Juristas
brasileiros enviaram perguntas sobre a 'lava-jato' a Raúl Zaffaroni, o maior
penalista da América Latina, que criticou as delações premiadas.
Por
Martín Granovsky, de Buenos Aires - Especial para Carta Maior
Sua
casa, no bairro de Flores, setor de classe média, tranquilo, a meia hora do
centro de Buenos Aires, parece uma velha casona da Toscana. Sua mesa de
trabalho fica no meio de uma sala enorme. Tem as dimensões de uma biblioteca
pública. Perto das estantes, pode-se ver belas peças de artesanato
latino-americanas, como um retábulo peruano de Ayacucho. Sobre essa mesa, ao
lado do computador, uma pilha de livros de Direito, muitos deles em alemão,
sobre a tipologia dos delitos políticos e econômicos, ou sobre o nazismo. Raúl
Zaffaroni completou 75 anos no passado dia 7 de janeiro. Ao assumir como juiz
da Corte Suprema da Argentina, em 2003, indicado pelo presidente Néstor
Kirchner, prometeu se aposentar quando alcançasse essa idade. Honrou sua
promessa. Mas Zaffaroni, um dos penalistas de maior prestígio no mundo, não se
distanciou do mundo. Viaja, escreve, dá palestras, recebe doutorados honoris
causa, estuda, dá aulas em universidades públicas da Grande Buenos Aires.
Também participa da discussão pública sobre os acontecimentos argentinos e
latino-americanos. Nesta entrevista para Carta Maior ele demonstra seu vigor
intacto, respondendo perguntas dos jornalistas e inquietudes levantadas por
importantes juristas do Brasil.
Carta Maior: Tarso Genro,
ex-ministro da Justiça no governo de Lula e ex-governador do Rio Grande do Sul,
pergunta o que acontece com o Estado de Direito quando a grande imprensa influi
tanto no processo penal, como vem sucedendo ultimamente.
Penso
que a invenção da realidade por parte dos meios de comunicação, especialmente
os televisivos, está afetando a base do Estado de Direito. E cria um perigo
grave para a sua sobrevivência.
Carta Maior: Transmito a
você uma pergunta do Professor da UERJ, Juarez Estevam Xavier Tavares. Que
medidas podem ser tomadas para diminuir a irracionalidade do poder punitivo e
evitar a destruição do Estado de Direito?
A
primeira medida tem que ser a proibição constitucional dos monopólios ou
oligopólios televisivos. Sem pluralidade midiática não podemos ter democracia.
O que os meios monopólios ou oligopólios estão fazendo na América Latina é
trágico. Nos países onde existem altos níveis de violência letal, eles a
naturalizam. Sua proposta se reduz a atentar contra as garantias individuais.
Nos países onde a letalidade é baixa, eles buscam exacerbá-la. Clamam pela
criação de um aparato punitivo altamente repressivo e, definitivamente, também
letal.
Carta Maior: É a vez do
Professor da USP, Alysson Leandro Mascaro. Os meios de comunicação de massa
cada vez mais formam e moldam perspectivas da compreensão do jurista. Em face
disso, qual sua leitura sobre o horizonte ideológico do jurista hoje? O mesmo
do capital e dos grandes meios de comunicação de massa? Qual sua percepção da
ideologia como constituinte do afazer do jurista na atualidade?
Não
tenho a menor dúvida de que a Televisa, no México, ou a Rede Globo, no Brasil,
entre outros exemplos, são conglomerados, formam parte indissociável do capital
financeiro transnacional. Logo, também são parte desse modelo de sociedade, que
é uma sociedade com uns 30% de incluídos e 70% de excluídos. Um modelo de
sociedade excludente. Daí nasce uma necessidade, querem moldar um jurista que
se mantenha nessa lógica formal e não perceba que está legitimando um processo
de genocídio a conta-gotas. Temos esse tipo de genocídio, em grande parte da
América Latina, em circunstância em que o Estado já não é mais o que mata,
senão o que fomenta a violência letal entre esses 70% que o modelo quer
excluir. Não nos esqueçamos que dos 23 países que superam a taxa anual de 20
homicídios a cada 100 mil habitantes 18 são da América Latina e do Caribe, os
outros cindo são africanos. Tampouco esqueçamos que também somos campeões de
coeficientes de Gini, ou seja, má distribuição da renda. Esse é o modelo de
sociedade que os meios massivos concentrados querem reafirmar. O pior que pode
acontecer na América Latina é continuar assimilando assepticamente as teorias
importadas como se não tivessem conteúdo político, e nos perdermos nas
doutrinas vinculadas a teorias presas a meros planteamentos normativistas. Se,
ideologicamente, a doutrina jurídica latino-americana não evolui em direção ao
realismo, lamentavelmente não fará nenhum favor nem ao Estado de Direito nem às
nossas democracias.
