“A
virtual cassação dos direitos políticos do ex-presidente e seu encarceramento
não se devem a erro judicial”.
Em
1894, o capitão Alfred Dreyfus, inocente, foi condenado por um tribunal militar
à degradação e ao degredo perpétuo “em recinto fortificado”, isto é, as galés,
enquanto o responsável pelo crime de espionagem, de que ele fôra acusado, era
declarado inocente.
Não
se tratava, porém, de erro judicial o escândalo que marcaria a Terceira
República, mas de conjuração urdida pelos militares, da qual participaram todas
as instâncias do poder francês, nomeadamente, além dos generais, o poder
judiciário, o ministério da justiça e a imprensa, a quem coube, em conluio com
os demais atores, o crucial papel de convencimento da opinião pública.
A
França do final do século XIX vinha da derrota traumática na guerra
franco-prussiana, da perda da Alsácia-Lorena (1871), da ocupação pelas tropas
de Bismarck, e precisava recompor a fé nacionalista em frangalhos, a confiança
perdida em suas forças armadas, e a esses objetivos serviam as mobilizações
antissemitas e antirracistas de um modo geral, o ódio fomentado contra os
alemães, que tentava reascender o patriotismo, a xenofobia e a intolerância.
O
capitão Alfred Dreyfus era judeu, nascera na Alsácia e falava alemão. O
judiciário civil-militar não carecia de mais “provas” para condená-lo, eram
suficientes as “razões de Estado” (ou “convicções” de seus adversários) que se
sobrepunham às razões do direito, e antes da sentença do conselho de guerra já
falara a opinião pública manipulada.
A
condenação seria aceita sem traumas e foram precisos quatro anos de resistência
de seus advogados para que o tema voltasse à baila, mobilizando principalmente
intelectuais, liderados por Anatole France e Émile Zola, que, na forma de carta
ao presidente da República, Félix Faure, publica, em 1898, o libelo “J’accuse”.
Denuncia o crime que a conspiração da caserna cometia contra o capitão,
identifica seus responsáveis e qualifica o processo como o “abominável caso
Dreyfus”.
O
capitão é afinal inocentado em 1906, pelo “Tribunal de Cassação”, reintegrado
ao exército e lutaria na primeira guerra mundial. Zola seria processado e
obrigado a asilar-se na Inglaterra, acusado do crime de difamação, por haver
denunciado o general du Paty de Clam como principal articulador do processo
militar e da urdidura infame.
Nesse
texto, seminal, Zola desnuda a farsa, expediente político já de há muito
conhecido da História e que se tornaria recorrente no Estado moderno. Denuncia
como crime terem os patrocinadores dos processos contra Dreyfus mobilizado a
imprensa para manipular a opinião pública e criar o clima favorável à
condenação sem provas do crime, e os acusa de haver eles próprios, acusadores e
julgadores associados no feito, tramado uma conspiração para condenar um
inocente.
Como
se tivesse olhos voltados para nossa realidade, escreve o autor de O germinal:
“É um crime confundir a opinião pública, utilizar para uma sentença fatal essa
opinião pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os
pequenos e humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância (…). É um
crime explorar o patriotismo para as obras do ódio; é um crime, por fim, fazer
do sabre o deus moderno, quando toda a ciência humana está a serviço da obra
iminente da verdade e da justiça.”
O
“caso Dreyfus” – como ficou conhecida a manipulação do processo judicial para
condenar um inocente – é considerado símbolo moderno de iniquidade política.
Mas trata-se de expediente de que sempre lançou mão o poder, a serviço das mais
variadas propostas, desde puras e simples “razões de Estado” até devaneios
messiânicos de salvação nacional, como livrar o país da corrupção, mesmo ao
custo de corromper o direito.
Os
diretores do processo repressivo policial-judicial, nesse contexto, são alçados
à condição de heróis nacionais, e dispensados dos deveres de observar a
Constituição e o devido processo legal. Os crimes contra os direitos dos
investigados – como tráfico de influência, manipulação de provas e depoimentos,
seleção de testemunhas, o acumpliciamento entre julgador e acusador, delações e
vazamentos selecionados – são pré-absolvidos pelas razões cívicas do objeto da
repressão. Noutras palavras, a tortura pode se justificar pela necessidade da
confissão, tanto quanto ao réu é cerceado o direito a julgamento justo – ponto
inegociável do direito – simplesmente porque se trata de um réu previamente
condenado.
