SEMANA
QUE EXPÕE TODA SUBSERVIÊNCIA DO FUTEBOL BRASILEIRO ACABA REVIVENDO MEMÓRIA DO
PERSONAGEM POLÍTICO MAIS POLÊMICO, REBELDE E FOLCLÓRICO DA HISTÓRIA DO ESPORTE
NACIONAL
Nos
primeiros meses de 1970, sob o chumbo grosso da ditadura, o pau cantava nos porões
do golpe desde a implantação do AI-5 em dezembro de 1968. Ato institucional que
endureceu o regime, fechou o Congresso, cassou mandatos e retirou direitos
políticos, levando de braçada milhares de intelectuais, professores e
militantes para o exílio, voluntários ou não.
Entre
os corajosos oponentes do regime que ficaram, o equilíbrio era como em uma
corda bamba, da qual não poucos caíam, muitas vezes mortos. Outros, por
prestígio, competência ou sorte se mantinham. Era o caso do técnico escolhido
para conduzir a seleção brasileira ao mundial do México, a ser realizado em
maio/junho daquele ano.
Contratado
pela CBD em fevereiro de 1969, João Saldanha montou um time dos sonhos que se
classificou nas eliminatórias para a Copa do Mundo com seis vitórias em seis
jogos — um fato inédito até então. Mesmo assim, sua vida não teve um minuto de
paz durante o ano e pouco em que comandou os canarinhos.
João
Alves Jobim Saldanha nasceu em Alegrete, no Rio Grande do Sul, no ano
emblemático de 1917 (da Revolução Russa). A família participou da revolta
gaúcha de 1923 ao lado de Borges de Medeiros (os Ximangos), e reza a lenda que
o pequeno Joãozinho ajudou a luta armada no tráfico de munição pela fronteira
com o Uruguai, com apenas 6 anos de idade.
Após
breve refúgio no país vizinho, a família Saldanha se transferiu para o Brasil,
na cidade de Curitiba, onde Joãozinho toma contato como futebol pela primeira
vez. Morando a poucas quadras do estádio Joaquim Américo, na Baixada do bairro
Água Verde, o garoto se entretinha assistindo aos treinos e jogando com a
equipe do Clube Atlético Paranaense, do qual se tornaria torcedor.
Na
capital das araucárias, Saldanha ainda estudou no colégio Zacarias, ao lado de
outro personagem fundamental da vida brasileira, um certo jovem Jânio Quadros.
No final dos anos 20 a família estabelece-se no Rio de Janeiro, e ali começaria
a trajetória no futebol e na política de João Saldanha. Jogou no Botafogo por
breve período nos anos 1930, e adentra na militância com destaque, integrando
na juventude comunista do PCB — o partidão —, sendo preso e fichado em 1947,
após a queda de Getúlio Vargas. Foi dirigente do Botafogo e após período na
clandestinidade retorna como técnico do clube em 1957. Ganha o título carioca e
consagra-se como mais um personagem do futebol brasileiro.
Durante
todo o período exerceu o jornalismo. Foi determinante para a grita de uma certa
imprensa botafoguense (reforçada por personagens como Armando Nogueira e Sandro
Moreyra, todos alvinegros) que “forçou” a convocação e escalação de Garrincha
como titular na Copa de 1958, que deu o primeiro título mundial ao Brasil.
Sempre
crítico e folclórico, São muitas as histórias que ajudaram a construir o mito
de Saldanha. Era um contador de histórias que beiravam o absurdo e o fantástico.
Como esteve um período na clandestinidade, contava aos amigos, sem sequer
corar, que marchara ao lado de Mao Tsé Tung sobre Pequim, que presenciara a
queda de Stalin e aconselhou-se com Krushev, ou acompanhara in loco algumas
batalhas da Revolução Espanhola. Encarava seus inimigos com revólver, entre
outras.
Ninguém
duvidava, ou na dúvida ficava a lenda, que João Saldanha de fato era. Afinal,
vivíamos um tempo em que ganhar um campeonato carioca na função de maestro,
tendo sob sua batuta verdadeiras lendas como Didi, Nilton Santos e Garrincha
ainda era uma chancela maior que a de qualquer presidente de quaisquer
repúblicas — socialistas ou não — mundo afora.
Após
o fracasso do escrete no mundial de 1966 na Inglaterra — do qual Saldanha fora
um dos mais enfáticos críticos — seu nome foi frequentemente sondado para
assumir o selecionado. Até que em 1969, certamente com a distração desavisada
dos dirigentes da CBD quanto às preferências políticas do famigerado
jornalista, finalmente aconteceu. Saldanha tornou-se técnico da seleção.
