As
imagens do abandono e da decadência urbana produzidos pela desindustrialização
e pelo desinvestimento estão em toda parte. E nenhuma cidade é tão retratada em
livros, exposições, web sites, filmes e mídias populares quanto Detroit. Ainda
que as paisagens desindustriais estejam espalhadas por todo o mundo,
notadamente nos centros que costumavam liderar a produção fabril, Detroit
tornou-se o exemplo mais evidente de decadência urbana, a metáfora global para
o declínio capitalista e o epicentro de um gênero fotográfico: a imagética da
ruína desindustrial.
A
reportagem é de Dora Apel, publicada por Jacobin e reproduzido por Outras
Palavras, 27-07-2015.
Ao
ressaltar a pobreza, a deterioração urbana e as crises econômica e ecológica, a
imagética da ruína acentua o fato de que a sociedade capitalista é incapaz de
proteger os seus cidadãos e as suas cidades. Enquanto os imperativos econômicos
nacionais colidem com as demandas do capital globalizado, a decrepitude de
cidades como Detroit, Buffalo e Cleveland, nos EUA, alimenta um pessimismo
cultural ubíquo que prevê a desintegração violenta e o colapso — seja através
de um vírus pandêmico, da destruição ecológica, da guerra ou da
desindustrialização.
Daí
o apelo paradoxal da imagética da ruína: conforme a fé num futuro melhor se
desgasta, a beleza da decadência nos ajuda a lidar com o terror de um declínio
apocalíptico. No imaginário cultural, a ideia de Detroit veio servir de
repositório para o pesadelo do declínio urbano num mundo onde a maioria das
pessoas vive em cidades.
A
imagética da ruína em Detroit também tem outra função — ela circunscreve
geograficamente e isola a ansiedade do declínio, fazendo dessa cidade
predominantemente afro-americana uma espécie de zona alienígena. As onipresentes
fotos de arranha-céus, igrejas, escritórios e casas dilapidados, de fábricas
abandonadas como a da Packard — a maior ruína do país — são frequentemente
comparadas com zonas de guerra, destroços de furacão e com o resultado de uma
explosão nuclear.
Os
efeitos do arruinamento são certamente eloquentes: em 2014, a taxa de
desemprego em Detroit foi a mais alta entre as 50 maiores cidades e mais de
três vezes maior do que a média nacional, enquanto a taxa de educação superior
ficou abaixo da média. Os serviços públicos na cidade são lentos e inadequados
mas os impostos territoriais são altos, o que para os residentes mais pobres
representa uma ameaça permanente de execução de hipoteca e para a cidade
significa mais casas dilapidadas e abandonadas. Quase 40% da população da
cidade vive abaixo da linha da pobreza. Mas as fotos de bairros em
desintegração, por natureza, explicam muito pouco a respeito das complexas
causas desse declínio ou das ramificações do arruinamento para o futuro da
cidade ou mesmo do país. Ao contrário, a cidade, tal como produzida através das
imagens, assume diferentes significados em diferentes contextos. Na imaginação
popular, Detroit é vista como exemplo de decadência urbana e como uma cidade
singularmente mal administrada.
Como
ex-líder da produção manufatureira no mundo e, atualmente, como cidade
debilitada predominantemente pobre e negra, Detroit é construída ao mesmo tempo
como resultado de tendências econômicas irresistíveis e como uma cidade
altamente racializada que causou seu próprio declínio por causa de líderes
incompetentes ou corruptos.
Detroit
é considerada uma demonstração tanto do declínio inescapável quanto de sua
própria história de irresponsabilidade. Desse modo, o resto do país é levado a
acreditar que a espiral descendente de Detroit é merecida, ou inevitável, ou
uma combinação das duas coisas.
Essas
concepções a respeito da cidade permitem que os verdadeiros agentes da
degeneração — as corporações e o Estado capitalista — fujam da responsabilidade
e justifiquem o controle da cidade pelo Estado, a falência forçada da cidade, o
ataque às aposentadorias dos trabalhadores, a privatização dos serviços urbanos
e outras medidas de austeridade.
Elas
servem também como alerta para cidades e municípios em dificuldades do Maine à
Califórnia. Atribuindo o ônus da dívida às pessoas pobres, negras e
trabalhadoras sem responsabilizar ninguém, nem a própria cidade, por essas
iniquidades, Detroit e suas representações assumem um papel fundamental na
definição do futuro da vida nas cidades americanas.
