O
tema do direito dos animais é cercado de preconceitos e exageros e, por isso, é
comumente visto como pitoresco, sem a seriedade que merece. Entretanto, a
relação dos homens com os animais está, mais do que nunca, no centro de
diversas controvérsias.
Sem
a pretensão de esgotar o tema, que revela inúmeras nuances, dedicarei o espaço
de duas colunas a essa investigação. Não desejo apresentar respostas, mas
indicar os caminhos possíveis e os desafios existentes.
Embora
tradicionalmente os animais sejam tratados como instrumentos ao dispor do
homem, deve-se reconhecer que nos últimos 30 anos essa perspectiva vem sendo
questionada. Isso talvez se explique pelo crescente número de famílias que
contam com um animal de estimação. Levantamentos apontam que há mais de 100
milhões de animais domésticos em nosso país[1]. Talvez seja o vegetarianismo em
ascensão que ampare o fenômeno. Em pesquisa realizada no ano de 2012, o Ibope
indicou que 8% da população das principais capitais e regiões metropolitanas se
declara vegetariana[2]. Independentemente dos motivos que levam a sociedade à
mudança de perspectiva, é certo que cada vez mais se fala em direitos dos
animais como forma de indicar que esses seres devem ser respeitados, não
estando ao nosso inteiro dispor.
Não
é de hoje que os maus-tratos a animais causam comoção entre nós. Na segunda
metade da década de noventa, houve clamor popular contra a festividade
denominada Farra do Boi, comum na região sul, em que o referido animal era
perseguido e caçado. Algumas associações se reuniram no pólo ativo de ação
civil pública, requerendo que o Estado de Santa Catarina fosse condenado a
proibir a prática. Argumentou-se que os animais eram submetidos a crueldade. Em
defesa, foi indicado que a festividade tinha significado cultural para parcela
significativa da população e que o Estado coibia abusos. O TJSC julgou
improcedente o pedido, acolhendo os argumentos da defesa[3].
O
litígio chegou ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal que, por maioria de
votos, proibiu o evento[4]. O STF, naquela oportunidade, indicou que a
crueldade não era eventual, mas congênita à prática, que, por isso, não poderia
ser considerada cultural. Na oportunidade, foi dado destaque ao art. 225 da
Constituição Federal, segundo o qual, “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”, incumbindo ao
Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade” (parágrafo 1o, inciso VII).
Posteriormente,
o STF deparou-se com situação semelhante, mas relativa à rinha de galos. Certas
comunidades treinavam esses animais para batalhar entre si, muitas vezes até a
morte, num jogo de apostas. A prática, também conhecida como galismo, passou a
ser regulamentada pela Lei do Estado do Rio de Janeiro n. 2.895/98. Em verdade,
a norma regulava a prática de exposição e competição entre aves de raça.
Impunha-se, por exemplo, a vistoria dos locais da prática e ainda era determinado
que, antes das competições, um médico veterinário capacitado atestasse o estado
de saúde das aves.
Esse
ato normativo foi considerado inconstitucional por violar o mesmo artigo 225,
parágrafo 1o, inciso VII, da Constituição Federal. Naquela ocasião, foi
destacado que a “proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange
tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe
incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou,
em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de
crueldade”, pois “essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a
autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir
a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as
formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal,
cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por
práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os
galos de briga”[5].
Esses
precedentes permitem visualizar, com clareza, que a proteção legal aos animais
não se circunscreve à condição de elementos do meio ambiente (Lei 9.605/98). A
tutela não é uma função do meio ambiente, pois, se assim fosse, não haveria
sentido em se vetar práticas cruéis contra animais domesticados.
Os
problemas que surgem da exegese da regra constitucional que veda a crueldade
contra animais estão mais adstritos ao conceito de “crueldade” e à própria
definição de “animais”.
É
cabível perguntar se a vedação contra crueldade abrange tanto mamíferos quanto
insetos. O mundo da zoologia é divido entre vertebrados e invertebrados. Entre
estes encontram-se insetos, moluscos, corais, águas vivas, vermes, entre
outros. Na classe dos vertebrados, destacam-se os mamíferos, repteis, peixes,
aves e anfíbios.
Uma
resposta possível para essa questão reside no conceito de senciência, ou seja,
a capacidade de sentir. A bem da verdade, a teoria da senciência é
extrajurídica e procura explicar, do ponto de vista filosófico, quem deve estar
na condição de sujeito. Para bem compreender essa questão é importante lembrar
que na tradição cartesiana-kantiana, é a capacidade de raciocínio, ou razão,
que nos caracteriza e distingue dos demais seres. É a razão que nos dá
autonomia moral e que, portanto, livra-nos dos desígnios da natureza. A razão
nos torna atores, e não meros objetos das múltiplas relações causais possíveis
na natureza. O humano torna-se senhor da natureza e dos objetos que o
circundam, podendo deles se utilizar[6].
