No
Brasil, as polícias tem um histórico de ações violentas espetaculosas
destruindo quilombos, esmagando revoltas populares como as de Canudos,
Contestado e Chibata e perseguindo movimentos grevistas.
Novo
livro mostra porque esses entulhos autoritários continuam até hoje sendo usado
como aparato repressivo contra as "classes perigosas".
Prefácio
do livro A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, de
Almir Felitte (Autonomia Literária, 2023).
Eu
tinha grandes esperanças quando, em 2014, me juntei a um grupo de companheiros
de ofício e de luta para criar a Ponte Jornalismo, um meio de comunicação que
procura ampliar o debate sobre os direitos humanos e que carrega como principal
bandeira a denúncia de violações cometidas pelas polícias. Não posso falar
pelos demais fundadores da iniciativa, mas sei que eu ambicionava nada menos do
que tocar corações e mentes país afora com essas denúncias e levar o papel das
forças de segurança ao centro do debate público nacional, para daí, em um futuro
próximo, conseguir mudar para melhor o sistema de justiça criminal brasileiro.
De
lá para cá, a Ponte fez muito — ajudamos a libertar uma centena de pessoas
negras presas injustamente e a mandar alguns policiais matadores para a prisão,
além de incentivar os demais veículos de comunicação a trazer parte desses
temas para sua cobertura regular —, mas o que não conseguimos foi fazer avançar
o debate sobre a necessidade de reformar as forças de segurança, principalmente
após a chegada ao poder da extrema direita em 2018. Reforma das polícias virou
um daqueles temas que os governantes preferem evitar a todo custo para não
perderem votos, um dos tantos “não falamos do Bruno” da política nacional, ao
lado da descriminalização das drogas e da legalização do aborto. O terceiro
governo Lula, por exemplo, já deu todos os sinais de que vai repetir exatamente
o que fez nas suas duas edições anteriores com relação à reforma das polícias,
quer dizer: nada.
Acho
que só fui ter a real dimensão do tamanho do desafio que é combater as
estruturas autoritárias das polícias brasileiras com a leitura do livro A
história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?. Em seu mergulho
histórico, Almir Valente Felitte revela uma surpreendente resiliência das
corporações policiais, ao mostrar como mantiveram as mesmas características de
“mecanismo de controle social em favor de um Estado marcado pela desigualdade”
ao longo de toda a trajetória do Brasil independente, sobrevivendo incólumes,
por dois séculos, a toda sorte de mudanças de regime e formas de governo. Quem
diz que o Brasil não tem instituições sólidas e políticas duradouras deveria
olhar melhor para as nossas polícias.
“Quando
as forças policiais foram criadas, nos primeiros anos do Brasil independente,
esse inimigo interno tinha o rosto das camadas negras escravizadas e dos
movimentos abolicionistas.”
Felitte
demonstra que, desde seus primórdios até hoje em dia, a polícia brasileira foi
marcada por três traços persistentes: o militarismo, que torna a estrutura das
Polícias Militares “extremamente porosa a práticas sistematicamente abusivas e
violentas”; a inquisitorialidade, traço central dos inquéritos conduzidos pelas
Polícias Civis, em sigilo e sem direito ao contraditório, que muitas vezes se
tornam o único parâmetro usado pelo Judiciário em suas condenações; e as normas
penais genéricas, abertas ou de perigo abstrato, incluindo a criminalização da
vadiagem, aplicada ao longo da maior parte do século XX, as “legislações de
crimes políticos e sociais, fortemente pautadas por doutrinas de segurança
nacional”, usadas nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares, e a guerra
às drogas, a partir dos anos 1970 — todas normas que garantiram aos “guardas da
esquina” o poder de decidirem pela prisão de suspeitos segundo critérios
subjetivos, baseados em estereótipos racistas e políticos.
Raiz
histórica
Indo
além das análises mais corriqueiras que costumam diagnosticar as causas do
autoritarismo das polícias recuando apenas até a ditadura civil-militar de
1964-1985, Felitte vai recuar até os tempos do Império para encontrar, ali, as
origens de um sistema de segurança pública com fortes características de
controle social, todo trabalhado em um imaginário de “combate a um inimigo
interno” que colocasse em risco a ordem vigente.
Quando
as forças policiais foram criadas, nos primeiros anos do Brasil independente,
esse inimigo interno tinha o rosto das camadas negras escravizadas e dos
movimentos abolicionistas, além dos grupos rebeldes descontentes com o governo.
Pessoas negras eram suspeitas por definição: ao serem detidas, precisavam
provar que eram livres e não escravizadas, “uma espécie de inversão do ônus da
prova para os negros neste período”.