Um
tropo padrão na imagética da ruína é a sugestão da eterna luta entre natureza e
cultura. As fotos de Andrew Moore, em Detroit Disassembled [Detroit
Desmontada], ou Yves Marchand e Romain Mefre, em The Ruins of Detroit [As Ruínas
de Detroit], são exemplos conhecidos focados na regeneração pastoral do
ambiente construído.
Birches
Growing in Decayed Books, Detroit Public Schools Depository [Bétulas Crescendo
em Livros Apodrecidos, Depósito das Escolas Públicas de Detroit], de Moore,
mostra mudas de árvores que crescem num carpete de livros podres e apontam para
o céu através de uma abertura no teto do antigo depósito de livros. A
perspectiva diagonal ascendente e a luz morna criam um senso de renovação na
adversidade, evocando o ciclo aparentemente natural que vai das árvores aos
livros e de volta às árvores. Com suas cores vibrantes, a foto oferece um
tributo comemorativo ao ressurgimento da natureza.
As
fotos de Marchand e Meffre foram tiradas em situações nebulosas e obscuras. Frias
e sem vida, elas sugerem um lamento melancólico por um estado de rigidez
irreversível e mortal. A última imagem do livro mostra os próprios fotógrafos:
duas silhuetas diminutas percorrendo uma ruela entre os prédios abandonados do
complexo industrial da Packard. A ruela parece terra devoluta e as instalações
desertas são uma metonímia para a cidade que, por implicação, também estaria
vazia e abandonada. A imagem oferece uma despedida fúnebre, ainda que celebre a
aparência pitoresca da cidade.
São
os dois lados de uma mesma estratégia estética. A foto de Marchand e Meffre
lamenta o declínio da cidade como deserto desindustrial mesmo quando encontra
beleza na decadência, enquanto a foto de Moore embarca em devaneios românticos
sobre a luta entre natureza e cultura e vê a mesma beleza na decadência.
A
metáfora da natureza retomando a idade, seja em termos negativos ou redentores,
neutraliza os processos reais que têm um impacto tão destrutivo sobre a cidade:
um racismo virulento, o antissindicalismo e a reestruturação industrial. Essa
neutralização é agravada pelo fato de que a maior parte das imagens raramente
mostra a multidão urbana — muitos observadores se surpreendem ao saber que
Detroit ainda tem quase 700.000 residentes.
Em
dezembro de 2013, o New York Times publicou três fotos de Marchand e Meffre
para ilustrar um artigo de primeira página anunciando a decisão de uma corte
federal que autorizava Detroit a declarar falência sem proteção para as
aposentadorias municipais.
A
foto superior mostrava a Estação Central de Michigan, uma estrutura cívica
grandiosa cujo abandono serve como símbolo do fracasso urbano. Abaixo, imagens
do antes luxuoso salão de baile do Lee Plaza hotel, com seu teto finamente
pintado e um piano caído de lado, e da sala de aula de uma antiga escola
católica.
Omitindo
a presença ativa das pessoas na cidade e a resposta local de luta contra a
decisão judicial, o trio de fotos de primeira página sugeria uma cidade já
morta e mumificada. Isso era reforçado pela legenda em negrito, “Visões de uma
cidade perdida”, que por sua vez dava suporte ideológico para o corte nas
aposentadorias dos servidores municipais: se a cidade já está perdida, não é
preciso se preocupar com milhares de pessoas que lutam para sobreviver ou
proteger suas magras aposentadorias (em média apenas $19.200 por ano).
Se
as vítimas do declínio da cidade desaparecem, o discurso do arruinamento se
torna um discurso sobre a arquitetura, a paisagem e a inevitável “retomada” da
cidade pela natureza, o que pode significar tanto um retorno a um estado
pré-civilizado quanto a reemergência de um novo idílio ecológico. Fotos que se
concentram apenas na beleza da decadência na arquitetura afastam o observador
dos efeitos dessa decadência sobre as pessoas e obscurece a crise da pobreza e
desemprego que está em curso.
Esse
apagamento da população também reflete e reforça sua invisibilidade para as
corporações e o Estado capitalista, que ajudaram a criar os padrões de pobreza
segregada e racializada que há muito prevalecem na cidade e ao mesmo tempo se
isentaram de qualquer responsabilidade.
A
questão não é sugerir o que artistas e fotógrafos deveriam ou não deveriam
retratar; ao invés disso, é importante examinar o trabalho cultural realizado
pela imagética da ruína e o uso político a que ela se presta. A narrativa
romântica sobre a beleza da decadência presente na imagem da ruína produz
prazer por conter e controlar a ansiedade do declínio através da segurança e da
distância da representação.
