Em
livro provocador, a obra do revolucionário peruano em diálogo com esquerdas.
Morto aos 35, criativo e profundo, ele destoou dos marxistas ortodoxos – mas
também dos que viam a tradição dos povos originários como congelada e imutável
Enquanto
escrevo esta apresentação, a eleição presidencial peruana de 2021 segue
indefinida, mesmo após a apuração de todas as urnas do país. Pedro Castillo
obteve uma estreita vantagem de 44 mil votos sobre Keiko Fujimori e deve ser
declarado vencedor assim que a justiça eleitoral peruana julgar os recursos
impetrados pela candidata da extrema direita. É impossível não ver na provável
vitória eleitoral de Castillo, um professor e líder sindical com fortes laços
indígenas à frente de um partido político que combina educação popular,
ativismo sindical e auto-organização indígena, o espectro do mais original
pensador marxista latino-americano: José Carlos Mariátegui.
Afinal,
Mariátegui foi o maior defensor da articulação entre o radicalismo político
derivado das análises marxistas com a linguagem dos movimentos populares e
indígenas da América Latina. E nove décadas após sua morte, o partido-movimento
Perú Libre recupera as tarefas emancipatórias legadas por Mariátegui aos
trabalhadores peruanos ao derrotar o velho projeto autoritário, colonialista e
extrativista sintetizado na candidatura de Keiko Fujimori. Não parece
despropositado observar na atual conjuntura político-eleitoral peruana o
anúncio de um novo momento para a América Latina: as forças do progresso tendem
a triunfar, ainda que tenham que superar a encarniçada resistência dos acólitos
reacionários representantes da política de espoliação neoliberal.
Exatamente
por se tratar de uma disputa tão importante para o futuro de nosso
subcontinente é que necessitamos compreender as ideias que balizam parte
significativa da esquerda peruana e, ainda hoje, alimentam o imaginário de
ativistas sociais, sindicalistas, trabalhadores e comunidades tradicionais em
diferentes contextos nacionais: o comunalismo ayllu enraizado nas tradições de
resistência e luta das comunidades indígenas andinas que, a despeito do
genocídio colonial imposto pelos europeus, jamais deixaram de reinventar suas
próprias tradições rebeldes, tanto no campo quanto nas cidades. Mariátegui foi
quem melhor compreendeu a força dessa tradição de luta contra o Estado colonial
antes e depois do ciclo de independências políticas que varreu a América Latina
do século XIX.
Criador
do jornal socialista “Amauta” – “sábio” em quíchua, língua do império Inca –,
órgão cultural que marcou toda uma geração de intelectuais e ativistas
políticos nos anos 1920 e 1930, além de secretário-geral do Partido Socialista
Peruano, Mariátegui morreu com apenas 35 anos, porém, ainda assim, deixou uma
marca indelével no pensamento radical latino-americano. Atento tanto às
rebeldias locais, indígenas, estudantis e trabalhistas, quanto aos levantes
europeus, ele soube sintetizar as dimensões universal e particular da
emancipação humana em um projeto político singular cuja força alimentava-se da combinação
de movimentos populares regionais com a teoria revolucionária marxista,
conhecido como “socialismo indo-americano”.
Esquematicamente,
trata-se de uma síntese apoiada na aposta de que as lutas de classes modernas
seriam bem recebidas por formas culturais pré-modernas, isto é,
“proto-comunistas” existentes nos Andes. Nesse sentido, a comunidade ayllu que
havia resistido ativamente à mercantilização capitalista impulsionada pela
colonização, seria o embrião de um movimento socialista capaz de transformar
sociedades de castas neocoloniais em verdadeiros Estados nacionais
independentes. Isso só aconteceria quando o comunalismo ayllu e socialismo
europeu se aliassem em uma atividade revolucionária de massas capaz de unificar
povos indígenas e trabalhadores organizados por meio de um projeto político,
capaz de articular as escalas local, nacional e internacional.