A
mesma lógica se manteria após a abolição e a proclamação da República, com a diferença
de que as definições de inimigo interno das polícias seriam atualizadas,
passando a mirar nas “classes perigosas” dos trabalhadores assalariados,
imigrantes e, como sempre, dos pobres e negros em geral, com o apoio de uma
legislação que criminalizava a capoeira, o direito de greve e a vadiagem, além
de permitir a retirada compulsória e definitiva de “estrangeiros indesejáveis”.
“As
polícias brasileiras participaram de atos espetaculosos de violência,
destruindo quilombos, esmagando revoltas populares como as de Canudos, do
Contestado e da Chibata e perseguindo movimentos grevistas.”
Ao
longo das páginas, vemos as polícias brasileiras participarem de atos
espetaculosos de violência, destruindo quilombos, esmagando revoltas populares
como as de Canudos, do Contestado e da Chibata e perseguindo movimentos
grevistas, além de exercer no cotidiano da população uma violência mais miúda,
sorrateira e amplamente disseminada, na forma de “práticas a-legais de controle
de comportamento dos indivíduos nas vias públicas”, em que a polícia
“centrava-se nos considerados vadios, em especial as pessoas negras, procurando
impor uma norma de comportamento geral aos mais pobres, tudo feito sem maiores
controles do sistema judicial”.
Algo
muito parecido com o que acontece na prática policial das abordagens, também
chamadas de buscas pessoais, revistas, enquadros ou baculejos, que são
simplesmente a atividade policial mais comum executada pelas Polícias Militares
atuais. Só a PM do estado de São Paulo revistou 225,3 milhões de pessoas entre
2005 e 2022, o equivalente a toda a população brasileira. Diversos estudos
evidenciam o caráter racista dos enquadros: nos estados de São Paulo e no Rio
de Janeiro, negros têm quase cinco vezes mais chances de serem abordados pela
polícia do que os brancos; na cidade de São Paulo, jovens negros são duas ou
até seis vezes mais enquadrados do que brancos da mesma idade, a depender do
bairro; e, na cidade do Rio de Janeiro, pretos e pardos, embora representem 48%
da população carioca, respondem por 63% dos alvos dos baculejos.
Mesmo
sendo uma ação de controle social e racial sem qualquer relevância no combate à
criminalidade, já que o número de prisões em flagrante corresponde a menos de
1% do total das abordagens, e também sem amparo legal, uma vez que o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma série de decisões afirmando a
ilegalidade das buscas pessoais baseadas apenas na aparência ou em “atitudes
suspeitas”, a prática dos enquadros foi reafirmada como política de Estado na
82ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública,
em junho de 2022. O encontro, que reuniu representantes de todos os estados
brasileiros, inclusive aqueles governados por partidos de centro-esquerda (PT,
PSB e PDT), deixou claro que, para governantes de todas as tendências
ideológicas que comandavam os estados, o combate ao racismo não valia o
perrengue de confrontar as estruturas autoritárias de suas polícias.
À
prova de mudanças para melhor
AHistória
da Polícia no Brasil mostra o quanto a história brasileira rimou ao cometer os
mesmos erros em suas duas transições democráticas, uma após a ditadura do
Estado Novo, em 1945, e a outra com o fim da ditadura civil-militar, em 1985.
Nos dois momentos, o país realizou transições incompletas, em que tentou
instalar regimes democráticos sem tocar na arquitetura policial construída ao
longo do período ditatorial anterior, mantendo “os aparatos policiais típicos
de uma visão de controle social e político”, que, apesar dos pesos e
contrapesos de um Estado democrático de direito, continuaram a impor um estado
de exceção permanente à boa parte da população brasileira.
Tem
algo de trágico nessa história, pela maneira como o caráter autoritário das
polícias acabou se impondo sobre todas as tentativas de implantar políticas
garantidoras de direitos. É aí que o livro analisa as políticas tímidas e
erráticas dos governos federais nessa área, por meio de iniciativas como os
Gabinetes de Gestão Integrada, o Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania e o Sistema Único de Segurança Pública, que nunca conseguiram avançar
na direção dos “princípios humanistas almejados” porque “encontraram na própria
arquitetura policial construída na Ditadura, até hoje intocada, um obstáculo
para sua realização”.
“Recentemente,
a adoção de câmeras corporais pela polícia de São Paulo resultou na queda tanto
da letalidade como da vitimização policial, um bom exemplo que passou a ser
seguido em outros Estados.”