A
virtual cassação dos direitos políticos de Lula e seu encarceramento não se
devem a erro judicial, posto que resultam de bem urdida conspiração da melhor
cepa do poder dominante: o poder judiciário em todas as suas instâncias, desde
juízes de pisoà Suprema Corte, o Ministério Público Federal, as forças armadas
(relembre-se a intervenção do general Villas Bôas, então comandante do
exército, acuando o débil STF), as forças da repressão (polícia federal e
similares), o grande capital financeiro nacional-internacional, e, principal
porta-voz da casa-grande, a imprensa, manipulando versões segundo os interesses
dos aprendizes de Torquemadas de Curitiba, onde se instalou uma verdadeira
trupe de assaltantes do direito, chefiadas por essa figura sem escrúpulos
jurídicos que é o ex-juiz e ex-ministro de Bolsonaro (agora advogado de
interesses privados bem remunerados), na verdade o chefe do conluio, comandando
procuradores e policiais na caça às bruxas que a loucura comum selecionava para
o pelourinho judicial.
Repete-se a história.
Contra
Dreyfus, o inescrupuloso general du Paty de Clam conduzia as investigações e o
julgamento; na infâmia contra Lula, o ex-juiz Sergio Moro dirigiu os passos dos
procuradores, orientou investigações e inquéritos e ditou a acusação do
Ministério Público, para ele mesmo julgar, condenando o acusado, que era
acusado antes da apuração dos fatos, e condenado antes do inquérito e dos
procedimentos processuais.
Porque,
no caso de Lula, o inquérito e o processo judicial tiveram apenas valia formal,
a de dar aparência de honestidade a uma sentença condenatória desde sempre
viciada porque lavrada por um juiz sem condições éticas de exercer a
magistratura. O “processo” e a sentença, no piso e no tribunal regional,
constituem uma só operação política, ao arrepio da mais comezinha ideia de
direito, mandado às favas, como diria o coronel Passarinho.
O
impedimento inconstitucional da posse de Lula na chefia da Casa Civil da
presidente Dilma, levada a cabo por ação que começa com Moro e termina com o
inefável ministro Gilmar Mendes, e, na sequência, o impedimento de sua
candidatura à presidência da República, atendiam ao reclamo da casa-grande
decidida a impedir, primeiro a continuidade do governo petista, e, por fim, o
retorno do partido ao poder pelas mãos da soberania popular. Foram etapas do
processo mais profundo e mais radical de demonização do PT e do ex-presidente,
processo ainda hoje mantido de pé pela idiossincrasia reacionária da grande
imprensa. Eram uma necessidade do sistema vigente. Correspondiam à aliança
ideológica e fática da direita com a socialdemocracia, representavam um
realinhamento das forças reacionárias e conservadoras.
Mas,
como já observado por Mino Carta, se Moro é o chefe da operação, não é o
cabeça, pois lhe faltam para isso estatura política e autonomia da vontade. Seu
papel é similar ao de Ronnie Lessa no assassinato de Marielle Franco: é preciso
identificar o mandante, quem, de perto ou de longe conduzia as peças desse jogo
de marinetas. É preciso saber quem está atrás do falso Catão dando-lhe, como
foi dada, força e certeza de impunidade para pisar e pisotear os fundamentos da
democracia constitucional, desmoralizar o poder judiciário já de si tão carente
de respeito pela sociedade, negando ao acusado o direito inalienável a um
julgamento justo.
Ora,
o ex-juiz jactava de não cuidar da imparcialidade, e seu ajudante de operações,
o procurador-chefe, sempre se viu como a versão tropical de um Eliot Ness; sem
provas e nem um pouco interessado em apurá-las, porquanto pleno de convicções,
como os néscios e fanáticos de todo tipo. Juntos, numa associação delinquente,
promíscua, apoiados na omissão cúmplice do Supremo e na solidariedade
corporativa dos Conselhos da Magistratura e do Ministério público, juízes e
procuradores patrocinaram um julgamento de exceção, interferiram no processo
democrático eleitoral de 2018, retirando da disputa o candidato que liderava as
pesquisas de intenção de votos, e condenaram ao cárcere um inocente. Uma
operação política até aqui coroada de êxito e vantagens pessoais. Um crime
irreparável contra um inocente, contra o direito, contra a Constituição e
contra a República.
O
“caso Dreyfus”, foi cunhado como “símbolo moderno e universal da iniquidade”.
Como ficarão registrados pela História os crimes de Moro e seus cúmplices?
https://vermelho.org.br/coluna/um-crime-monstruoso/?fbclid=IwAR2z_YnVHuI3NGA2uYMDlB-lDyH7ptL1eND_RBatFd4aM_2uqvvrayJcIhE
https://www.proust.com.br/post/no-brasil-p%C3%B3s-covid-as-utopias-ainda-encontrar%C3%A3o-seu-lugar?postId=6022fbe8fcc01e0017638554
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