Carta Maior: Agora quem
pergunta é o presidente do Movimento do Ministério Público Democrático, Roberto
Livianu. Qual a importância dos acordos de leniência, para o controle da
corrupção e qual a importância da intervenção do Ministério Público,
fiscalizando a celebração desses acordos?
Pessoalmente,
acho que a delação premiada é perigosa em qualquer caso. Especialmente em casos
de corrupção. Hoje, na Alemanha, estão tentando elaborar um novo conceito de
crime político-econômico para os piores casos de destruição econômica. Por
exemplo, para as terríveis crises bancárias que determinaram que os Estados
Unidos tivessem que gastar 500 bilhões de dólares e a Europa 460 bilhões de
euros para salvar um sistema financeiro havia provocado, grosseiramente, sua
própria ruína, diante da indiferença dos órgãos de controle bancário. Não
acredito que, em casos assim, se possa aplicar, nem minimamente, um acordo no
estilo da delação premiada. O mais trágico nesses casos é depender da boa vontade
dos próprios delinquentes, que ofereçam suas informações para se chegar às
soluções. Há um livro muito interessante sobre o tema, do professor Wolfgang
Naucke, que se refere a algo que merece uma reflexão: o título é O Conceito de
Delito Político-econômico.
Quem
pergunta agora é o Presidente da Associação Brasileira dos Juízes pela
Democracia, André Augusto Bezerra. Do ponto de vista da estrutura interna do
Judiciário, há alguma peculiaridade do sistema de justiça argentino que o
tornou mais sensível às violações aos Direitos Humanos da época da ditadura do
que o sistema de justiça brasileiro?
Não
vejo uma diferença notória, em termos de estrutura interna, de cada Judiciário.
A política argentina para casos de direitos humanos avançou por iniciativa dos
poderes Executivo e Legislativo. Num primeiro momento, ela chocou com algumas
resistências dentro do Poder Judiciário.
Depois
dos juristas, a pergunta do jornalista. É possível comparar a Operação Lava
Jato, no Brasil atual, com a Operação Mãos Limpas, na Itália dos Anos 90,
quando os juízes começaram a descobrir os grandes subornos nas obras públicas?
Não
acho que a Mãos Limpas tenha a ver com a Lava Jato. A Mãos Limpas não foi uma
tentativa de golpe de Estado. Não nos esqueçamos que, se analisamos todos os
golpes de Estado militares que aconteceram na região, eles se agarraram em duas
bandeiras para se legitimar. Uma era a de supostamente descontrolada
criminalidade. Outra era a da corrupção. Lamentavelmente, o que verificamos, no
final de um século de tristes experiências, é que os maiores casos de corrupção
tiveram lugar sob amparo das forças reacionárias. Ao dizer isso, não nego que
em tal administração possa haver personagens corruptos que devem ser punidos.
Digo que em nenhum caso pode ser um pretexto para que se legitime a
desestabilização democrática. A magnificação de casos individuais de corrupção
através dos meios massivos de comunicação é um velho recurso golpista, que
conhecemos por tristes experiências. Em definitivo, não é mais que o uso de
formas estruturais de corrupção para desarmar o potencial produtivo e as
relações econômicas das nossas sociedades.
Carta Maior: No Brasil, o
juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato, pretende alterar
o Código Penal, para colocar na prisão os réus condenados em 1ª Instância,
independentemente dos recursos para instâncias superiores, ou seja, é quase um
tribunal de exceção.
Na
América Latina, mais de 60% da população carcerária chegou à prisão sem ser
condenado em nenhuma instância. Ou seja, estão presos só como medida cautelar,
em forma de prisão preventiva. É uma realidade que já é estrutural, se arrastra
ao longo de anos e que implica numa inversão do sistema penal. Primeiro alguém
é detido, depois é condenado, a pena vem antes da condenação.
Fonte:
http://www.ocafezinho.com/2015/05/05/um-dos-maiores-penalistas-do-mundo-chama-lava-jato-de-golpe-de-estado/
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