O
novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) regula, em seu artigo 1.071,[1]
um procedimento administrativo extrajudicial para o usucapião de bens imóveis.
O dispositivo não cria o usucapião administrativo, pois o artigo 60 da Lei
11.979/09[2] — Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida — já previa uma figura
similar para detentores de título de legitimação de posse. O que há de novo,
contudo, é a generalização do procedimento a qualquer suporte fático de
usucapião em que haja consenso, ampliando sensivelmente o âmbito de aplicação
do instituto.
Com
base no artigo 1.071, a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) passa a ser
acrescida do artigo 216-A, que regula o procedimento do usucapião a ser
requerido perante o oficial de registro de imóveis.
O
instituto se insere no fenômeno da desjudicialização ou extrajudicialização do
direito, caracterizado pelo deslocamento de competências do Poder Judiciário
para órgãos extrajudiciais, notadamente as serventias notariais e registrais
(confira-se Veronese, Yasmim. Leandro; Silva, Caique Leite Thomas da. Os
notários e registradores e sua atuação na desjudicialização das relações
sociais. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 4/2014,
p. 65).
O
movimento legislativo em questão busca atribuir aos notários e registradores a
solução de questões em que há consenso e disponibilidade de direitos
envolvidos, colaborando com o objetivo de agilizar a atividade jurisdicional.
Notários,
ou tabeliães, e oficiais de registros públicos, ou registradores, são
profissionais do direito, admitidos mediante concurso público, para exercer
atividade notarial e registral mediante delegação e fiscalização do Poder
Público, em caráter privado.[3] Dotados de fé pública, prestam serviços
públicos voltados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia
de atos jurídicos (CF, artigo 236; Lei 8.935, artigos 1º a 3º).
Há
importantes antecedentes legislativos de extrajudicialização, como a
retificação extrajudicial de registro imobiliário (Lei 10.931/04), o divórcio e
o inventário extrajudiciais (Lei 11.441/07), a consignação em pagamento
extrajudicial (artigo 890 do CPC, com redação da Lei 8.951/94), a conciliação
em serventias extrajudiciais (vide provimento 12/2013, da Corregedoria-Geral de
Justiça do Ceará, que também trata de mediação), entre outros.
O
usucapião extrajudicial será requerido pelo interessado ao registrador de
imóveis da situação do bem. A ele compete conduzir o procedimento
administrativo que levará ao registro do usucapião, se forem provados os seus
requisitos legais e não houver litígio. A escolha pela via extrajudicial cabe à
parte, que poderá optar por deduzir o seu pedido em juízo se assim preferir,
ainda que não haja litígio.
O
procedimento se inicia a requerimento do usucapiente, respeitando o princípio
da instância que rege o direito registral imobiliário (vide Carvalho, Afrânio
de. Registro de imóveis. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pp. 269-289). A
parte deverá estar assistida por advogado, exigência legal decorrente da complexidade
do ato postulatório. À petição será acostada a prova documental
pré-constituída, para comprovar a posse prolongada pelo tempo exigido no
suporte fático de usucapião invocado, bem como as certidões negativas de
distribuição, que comprovam a natureza mansa e pacífica da posse.
Sobre
os documentos a serem apresentados, inclui-se o justo título, se houver, prova
da quitação de tributos e taxas e quaisquer outros que evidenciem a posse, como
contratos de prestação de serviço no imóvel, correspondências, etc. O
legislador faz referência ainda à apresentação de ata notarial como meio de
prova. A ata notarial, regulada no artigo 384 do novo CPC, é o instrumento
público por meio do qual o tabelião atesta fato com o qual travou contato por
meio de seus sentidos (Brandelli, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 4
ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 344-373), decorrendo da função tipicamente
notarial de autenticar fatos (Lei 8.935/94, artigo 6º, inciso III). É lavrada
por tabelião de notas de livre escolha da parte (e não pelo registrador de
imóveis perante o qual corre o procedimento de usucapião) e acompanhará o
requerimento. Difere da escritura declaratória porque, nesta, é um terceiro que
atesta o fato perante o tabelião, que colhe a manifestação de vontade e a
formaliza. Assim, para lavrar a ata, o notário ou seu preposto devidamente
autorizado deverá se deslocar até o imóvel e lá poderá verificar a
exteriorização da posse, diante das circunstâncias do caso. Nada obsta a que
testemunha da posse do requerente compareça ao tabelionato e declare sob as
penas da lei os fatos que presenciou, sendo a escritura declaratória lavrada e
apresentada ao oficial de registro de imóveis.
