De início é imprescindível deixar assentado que a
prisão preventiva é medida de exceção e extremada. Como tal, somente deve ser
decretada em casos excepcionais e, mesmo assim, quando não há outra medida de
caráter menos aflitivo para substituí-la (lei nº 12.403/11).
Diante do princípio constitucional da presunção de
inocência a prisão preventiva, como qualquer outra medida cautelar pessoal, não
pode e não deve ter um caráter de satisfatividade, ou seja, não pode se
transformar em antecipação da tutela penal ou execução provisória da pena.
Neste sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“A Prisão Preventiva – Enquanto medida de natureza
cautelar – Não tem por objetivo infligir punição antecipada ao indiciado ou ao
réu. - A prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder
Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a
prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases
democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem
processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva
– que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir
punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função
cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal
desenvolvida no processo penal.” (RTJ 180/262-264, Rel. Min. Celso de Mello)
Daí a clara advertência do Supremo Tribunal Federal,
que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela
absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão
cautelar, pois esta não se destina a punir o suspeito, o indiciado ou o réu,
sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de
inocência e do devido processo legal, com a consequente (e inadmissível)
prevalência da ideia – tão cara aos regimes autocráticos – de supressão da
liberdade individual, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação
sem processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. Celso de Mello).
Hodiernamente, tem sido recorrente motivar a
decretação da prisão preventiva com base no mais deplorável de todos os
fundamentos previstos no Código de Processo Penal (CPP): a “garantia da ordem
pública”. Atrelado a este fundamento, costuma-se aludir ao "sentimento de
impunidade e de insegurança na sociedade".
Primeiramente é necessário assentar que dos
fundamentos previstos no CPP para a decretação da prisão preventiva, a
“garantia ordem pública” é sem dúvida o mais questionável, criticável, vago e
impreciso de todos e, também, de duvidosa constitucionalidade para ensejar
medida cautelar extrema.
Aury Lopes Júnior destaca que o conceito de “garantia
da ordem pública” por se tratar de um conceito vago e indeterminado, serve a
“qualquer senhor, diante da maleabilidade conceitual”. Mais adiante, o
respeitável processualista informa que a origem do referido fundamento remonta
à Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava “uma
autorização geral e aberta pra prender”. (Direito Processual Penal e sua
Conformidade Constitucional...)
No mesmo sentido, Flaviane de Magalhães Barros e
Felipe Daniel Machado (Prisão e Medidas Cautelares...) para quem é necessário
diferenciar a ordem pública do clamor social.
A opinião pública – publicada - “geralmente
influenciada pelos meios de comunicação, deseja a imediata prisão do suspeito
numa espécie de vingança coletiva”, hipótese em que a prisão perde seu caráter
de cautelariedade e se converte em antecipação de pena. A influência maléfica
da mídia em processos penais de repercussão, que se transformam em verdadeiros
espetáculos, é notória.
Os princípios fundamentais que norteiam o devido
processo legal (contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, etc.) são
abandonados e trocados pelo sensacionalismo, combustível natural para o “clamor
público”.
Como bem já salientou o magistrado e processualista
Rubens Casara, “no processo espetacular o diálogo, a construção dialética da
solução do caso penal a partir da atividade das partes, tende a desaparecer,
substituído pelo discurso dirigido pelo juiz. Um discurso construído, não raro,
para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de
massa”. (entrevista concedida ao jornalista Paulo Moreira Leite)
No espetáculo conduzido pela mídia o suspeito é
apresentado ao público como se condenado fosse. Em casos em que o acusado,
apesar dos veículos de comunicação, é absolvido, a imprensa leva o público a
clamar por “justiça”, como se esta fosse sinônimo de condenação.
Tudo, é claro, sem que seja dado ao investigado,
acusado ou condenado o sagrado direito constitucional da ampla defesa. No
processo midiático o contraditório é inexistente.
