Se
o Estado é de Direito, a segurança pública não pode ser militarizada. As
democracias exigem, de fato, clara distinção entre as funções dos órgãos
policiais e das Forças Armadas[1]. Afinal de contas, a guerra é atividade de
militares, nunca o policiamento cidadão. Por óbvio, a segurança pública, em um
Estado Democrático de Direito, só pode ser de natureza civil.
É
bem verdade que o autoritarismo estatal festeja a militarização do controle
social. Não por outra razão essa lógica de combate foi tão reforçada durante os
períodos de exceção. Vale lembrar a reformulação na segurança pública
brasileira promovida pelo golpe de 1964, com a transferência do policiamento
ostensivo das corporações civis para as militares[2], o que permanece até hoje,
além da participação direta das Forças Armadas em funções policiais e
punitivas[3], dentre outras medidas adotadas para a repressão dos inimigos
(políticos) à época.
Nesse
contexto, militarização representa o processo de adoção e emprego de modelos,
métodos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militar em atividades de
natureza policial, conferindo assim natureza bélica às questões de segurança
pública[4].
Vê-se,
portanto, mesmo nesta leitura preliminar, que militarização não se restringe ao
uso de farda ou de armas, à existência de patentes ou ao modelo disciplinar
hierárquico de certa instituição. O núcleo da lógica militar reside no
extermínio, na ideia de combate ao inimigo (antes político, agora criminoso). A
política de segurança, nessa lógica militarizada, transforma-se em tática de
guerra, e os órgãos policiais passam a atuar segundo paradigma bélico[5]. As
Forças Armadas e as polícias parecem, então, mudar de papel e esquecer as suas
diferenças fundamentais[6].
Um
breve esclarecimento. É preciso reconhecer que a militarização policial não foi
invenção da ditadura brasileira. Até mesmo porque alguns estudos fazem
referência a organizações policiais militares em território brasileiro no
século XVI e outros no século XIX, quando de fato se criou a primeira unidade
de policiamento ostensivo regular e em tempo integral, que foi a Guarda Real de
Polícia, em 1809, bastante subordinada ao Exército Nacional. Há ainda quem
identifique o início do processo de militarização das polícias brasileiras com
o Decreto 3.598/1866, que promove a divisão das instituições em civil e
militar; fenômeno posteriormente intensificado pelos trabalhos da Missão
Militar Francesa, em 1906, com as forças policiais paulistas na reformulação de
sua disciplina, militarização e formação de uma nova cultura[7].
Contudo,
inegável o reforço ao viés militarizado da segurança pública, conforme lógica
bélica de combate e extermínio de inimigos, durante o período da ditadura (ou
“exceção brasileira”)[8]. Esse foi, sem dúvida, o momento de consolidação da
militarização do controle social e da violência estatal. O “inimigo comunista”
demandou alteração radical na estrutura de segurança, cuja mostra evidente fora
a subordinação de todas as polícias estaduais ao controle e coordenação do
Exército, conforme dispunha o Decreto-Lei 667/69[9]. Explica Soares que “a
ditadura militar e civil de 1964 simplesmente reorganizou os aparatos
policiais, intensificou sua tradicional violência, autorizando-a e
adestrando-a, e expandiu o espectro de sua abrangência, que passou a incluir
militantes de classe média”[10].
Ocorre
que esse primado autoritário foi incorporado pela Constituição de 1988, tida
como “cidadã”, na forma de “exceção permanente na segurança pública”[11].
Forças Armadas e segurança pública foram reunidas sob o mesmo título na
estrutura normativa constitucional, atualmente denominado Da Defesa do Estado e
das Instituições Democráticas. Manteve-se a autonomia das Forças Armadas,
consideradas última instância de garantia dos poderes republicanos (artigo 142,
caput, da CRFB), bem como o controle do Exército, ainda que parcial, sobre as
Polícias Militares (artigo 144, parágrafo 6º, da CRFB). Essas, por sua vez,
permaneceram como responsáveis pelo policiamento ostensivo e a preservação da
ordem pública (artigo 144, parágrafo 5º, da CRFB) ao mesmo tempo em que
constituem força auxiliar e reserva do Exército (artigo 144, parágrafo 6º, da
CRFB).
Vale
lembrar que o contrário também poderá ocorrer. A LC 97/99, que dispõe sobre as
normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas,
permite a sua atuação, “na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de
quaisquer dos poderes constitucionais”, nos termos das “diretrizes baixadas em
ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
relacionados no artigo 144 da Constituição” (artigo 15, parágrafo 2º, da
referida Lei). Prevê, ademais, como atribuições subsidiárias das Forças
Armadas, ações preventivas e repressivas de segurança, na faixa de fronteira,
contra “delitos transfronteiriços e ambientais”, o que pode incluir, dentre
outras, atividades de “patrulhamento” e “revista de pessoas, de veículos
terrestres, de embarcações e de aeronaves” (artigo 16-A da referida Lei).
A
tragédia normativa só não é pior que o drama de sua realidade prática, marcada
por flagrante desrespeito aos direitos fundamentais e elevado nível de
incivilidade mediante perniciosa simbiose autoritária entre órgãos do Poder
Judiciário, Ministério Público, polícia e Forças Armadas.