Assim,
as tentativas de combater o legado autoritário das polícias acabaram resultando
todas em fracasso. E é bom lembrar que houve, sim, algumas tentativas reais, ao
menos nas duas primeiras décadas após a redemocratização. Aplaudida pelos
defensores de direitos humanos, a lei federal 9.299, de 1996, conhecida como
Lei Hélio Bicudo, transferiu para a justiça comum os crimes dolosos contra a
vida cometidos por policiais, numa tentativa de combater a impunidade dos
policiais que matam. Mas logo os “cidadãos comuns” dos tribunais dos júris se
mostraram tão lenientes com a violência policial quanto eram os juízes dos
tribunais militares. Nos anos seguintes, a letalidade policial cresceu como
nunca.
O
mesmo se deu com as iniciativas regionais, dos poucos governadores que tentaram
interferir no caráter autoritário de suas polícias, mas viram suas iniciativas
serem destruídas por seus sucessores. Foi o que aconteceu, por exemplo, com as
gestões de Franco Montoro e Mário Covas em São Paulo, sucedidas por
governadores que preferiram interromper qualquer política de controle
democrático da segurança pública e estimularam a letalidade policial, que
chegou ao auge durante os governos tucanos de Geraldo Alckmin e João Doria.
Sobre
isso, José Afonso da Silva, secretário de Segurança Pública no governo Covas
entre 1995 e 1999, reconheceu o próprio fracasso ao comparar sua gestão com a
de Saulo de Abreu Castro Filho, um de seus sucessores na gestão Alckmin, entre
2002 e 2006. “A nossa era uma política de segurança democrática, o que significava,
em primeiro lugar, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. A
política do Saulo tomou outro rumo, especialmente no que tange à ação da
Polícia Militar”, me disse numa entrevista. Uma afirmação que encontra eco no
desabafo de Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante geral da Polícia
Militar no governo fluminense de Leonel Brizola e, não por acaso, um dos poucos
negros a assumir essa função no Brasil. “É certo que falhamos. Não conseguimos
implantar o modelo democrático que defendíamos.
Não soubemos prender traficantes nas favelas sem invadir barracos, sem
colocar em risco a vida de terceiros; não soubemos fazer a polícia investigar
para prender; não soubemos fazer a polícia entender que a sua principal tarefa
era prender e não matar”, afirmou no livro O futuro de uma ilusão: o sonho de
uma nova polícia (Freitas Bastos Editora, 2001).
“A
prática tem demonstrado que é mais fácil o legado autoritário das polícias
corromper outras instituições, mesmo aquelas sem tradição militarista, do que
se deixar influenciar por avanços democráticos.”
Recentemente,
a adoção de câmeras corporais pela polícia de São Paulo resultou na queda tanto
da letalidade como da vitimização policial, um bom exemplo que passou a ser
seguido em outros Estados, mas alguns analistas apontam que, se não vierem
acompanhadas de reformas profundas na estrutura policial (leia O fim do
policiamento, de Alex Vitale), os efeitos positivos de medidas isoladas, como
essa, tendem a se dissipar com o tempo.
Aliás,
a prática tem demonstrado que é mais fácil o legado autoritário das polícias
corromper outras instituições, mesmo aquelas sem tradição militarista ou de
controle social, do que se deixar influenciar por avanços democráticos. Felitte
analisa o caso das Guardas Civis Municipais, as quais, mesmo tendo sido criadas
após o fim da ditadura civil-militar, sem vínculos diretos com as Forças
Armadas e disciplinadas por um Estatuto Geral de caráter preventivo e
comunitário, passaram a incorporar, na prática, as estruturas e a ideologia das
suas irmãs mais velhas, as Polícias Militares. A influência foi tanta que as
GCMs passaram a ser usadas em ações típicas das PMs, como a repressão contra
trabalhadores organizados e pessoas em situação de rua, sem falar dos guardas
que se organizam em grupos de extermínio com simbologia de “caveiras”.
Há
pouco tempo vimos algo parecido acontecer com a Polícia Rodoviária Federal
(PRF). Bastaram poucos anos do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro
para transformar uma corporação, que até então não tinha qualquer histórico de
vocação militarista ou de uso para controle político e social, em uma milícia
com vocação para tropa de extermínio e polícia política, capaz de participar
das piores chacinas da história do Rio de Janeiro, executar um homem negro com
transtornos mentais à luz do dia numa câmara de gás improvisada e, nas eleições
de 2022, segundo denúncias, realizar operações nas estradas com o único
objetivo de supostamente atrapalhar o voto dos eleitores no candidato da
oposição.
Que
democracia é essa?
Quem busca olhar a realidade do país a partir do ponto de vista da maioria da população nacional, pobre e negra, que sofre diretamente a ação das polícias, não tem como não começar a questionar a natureza da democracia à brasileira.
FAUSTO SALVADORI
é jornalista e cofundador da Ponte Jornalismo.
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