Intuitivo
por completo, não era de fato um profissional no sentido mais estrito do termo.
Mas tinha a mais fina flor da história do futebol a sua disposição, em pleno
auge. Escalava um ofensivíssimo 4-2-4, com “marcação flutuante”, ignorou quase
por completo jogadores de times da capital paulista, e baseou a seleção nas
duas maiores agremiações do período: Santos e Botafogo. Disse que ia chamar “só
as feras”. Daí surgiu o apelido daquele time: as “Feras do Saldanha”.
Apesar
do triunfo nas eliminatórias, sua passagem foi truculenta. Começou logo de cara
encrencando com ninguém menos que Pelé. Sempre dizia que o “Rei” estava em “fim
de carreira” que “não era titular absoluto”. Graças aos deuses do olimpo da
bola, o camisa 10 não decepcionou e foi o grande jogador daquele período,
apesar das turras com o treinador.
Com
a preparação física, pouco se importava. O que levou à pedida de demissão de
membros da comissão técnica. Técnicos mais experientes o criticavam pela pouca
proteção à defesa de seu esquema. A imprensa de São Paulo, não é preciso dizer,
o massacrava pela pouca atenção dada aos jogadores “serra-acima” do estado,
sendo só o clube caiçara, maior do mundo à época, sempre lembrado.
Mas,
vitorioso, o auge das desavenças estava por vir. Respondendo a uma
despretensiosa pedida do ditador Emílio Garrastazu Médici, pela convocação do
atacante Dario, do Atlético Mineiro, Saldanha proferiu a um repórter: “o
presidente escala o ministério dele e eu escalo meu time”. Pronto,
imediatamente alguém lembrou que Saldanha era um comunista histórico, que
representava ameaça ao regime e que seria uma humilhação sem precedentes à
“redentora” caso um sujeito com predicados tão perigosos levantasse a taça dali
a alguns meses no México.
Saldanha
foi demitido e Mário Zagallo, ex-jogador, perfil conservador e com comissão
técnica formada por militares como Carlos Alberto Parreira e Claudio Coutinho,
assume o comando das “feras” preparadas por João Saldanha, com 100% de
aproveitamento na qualificação para o torneio mais importante da Terra.
O
resto é história. Zagallo teve seus méritos, ganhou a copa com um esquema que,
se não era revolucionário, era moderno e eficiente, também obteve 100% dentro
da copa e trouxe o tricampeonato e a taça Jules Rimet em definitivo ao país.
Seguiu como técnico em 1974, tomou um baile da Holanda e caiu em desgraça. Em
1996, retornou para comandar a seleção naquele que foi o maior vexame e a mais
vergonhosa posição que o futebol brasileiro já tomou em sua existência (não,
não foram os 7×1 em 2014).
O
Brasil, sob as ordens de Zagallo, recusou-se a frequentar o pódio olímpico e
receber a medalha de bronze dos jogos de Atlanta 1996, que teve como campeã a
Nigéria e vice a Argentina — sozinhas no palco da premiação. O maior ato
antidesportivo sob o manto amarelo, hoje tão falado e servindo de indumentária
a propósitos tão baixos, por gente tão covarde quanto os atletas que desfilam
com ela nos gramados.
Naquela
noite de 1996 em Atlanta, a mesma cidade que vira tantos negros dependurados em
árvores após serem covardemente linchados e torturados pela segregação racial,
via uma seleção africana sair-se gloriosa com a medalha dourada. Enquanto isso,
a bordo de um avião, a covardia estava definitivamente convocada e escalada. De
verde e amarelo.
João
Saldanha morreu em 1990, em Roma, cobrindo como jornalista a Copa da Itália. A
verdade é que um Saldanha não nasce todo dia em qualquer esquina. Não veremos
em futuro tão breve um técnico ou grupo de atletas se posicionando contra um
regime assassino como este que ora nos assombra, como assombrava em 1970.
Afinal,
se Tite não é Saldanha, Neymar, Casemiro e Thiago Silva tampouco são Tostão,
Sócrates, Casagrande, Falcão ou aquele ao qual versou Gilberto Gil: “prezado
amigo Afonsinho / eu continuo aqui mesmo, aperfeiçoando o imperfeito / dando um
tempo, dando um jeito…”.
https://www.cultura930.com.br/um-joao-saldanha-nao-nasce-todo-dia-em-qualquer-esquina/?fbclid=IwAR0lcRPi1cUES0QUwDOfJesCG7mBDVZIZUP5ujbvoTKwdST57v0s15KvHp0

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