quinta-feira, 2 de julho de 2015

OS DELATORES DA LAVA JATO TÊM FÉ PÚBLICA?

"A verdade anda sofrendo bastante, pois, de uma doença inoculada no corpo da opinião pública, com força suficiente para sacrificá-la: a paixão sádica de se encontrar um ou muitos bodes expiatórios suficientes para aplacar a consciência individual e coletiva das suas próprias irresponsabilidades morais.", comenta Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul, membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Eis o artigo.

A lei não permite ser posta em dúvida a palavra de certas autoridades, no exercício dos seus poderes públicos. É a chamada “fé pública”, conferindo a tais pessoas a presunção de ser verdadeira toda e qualquer certidão (note-se a força da palavra) assinada por um notário, um registrador, um oficial de justiça, por exemplo.

Justamente por essa razão a prova contrária a uma certidão, uma escritura pública, algum outro documento desse tipo, como tendo resultado de um engano, um erro ou até um deslize ético-jurídico, encontrará dificuldades muito grandes para ser produzida, pois esbarra sempre nessa presunção.

Pelo que se observa ultimamente, entretanto, as notícias relacionadas com a operação lava jato estão sendo veiculadas como se tivessem o mesmo poder da fé pública. Está praticamente se impondo ao povo a obrigação de não duvidar de crimes alegadamente praticados por determinadas pessoas, políticos, empresarias/os, servidoras/es públicas particularmente, indicadas/os como autoras/es desses ilícitos pela palavra de delatores, interessados em diminuir suas penas.

Já existe um tumulto ideológico e político-partidário nesse tipo de comunicação social, intensificado a cada dia por interesses os mais variados. A contaminação do sentimento de insegurança sobre o futuro da investigação lava-jato, (processa - não processa? indicia - não indicia? prova - não prova? condena - não condena? ) é de tal ordem que os ataques de quem acusa e as defesas de quem é acusado, a se crer num certo tipo de noticiário interessado em escandalizar e criar tensão e ansiedade, estão partindo para o vale-tudo.

A Folha de São Paulo do último domingo, 28 deste junho, publicou um artigo do jornalista Jânio de Freitas, sobre a lava jato, mostrando como a mídia está escolhendo com cuidado, de acordo com os vazamentos das delações premiadas, quais pessoas, datas e circunstâncias sob as quais eles serão mais e melhor julgados verdadeiros, isentos de qualquer dúvida:

“Em princípio, os vazamentos seriam uma transgressão favorável à opinião pública ansiosa por um sistema policial/judicial sem as impunidades tradicionais. Mas, com o jorro contínuo dos tais vazamentos, nos desvãos do sensacionalismo não cessam os indícios que fazem a "nova Justiça" – a dos juízes e procuradores/promotores da nova geração – um perigo equivalente à velha Justiça acusada de discriminação social e inoperância judicial”.

“É preciso estar muito entregue ao sentimento de vingança para não perceber um certo sadismo na Lava Jato. O exemplo mais perceptível e menos importante: as prisões nas sextas-feiras, para um fim de semana apenas de expectativa penosa do preso ainda sem culpa comprovada. Depois, a distribuição de insinuações e informações a partir de mera menção por um dos inescrupulosos delatores, do tipo "Fulano recebeu dinheiro da Odebrecht". Era dinheiro lícito ou provou-se ser ilícito? É certo que o recebedor sabia da origem, no caso de ilícita?”

A verdade anda sofrendo bastante, pois, de uma doença inoculada no corpo da opinião pública, com força suficiente para sacrificá-la: a paixão sádica de se encontrar um ou muitos bodes expiatórios suficientes para aplacar a consciência individual e coletiva das suas próprias irresponsabilidades morais. Quanto maior a veemência a ser expressada contra a conduta de alguém, certa e ou errada não importa, tanto maior será a chance de sua credibilidade quanto a da moralidade inspiradora de quem acusa.

Como quase sempre tudo isso é feito sob a garantia da liberdade de expressão, por mais falsa seja uma determinada versão dos fatos, ela terá praticamente os mesmos efeitos da fé pública. Essa violência coberta pela aparência de livre e honesta se enquadra bem numa pergunta de Eduardo Galeano, muito apropriada para os tempos que estamos vivendo no Brasil, advertindo ingênuas/os que engolem qualquer mentira como verdade.

Na coletânea de seus artigos “O teatro do bem e do mal” pergunta o autor das “Veias abertas da América Latina”: “Que poder teria a soga se não encontrasse o pescoço”?

Artigo publicado no:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/544149-os-delatores-da-lava-jato-tem-fe-publica


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