Essa
é a função cultural da imagética da ruína; o domínio mental daquilo que nos
apavora é sua natureza e propósito. Ainda que ela evidencie os efeitos
desastrosos do capitalismo, quanto mais esteticamente refinada e agradável for
a imagem mais efetivo é o distanciamento.
Não
é de surpreender que a proliferação de imagens da ruína tenha ativado um debate
sobre a “pornografia da ruína”, expressão que questiona se tais fotos deveriam
ser desconsideradas por serem voyeurísticas e abusivas ou se elas dão
visibilidade a algo que de outra forma poderia ficar escondido da história. A
crítica da pornografia da ruína depende de uma dicotomia entre os “de dentro” e
os “de fora”, entre aqueles que se veem como leais à cidade, cuja vida e
trabalho são afetados pela cidade (e portanto adquiriram o direito de lucrar
com ela), e aqueles que estão apenas “de passagem”.
Para
muitos dos moradores pobres de Detroit, as imagens de ruínas na mídia nacional
são uma fonte de desmoralização e constrangimento — independentemente de quem
fez a foto — e existem muitos fotógrafos locais que registram a paisagem
decadente. Eles temem a marginalização irreversível da cidade e a indiferença
de uma nação que vê a cidade a partir de uma posição de fascinação estetizada,
a uma distância confortável.
Essa
sensação de impotência evoca sentimentos de raiva e ressentimento — não contra
as condições da cidade diretamente, mas contra as imagens que retratam essas
condições. Elas parecem agravar essas condições por divulgá-las, fazendo a
cidade parecer estranha e patética e, talvez o pior de tudo, estimulando a
compaixão como resposta despersonalizada ao “sofrimento longínquo”, como
acontece com as fotos de crianças famintas na África.
Mas
a história está repleta de cenas de desastre e decadência que atraem fotógrafos
e repórteres de fora, e eles são responsáveis tanto por um sem número de
imagens indeléveis quanto pela história escrita. Retratar a miséria sempre
carrega um risco de abuso, mas as imagens também são testemunhas da história.
Como todas as testemunhas, são subjetivas e imperfeitas. Ainda assim, elas
oferecem perspectivas que de outra forma não estariam disponíveis.
A
“pornografia da ruína” é, portanto, uma ferramenta de análise crítica altamente
problemática, porque o apetite pelas imagens da ruína só cresce conforme o abandono
e a decadência se espalham, e porque os moradores da cidade não têm “direito de
propriedade” sobre as ruínas. As ruínas de Detroit, como as de Baltimore ou St
Louis, são ruínas dos EUA.
Essa
imagética intensifica visualmente a realidade da deterioração econômica e
cultural. Esses efeitos devastadores ficam tão cruamente visíveis nos serenos
retratos da decadência que eles induzem uma série de emoções, desde o prazer
até a inquietação. Assim como a arte e a literatura românticas, que criticavam
as pretensões imperiais do império, a imagética da ruína contemporânea também
funciona como uma crítica implícita do status quo doméstico americano. A
estética da decadência serve como um aviso de declínio na medida em que as
imagens participam, conscientemente ou não, da construção da narrativa
dominante a respeito de Detroit.
Essas
imagens podem lamentar, elogiar ou celebrar a decadência que representam; podem
criticar implicitamente as forças ou os efeitos do declínio; podem acolher a
beleza ou a melancolia desses efeitos; mas não podem disfarçar o impasse do
progresso que as ruínas representam. Conforme o medo do declínio aumenta, o
limiar do prazer estético compensatório também cresce, exigindo mais imagens de
deterioração e desastre pós-apocalíptico para alcançar uma sensação de
segurança. Desse modo, a imagética da ruína se investe de um poder cultural
ainda maior.
Não
é de surpreender que a fascínio das ruínas urbanas de Detroit tenha se
intensificado no momento em que a cidade negociava sua falência. E apesar da
narrativa que busca marginalizar e isolar a cidade como responsável por seu
próprio declínio, Detroit se tornou um símbolo das cidades fragilizadas em
qualquer lugar.
Ainda
assim, ao desafiar a lógica do neoliberalismo e do Estado capitalista como um
protetor efetivo dos seus cidadãos e uma fonte de progresso e racionalidade, a
imagética da ruína também nos desafia a considerar como as nossas decadentes
cidades podem ser recuperadas e reimaginadas.
Ela
nos convida a pensar sobre a reorganização econômica e o planejamento
democrático, partes importantes da construção de uma sociedade igualitária
baseada em necessidades e não no lucro — onde as cidades obedecem os requisitos
de sua população, fornecendo as bases para a realização individual e ajudando a
preservar o meio ambiente.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/545075-as-ruinas-do-capitalismo
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