O
requerimento também deverá ser acompanhado da planta do imóvel, com memorial
descritivo e anotação de responsabilidade técnica. A ART é a prova de que a
planta e o memorial foram elaborados por profissional habilitado perante o
conselho profissional competente. A planta ainda desempenha uma importante
função, pois é nela que os confinantes e os titulares de direitos sobre o
imóvel usucapiendo assinam, manifestando sua anuência ao pedido e
caracterizando o consenso no usucapião.
Recebida
a petição, devidamente instruída, o oficial de registro procederá à prenotação
no livro de protocolo e a autuará. Se falta algum documento, formulará nota
devolutiva entregue ao requerente, para que supra a ausência. Se algum
interessado não tiver assinado a planta, procederá à sua notificação, para que
se manifeste em quinze dias. Deverá ainda notificar a Fazenda Pública,
municipal, estadual e federal, para deduzir eventuais impugnações em igual
prazo de quinze dias. Em seguida,
publicará edital em jornal de grande circulação, às expensas do requerente,
para dar ciência a terceiros que, em prazo de trinta dias, poderão impugnar o
pedido.
A
impugnação da Fazenda Pública consiste em alegar que o imóvel é público, se for
o caso, e portanto inusucapível (neste sentido, neste sentido, Miranda,
Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, tomo XIII, 1977, pp. 381-382). Os terceiros poderão
apresentar quaisquer impugnações contrárias à consumação do usucapião, enquanto
que aos confinantes ou titulares de direitos reais sobre o imóvel notificados
cabe impugná-lo ou prestar a anuência que não foi outorgada mediante assinatura
na planta. As manifestações deverão ser deduzidas por escrito e protocoladas
perante a serventia extrajudicial.
Vale
ressaltar um ponto importante da regulamentação normativa: se o confinante ou
titular de direitos reais não se manifestar, não se presume sua anuência. A
solução adotada é oposta à vigente na retificação extrajudicial, em que o
silêncio do confinante notificado implica concordância tácita (Lei de Registros
Públicos, artigo 213, parágrafo 5º). Com a cautela legislativa, a segurança
jurídica foi privilegiada em detrimento da efetividade. Um estudo estatístico
que analise o número de retificações administrativas em comparação com o de
contestações judiciais posteriores pode servir para confirmar a solução do novo
artigo 216-A, ou para indicar a necessidade de sua reforma posterior.
Prevê
o legislador ainda que o registrador poderá realizar diligências in loco, para
elucidar dúvidas que tenham restado da análise da documentação. Esta faculdade
do delegatário deve ser exercida com a necessária cautela, pois ordinariamente
o oficial não tem formação técnica em engenharia e a inspeção deve se proceder
dentro do que é possível verificar sem essa habilitação específica (neste
sentido, CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 19 ed. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 494).
Se
qualquer das partes interessadas apresentar impugnação, o registrador remeterá
os autos ao juízo competente, para apreciação. Nesse caso, cabe a emenda da
inicial, para ajustá-la às exigências do processo judicial. Se a documentação é
insuficiente e o requerente não se conformou com as exigências formuladas, pode
requerer a suscitação de dúvida (Lei de Registros Públicos, artigo 198), para
que o juiz decida, no âmbito administrativo.
Se
não há impugnação ou nota devolutiva desatendida, caberá ao registrador
apreciar o pedido. A decisão do registrador pressupõe a qualificação, atividade
administrativa vinculada privativa de profissional do direito em que são
examinados os títulos apresentados a registro e verificado o preenchimento dos
requisitos legais do ato registral No
procedimento de usucapião extrajudicial, se a qualificação for positiva, o
oficial procederá ao registro da aquisição do direito real na matrícula. Se o
imóvel não for matriculado, efetuará a abertura da matrícula e o registro, seu
primeiro ato. Se negativa, terá de fundamentar a decisão, indicando quais dos
requisitos legais não foi atendido. A decisão que negar o pedido administrativo
não obsta o ingresso com ação judicial de usucapião.