Jeremy
Bentham opõe-se a essa vertente filosófica. Seu pensamento moral caracteriza-se
profundamente pela maximização do bem estar e felicidade. Uma ação é correta
quando beneficia a maioria. Assim, o que importa não é a capacidade de
raciocinar, mas a de sentir prazer, felicidade ou dor. Em outras palavras, a
capacidade de felicidade e de sofrimento é a característica vital que assegura
aos seres o direito a igual consideração. Bentham aduz que “se os filósofos não
fizerem a inclusão de todos os seres sencientes no âmbito da comunidade moral,
jamais conseguirão refinar-se moralmente, pois, embora os princípios da
igualdade, da liberdade e da fraternidade só possam ser concebidos e seguidos
por quem é capaz de fazer um raciocínio abstrato, a moralidade que fundamentam
não visa atender apenas aos interesses egoístas de sujeitos racionais”[7].
Embora
não seja a única significação possível, é minimamente razoável tomar a
expressão “animais” como indicativa de “seres capazes de sentimento”. A norma
que veda tratamento cruel a animais deve, ao menos, referir-se àqueles que
efetivamente têm a capacidade de sentir. A ideia de crueldade está
intrinsecamente ligada à imposição desnecessária de dor.
Assim, a vedação de maus tratos a galos e
bois, tal como expresso pelo STF nos precedentes em destaque, explica-se,
parcialmente, pelo conceito de que esses animais são seres passíveis de
sentimento. Contudo, como procurarei demonstrar na próxima coluna, a idéia de
“senciência” não esgota o problema do tratamento jurídico dispensado aos
animais.
Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e
UFMT).
[1]
Vide http://abinpet.org.br/imprensa/noticias/populacao-de-pets-cresce-5-ao-ano-e-brasil-e-quarto-no-ranking-mundial,
acesso em 8.2.2015.
[2]
Vide
http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/paginas/dia-mundial-do-vegetarianismo-8-da-populacao-brasileira-afirma-ser-adepta-ao-estilo.aspx
, acesso em 8.2.2015.
[3]
Destacou que o combate à crueldade por autoridades policiais tinha apoio na Lei
de Contravenções Penais (Decreto-lei n. 3.688, de 3.10.1941) que, em seu artigo
64 punia com prisão simples, de 10 dias a 1 mês, quem “tratar animal com
crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo”.
[4]
“COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA
FAUNA E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a
todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a
difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII
do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por
submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma
constitucional denominado ‘farra do boi’” (RE 153531, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/
Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Segunda
Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02
PP-00388).
[5]
STF, ADI 1856, Relator(a): Min. CELSO
DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011
PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-02 PP-00275 RTJ VOL-00220- PP-00018 RT v.
101, n. 915, 2012, p. 379-413.
[6] Embora passível de criticas, cujo escopo
escapam ao escopo desta coluna, destaco a visão de Luc Ferry: “É importante
compreender porque o debate sobre a diferença entre o homem e o animal
tornar-se-á central no momento do nascimento do humanismo, ou seja, logo após a
derrocada das grandes cosmologias herdadas da Antiguidade grega: com efeito, a
partir do momento em que a moral passa a fundar-se no homem e não mais na
natureza (no cosmos) ou em Deus, como para os gregos e os cristãos, a questão
da diferença entre o homem e seu primo mais próximo tornar-se-á crucial para se
tentar definir os deveres que temos uns em relação aos outros. Afinal de
contas, porque atribuir à espécie humana tanta dignidade e reclamar para ela
tanto respeito, se nada de realmente específico a distingue das outras?”.
(FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três Críticas. Trad.: Karina Jannini. 3ª Ed.
Rio de Janeiro: Ed. Difel, 2012, p. 85/89)
[7] BENTHAM, Jeremy, MILL,
John Stuart. Princípios da Moral e da
Legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1979,
p. 16. Vide ainda: “Talvez chegue o dia em que o restante do reino
animal encontre esses direitos que jamais lhe poderiam ter sido tirados de
outro modo que não pela tirania. Os franceses já compreenderam que a pele
escura não é razão para abandonar sem recursos um ser humano aos caprichos de
um perseguidor. Talvez um dia acabemos percebendo que o número de pernas, a
pilosidade da pele ou a extremidade do osso sacro são razões igualmente
insuficientes para abandonar uma criatura sensível à mesma sorte. O que mais
deveria traçar a linha da demarcação? Seria a faculdade de raciocinar ou talvez
aquela da linguagem? Mas um cavalo que tenha atingido a maturidade ou um
cachorro, para além de toda comparação, são animais mais sociáveis e razoáveis
que um recém-nascido de um dia, de uma semana ou até mesmo de um mês?
Suponhamos que o sejam e outro modo, de que isso nos serviria? A questão não é
saber se podem raciocinar nem se podem falar, e sim se podem sofrer”. (BENTHAM, Jeremy.
Introduction to the Principles of Moral and Legislation. Oxford: Oxford
University Press, 1948, p. 335). “O
juízo ético não é feito somente de razão, mas também de indignação e vergonha,
de ternura e compaixão”. (COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, moral e
religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 506/507).
http://www.conjur.com.br/2015-abr-27/direito-civil-atual-possivel-falar-direitos-animais-parte
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
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