As
famosas Operações de Garantia da Lei e da Ordem[12], já realizadas em
território nacional e admitidas oficialmente pelo governo brasileiro, podem ser
tomadas como exemplo. A ocupação militarizada de espaços territoriais,
normalmente acompanhada de medidas típicas de exceção, transforma-se em
política de segurança pública em face da população de “consumidores falhos”
(Bauman) que marcam a “ralé brasileira” (Jessé Souza). Revistas
indiscriminadas, conduções coercitivas para averiguação, mandados de busca e
apreensão coletivos e outros abusos constituem os meios operacionais do Estado
de Exceção (Agamben) militarizado no Brasil, cujos efeitos genocidas podem ser
facilmente percebidos na atual política de “guerra às drogas”.
Sublinhe-se
a questão central. O problema da militarização na segurança pública brasileira
não se limita às polícias, tampouco a um ente específico. É evidente que a
polícia precisa ser desmilitarizada, como destaca a Anistia Internacional em
seu respeitado informe sobre O Estado dos Direitos Humanos no Mundo (versão
2014/2015) e reconhecem os próprios policiais brasileiros em pesquisa recente,
mas não é só. É preciso afastar, na realidade, a “militarização ideológica da
segurança pública”[13]. A efetiva desmilitarização está para além da
substituição de nomenclatura da Polícia Militar ou mesmo de sua completa
desvinculação em relação ao exército.
Segundo
Karam, um debate sério sobre desmilitarização não pode se concentrar apenas na
ação dos estigmatizados policiais e blindar a esfera de responsabilidade do
Ministério Público, do Poder Judiciário, de governantes e legisladores, da
mídia, da sociedade como um todo[14]. O desafio está em romper com esse
“verdadeiro habitus militarizado nas questões que envolvem tanto o direito à
segurança quanto a segurança dos direitos”[15]. Ou seja: superar a completa
negação da alteridade que informa uma política de segurança pública entorpecida
pelo ideal militar[16].
Esse
é o ponto fulcral para o estabelecimento de qualquer tipo de resistência
democrática. É preciso operar um verdadeiro giro paradigmático conforme o
primado da razão ético-crítica. Isso significa estruturar, no âmbito normativo
e prático, um sistema de segurança pública desmilitarizado pela consideração
maior da vida humana. Vida humana que, segundo Dussel, “não é um conceito, uma
ideia, nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser humano
concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação”[17]. Em
suma: trata-se de uma fuga do paradigma da guerra e da morte para se
estabelecer a partir da cidadania e da vida.
[1]
ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares: o Legado Autoritário da
Constituição Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.
[2]
ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares..., p. 56.
[3]
SCHWARCZ, Lilia Mortiz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 467, 468.
[4]
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Questões preliminares para a discussão de uma
proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, nº. 22, p. 139-182, 1998.
[5]
L’HEUILLET, Hélène. Alta Polícia, Baixa Política. Cruz Quebrada, Portugal:
Editorial Notícias, 2001, p. 199.
[6]
ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida: a forma juridica da política de extermínio
de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p.
210.
[7]
PEDROSO, Regina Célia. Estado Autoritário e Ideologia Policial. Coleção
Histórias da Intolerância. São Paulo: FAPESP, 2005. p. 130.
[8]
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira.
São Paulo: Boitempo, 2010, p. 10.
[9]
SILVEIRA, Felipe Lazzari da. Reflexões sobre a Desmilitarização e Unificação
das Polícias Brasileiras. In: IV Congresso Internacional de Ciências Criminais
da PUC-RS, 2013, Porto Alegre. Anais do IV Congresso Internacional de Ciências
Criminais. Porto Alegre: EDIPUC/RS, 2013.
[10]
SOARES, Luiz Eduardo. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias?. In: ____ (et. al).
Bala Perdida: a violência policial no Brasil
e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 28.
[11]
ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida..., p. 248.
[12]
BRASIL. Portaria Normativa n. 186/MD, de 31 de Janeiro de 2014, publicada no
Diário Oficial da União n. 23, de 03 de Fevereiro de 2014. Disponível em:
.
Acesso em 05.04.2014.
[13]
SILVA, Jorge da. Militarização da Segurança Pública e a Reforma da Polícia. In:
Bustamante, Ricardo; Sodré, Paulo César (Org.). Ensaios Jurídicos: o direito em
revista. Rio de Janeiro: Ibaj, 1996, p. 497-519.
[14]
KARAM, Maria Lucia. Violência, Militarização e “Guerra às Drogas”. In: ____ (et. al).
Bala Perdida: a violência policial no
Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 34 - 38.
[15]
CASARA, Rubens R.R.. Militarização da Segurança: um sintoma da tradição
autoritária brasileira. In: SILVA, Givanildo Manoel de. Desmilitarização da
Polícia e da Política: uma resposta que virá das ruas. Uberlândia:
Pueblo, 2015, p. 149.
[16]
CASARA, Rubens R.R.. Militarização da Segurança..., p. 152.
[17]
DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. 4
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 11.
Fonte:
http://www.conjur.com.br/2015-ago-11/academia-policia-desmilitarizar-seguranca-publica-garantir-vida-estado-direito?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
Nenhum comentário:
Postar um comentário