Sem
prejuízo de possíveis e legítimas críticas a algumas das opções do legislador,
o procedimento extrajudicial parece estar apto a atribuir solução mais ágil e
eficiente ao usucapião consensual e a se tornar um instrumento tão útil quanto
são o inventário, o divórcio e a retificação desjudicializados, contribuindo
para legalizar situações consolidadas e promover regularização fundiária.
Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e
UFMT).
[1]“A
Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar acrescida do seguinte
art. 216-A:´Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido
de reconhecimento extrajudicial da usucapião, que será processado diretamente
perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que situado o imóvel
usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado,
instruído com:I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de
posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas
circunstâncias;II – planta e memorial descritivo assinado por profissional
legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no
respectivo conselho de fiscalização profissional, pelos titulares de direito
reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel
usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;III - certidões negativas
dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do
requerente;IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a
origem da posse, continuidade, natureza e tempo, tais como o pagamento dos
impostos e taxas que incidirem sobre o imóvel.§ 1º O pedido será autuado pelo
registrador; prorroga-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou rejeição do
pedido.§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares
de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do
imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, este será notificado
pelo registrador competente, para manifestar seu consentimento expresso em
quinze dias, interpretado o seu silêncio como discordância; a notificação pode
ser feita pelo registrador pessoalmente ou pelo correio, com aviso de
recebimento. § 3º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao
Estado, ao Distrito Federal e ao Município, para que se manifestem, em quinze
dias, sobre o pedido. A comunicação será feita pessoalmente, por intermédio do
oficial de registro de títulos e documentos, ou, ainda, pelo correio, com aviso
de recebimento.§ 4º O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de
edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros
eventualmente interessados, que podem manifestar-se em quinze dias.§ 5º Para a elucidação
de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências
pelo oficial de registro de imóveis.§ 6ºTranscorrido o prazo de que trata o §
4º deste artigo, sem pendência de diligências na forma do § 5º deste artigo e
achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos
titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na
matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o
oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as
descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o
caso.§ 7º Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de
dúvida, nos termos desta lei. § 8º Ao final das diligências, se a documentação
não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido. § 9º
A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de
usucapião. § 10. Em caso de impugnação ao pedido de reconhecimento
extrajudicial da usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de
direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do
imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes
públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis
remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo
ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.´”
[2]
Art. 60. Sem prejuízo dos direitos
decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de
legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao
oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de
propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183
da Constituição Federal. § 1o Para
requerer a conversão prevista no caput, o adquirente deverá apresentar: I -
certidões do cartório distribuidor demonstrando a inexistência de ações em
andamento que caracterizem oposição à posse do imóvel objeto de legitimação de
posse; II – declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural; III – declaração de que o imóvel é utilizado
para sua moradia ou de sua família; e
IV – declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito à
usucapião de imóveis em áreas urbanas. § 2o
As certidões previstas no inciso I do § 1o serão relativas ao imóvel
objeto de legitimação de posse e serão fornecidas pelo poder público. § 3o No caso de área urbana de mais de 250m²
(duzentos e cinquenta metros quadrados), o prazo para requerimento da conversão
do título de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na
legislação pertinente sobre usucapião.
[3]
Notários e registradores não exercem cargo ou emprego público (neste sentido,
STF, ADIN 4.641-SC, rel. Min Teori Zavascki, julg. 11/03/15) . O regime de delegação a eles aplicado é
semelhante ao da concessão de serviços públicos, mas tem pontos peculiares.
Entre outros: (a) é precedido de concurso público de provas e títulos, não de
licitação; (b) é exercido pela pessoa física, mediante responsabilidade
pessoal, não por pessoa jurídica.
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