Ou
seja, Mariátegui almejou “formar” uma nação recorrendo a uma espécie de desvio
internacionalista por meio do qual incontáveis comunidades indígenas espalhadas
por diferentes partes da América Latina superariam os limites dos atuais
Estados nacionais unificando-se ao redor de um projeto voltado para o futuro do
subcontinente e não mais sufocado por seu passado colonial. Em outras palavras,
o marxismo romântico e decolonial de Mariátegui não essencializou a cultura
ameríndia pré-colonial – de resto, tarefa levada a cabo pelos próprios
colonizadores a fim de reproduzir as bases de sua dominação. Ao contrário, ele
procurou desnaturalizar os fundamentos de nossa subordinação pós-colonial por
meio de uma síntese politicamente internacionalista que, por isso mesmo,
enraíza-se nas tradições locais e nacionais.
De
uma certa maneira, o livro de Deni Alfaro Rubbo, “O labirinto periférico:
aventuras de Mariátegui na América Latina”, moveu-se impulsionado por essa
dialética entre o local, o nacional e o internacional posta pelo marxismo
mariateguiano. Até onde eu sei, trata-se do primeiro estudo sistemático sobre a
recepção da obra de José Carlos Mariátegui nas ciências sociais
latino-americanas. Tendo por base uma refinada pesquisa teórica e documental
desenhada para compreender a circulação e a apropriação das ideias do marxista
peruano em nosso subcontinente, o livro de Deni amparou-se em um vasto material
empírico abarcando desde entrevistas com militantes, intelectuais e editores
diretamente ligados ao legado de Mariátegui, além de notável esforço de
consulta de acervos públicos e arquivos particulares em diversos países. Entre
esses acervos e bibliotecas vale destacar a Casa Museo José Carlos Mariátegui
em Lima, a Bibliothèque Nationale de France (BNF) em Paris e a Casa de las
Americas em Havana. No Brasil, Deni debruçou-se sobre o Fundo Florestan
Fernandes (FFF) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), além do
Memorial Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB) e do Centro de
Documentação e memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
É
dispensável dizer que a investigação desse conjunto de coleções, acervos e
fontes espalhados por América Latina e França, permitiu que o livro adquirisse
uma riqueza ímpar em termos de precisão e profundidade, tornando seu enfoque
marcadamente inovador no campo de estudos mariateguianos. Deni afirma que a
combinação entre um esforço editorial hercúleo levado adiante pelos familiares
de Mariátegui e determinadas circunstâncias sociopolíticas e culturais vividas
no Peru e na América Latina viabilizou a construção de redes de circulação
internacional espalhando as ideias do marxista peruano. Assim, aos poucos, uma
imagem heterodoxa de Mariátegui como um dos principais referenciais de
reconstrução do marxismo latino-americano emergiu em flagrante contraste tanto
em relação às teses dualistas e desenvolvimentistas que marcaram historicamente
a esquerda em nosso subcontinente, quanto em relação às teorias culturalistas
que essencializam os povos tradicionais atualizando o mito do “bom selvagem”.
Explorando
a dialética entre o local, o nacional e o internacional, um dos pontos fortes
desse livro é, sem dúvidas, a minuciosa análise do processo de difusão, em
especial a partir dos anos 1960, da obra de Mariátegui por diferentes
conjunturas políticas e realidades nacionais, as tais “aventuras
latino-americanas” referidas no subtítulo. Além das apropriações ideológicas
realizadas por órgãos estatais e organizações políticas peruanas, Deni estuda a
apropriação de Mariátegui por duas figuras-chave do marxismo latino-americano:
o peruano Aníbal Quijano e o argentino José Aricó.
Ademais,
Deni demonstra como o campo de estudos “decoloniais” na América Latina, em
especial o Grupo Modernidade/Colonialidade, apropriou-se de Mariátegui por meio
da “crítica ao eurocentrismo”. Finalmente, o livro examina a recepção de
Mariátegui no Brasil com base em um mapeamento de seus leitores: intelectuais,
exilados e militantes de organizações partidárias. Trata-se de uma espécie de
arqueologia das ciências sociais no país, com especial destaque para Florestan
Fernandes e Michael Löwy. Assim, percebemos como o autor dos “Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana”, a despeito de raramente se referir ao
Brasil, influenciou intérpretes decisivos de nossa sociedade. Por tudo isso,
tenho certeza que o livro de Deni Alfaro Rubbo irá satisfazer a todos aqueles
que buscam compreender e transformar a atual encruzilhada latino-americano.
Afinal, o labirinto periférico continua tão desafiador nos dias correntes
quanto nos tempos de Mariátegui.
https://outraspalavras.net/descolonizacoes/convite-ao-comunismo-indigenista-demariategui/

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