefinidos, é até certo ponto natural que
emerjam nestes fragilidades mais próprias à infância, somadas a sentimentos de
exclusão e mágoa. Os lugares de adultos e crianças, até então relativamente
claros, podem ser confundidos. Não raro os adultos deslocam afetos para os
filhos que, transitoriamente, ocupam amorosamente o lugar do par perdido ou o
lugar de rival para aquele que se sente excluído.
Neste
contexto, podem ter lugar as mais diversas fantasias. Muitas vezes, se aqueles
afetos deslocados para a relação com os filhos estiverem acompanhados de
fantasias relativas à sexualidade adulta, o que podia ser apenas ciúmes,
ressentimento e exclusão, para citar alguns sentimentos, pode ser confundido
com manifestações reais, e não em fantasia, da sexualidade adulta.
Assim,
por exemplo, meros cuidados com a higiene são transformados em denúncias de
aproximação de cunho sexual, verbalizações das crianças, absolutamente
naturais, de desejos em formar um par romântico com um dos genitores podem ser
tomadas como relatos de fatos acontecidos, ecoando no que seria a porção
inconsciente infantil que habita a mente dos adultos.
Lamentavelmente,
não raro tais fantasias fazem eco nas fantasias inconscientes dos
profissionais. Nessa situação, pode se perder a questão central em diferenciar
a realidade objetiva da subjetividade e da fantasia, e a denúncia pode ser
tomada de pronto como verdadeira.
As
denúncias de abuso sexual causam comoção, fazem eco àquelas fantasias latentes
em todos nós causando horror e, muitas vezes, reações descontroladas e
violentas. O primeiro impulso deve ser o de proteção, mas que, no mais das
vezes, fere a presunção de inocência com as medidas de afastamento daquele que
foi identificado como abusador o que, de alguma forma, legitima a denúncia.
A
necessária parcimônia demanda que, instalada a questão, cabe apurar se há
confusão entre objetividade e subjetividade, entre realidade e fantasia, por
difícil que isto possa ser. Como dito, as denúncias de abuso sexual, sejam
falsas ou verdadeiras, denotam vínculos pautados pela violência. E a estes os
operadores do direito não podem fazer eco, cabendo-lhes, pelo contrário, com a
colaboração dos operadores da saúde, resgatar o conhecimento do contexto e das
relações para, então, buscar meios de restabelecer o exercício das funções.
Aqueles
que, erroneamente, interpretam a situação, colocando-se rapidamente em defesa
da criança e da infância, sem questionar e ter consciência das dificuldades e
possibilidades de erros de avaliação, e mesmo da violência e da agressividade
neles contida, em muito contribuem para a alienação não só do adulto alvo da
falsa denúncia.
Nos
casos em questão não há atalhos dados pela mera objetividade. A eleição de tais
caminhos pode levar à desagregação, ao desconhecimento e a temíveis
curto-circuitos, alienando-se a própria subjetividade — justamente o que nos
faz humanos.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2015-out-18/processo-familiar-direito-atentar-falsas-denuncias-abuso-sexual?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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