quinta-feira, 5 de março de 2009

O FURTO FAMÉLICO


MEANDROS DA JUSTIÇA


O FURTO FAMÉLICO

Segundo a doutrina e a jurisprudência, ocorre furto famélico quando o agente, demonstrando condição de maior indigência, subtrai gêneros alimentícios para satisfazer privação inadiável sua ou de seus familiares. É aquele em que o indivíduo pratica o crime para poder continuar sobrevivendo.

Na verdade, trata-se de uma das formas de manifestação de uma das excludentes de ilicitude denominada estado de necessidade que, de acordo com o art. 24 do Código Penal Brasileiro, ocorre quando o agente pratica o fato pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Embora o Código Penal tenha adotado a teoria unitária, considerando o estado de necessidade uma excludente de ilicitude, existem discussões doutrinárias. Para alguns o Código Penal prevê, embora impropriamente, no seu art. 24, tanto o estado de necessidade que exclui a ilicitude como aquele que exclui a culpabilidade. Para outros o referido dispositivo só trata de necessidade justificante (como excludente da ilicitude). Para os primeiros, ele será excludente da ilicitude quando, em situação de conflito ou colisão, ocorre o sacrifício do bem de menor valor. Já, será apenas caso de inexigibilidade de outra conduta, excludente de culpabilidade portanto, quando se trata do sacrifício de bem de igual ou de maior valor, que ocorra em circunstâncias nas quais ao agente não era razoavelmente exigível comportamento diverso.

Em termos práticos, em sendo o crime um fato típico e antijurídico, se o furto famélico for enquadrado como excludente de ilicitude (antijuridicidade), não haverá crime a punir. Caso seja considerado como excludente de culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa, o crime terá ocorrido porém não será aplicada a pena, já que a culpabilidade é o pressuposto necessário para a aplicação da pena.

Discussões doutrinárias à parte, trata-se de uma argumentação de defesa muito utilizada pelos advogados, principalmente quando ocorrem furtos em estabelecimentos que vendem gêneros alimentícios.

É evidente que muitas vezes, a alegação não funciona. Lembro-me de uma vez em que recebi a companheira de um rapaz, manifestando a intenção de me contratar para defender seu parceiro que havia sido preso em flagrante por furtar uma padaria, encontrando-se recolhido no presídio. Como na época eu não recusava trabalhos na área criminal, acedi ao pedido da moça e fui até o fórum para ver o processo, já imaginando que utilizaria a alegação de furto famélico para tentar livrar o rapaz. Infelizmente, ao ter vista dos autos, meus planos caíram por terra: como o furto fora realizado em uma padaria, eu logo imaginei que ele havia levado apenas gêneros alimentícios. Para minha desilusão, ele tinha surrupiado vários litros de bebidas alcoólicas de diversas espécies, uma grande quantidade de pacotes de cigarro, aparelho de som, etc. Enfim, nada que viesse a caracterizar a figura do furto famélico. Evidentemente, eu poderia alegar que tais bens seriam vendidos e os valores revertidos em alimentos, porém, seria subestimar a inteligência do julgador.

Relatei o fato para um colega meu e a respeito disso ele me contou o seguinte caso. Que havia sido contratado pela família de um rapaz que também havia sido flagrado furtando um estabelecimento comercial. A contrário do meu cliente, este havia furtado apenas alimentos. Só que durante a audiência, após a defesa oral em que meu colega alegou com veemência o denominado furto famélico, o juiz, olhando através dos óculos pendurados na ponta do nariz, começou a ler lentamente em voz alta a lista dos produtos furtados: 60 kg de arroz, 20 kg de feijão, 30 kg de lingüiça, 5 sacos de farinha de trigo. Nesse momento o magistrado parou, levantou os olhos do papel e por cima dos aros dos óculos, disse para meu colega: é, mas que “baita” fome estava o seu cliente hein? Tudo acabou em risos, inclusive do acusado.

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS

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