A presunção de inocência é o princípio mais
maltratado. Como se percebe, este “clamor público”, confundido propositalmente
com “opinião pública”, é produzido pela mídia para atender a um sistema penal
repressor e comprometido com interesses outros, diversos do Estado democrático
de direito.
O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) em Habeas
Corpus relatado pelo decano ministro Celso de Mello já assentou que o “clamor
público”, bem como o “estado de comoção social” e a “indignação popular”, não
bastam por si só para decretação da medida extremada.
Ementa: “Habeas Corpus” – Decisão de Pronúncia –
Prisão decretada com fundamento no clamor público e na suposta tentativa de
evasão. Caráter extraordinário da privação cautelar da liberdade individual.
Utilização, pelo magistrado, na manutenção da prisão cautelar, de critério
incompatíveis com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Situação de
injusto constrangimento configurada – Afastamento, em caráter excepcional, no
caso concreto, da incidência da Sumula 691/STF – Habeas Corpus concedido de
ofício.
O clamor público não basta para justificar a
decretação ou a manutenção da prisão cautelar – O estado de comoção social e de
eventual indignação popular, motivado pela repercussão de prática de infração
penal, não pode justificar, só por si, a decretação ou a manutenção da prisão
cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e
grave aniquilação do postulamento fundamental da liberdade. O clamor público –
precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão
processual – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da
liberdade do réu. (Habeas Corpus 96.483-4 / ES - Relator: Ministro Celso de
Mello. No mesmo sentido HC 96.095)
Tão vago e impreciso e, ainda, mais absurdo e
incoerente como fundamento da “garantia da ordem pública” ou do “clamor
público” é o aludido “sentimento de impunidade e de insegurança na sociedade”.
Ora, se a prisão preventiva tem caráter cautelar e
excepcional, como já reconheceu o STF e a melhor doutrina, não podendo se
demudar em antecipação da tutela penal e nem se confundir com a prisão pena,
não pode esta ser decretada com os fins de evitar “sentimento de impunidade e
de insegurança na sociedade”.
Necessário indagar se os referidos “sentimentos” são
os que a criminologia midiática, no dizer de Eugênio Raul Zaffaroni,
desencadeia “com seu mundo paranoide” ou se por um sentimento de medo normal.
No processo midiático e na busca sistemática por uma punição célere a mídia
amplifica o medo e alimenta o pânico para justificar medidas cada vez mais
severas em detrimento das garantias constitucionais. (A palavra dos mortos...)
André Luis Callegari e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
destacam que “o medo é inserido no Direito Penal, ou seja, no sentido de dar a
uma população cada vez mais atemorizada diante do medo generalizado da
violência e das inseguranças da sociedade líquida pós-moderna, uma sensação de
“tranquilidade”, restabelecendo a confiança no papel das instituições e na capacidade
do Estado em combatê-los por meio do Direito Penal, ainda que permeado por um
caráter meramente simbólico. Não se buscam, portanto, medidas eficientes no
controle da violência ou da criminalidade, mas tão somente medidas que
“pareçam” eficientes e que, por isso, tranquilizam a sociedade como um todo”.
(Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 2, p. 337-354, jul/dez. 2010)
Nada mais demagogo e irreal do que utilizar o
conceito vazio, incerto, precário, que a tudo serve e por isso não serve a
nada, de “sentimento de impunidade e de insegurança na sociedade” para
justificar medidas repressoras e draconianas.
Melhor faria o STF se declarasse, de uma vez por
todas, a inconstitucionalidade da decretação da prisão preventiva fundamentada
pela “garantia da ordem pública” e por qualquer outro fundamento análogo,
enquanto isso não ocorre, não resta dúvida de que, como diz o poeta, “alguma
coisa está fora de ordem, fora da nova ordem Mundial”.
Leonardo Isaac Yarochewsky, Advogado Criminalista e
Professor de Direito Penal da PUC-MG
Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2015-abr-19/prisao-preventiva-nao-fins-punitivos
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