O
termo Utopia possui como significado lugar ou época não presente, mas que podem
ser construídos no futuro; ela se associa geralmente a imagens de sociedades
fundamentadas em leis mais justas e em instituições político-econômicas
verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade.
Distopia,
seu oposto, se refere também a uma época em que se viva sob condições de
extrema opressão, desespero ou privação. Sociedades distópicas são
caracterizadas pelo autoritarismo anárquico, condições socioeconômicas e
ambientais degradadas. A tecnologia utilizada pelo Estado ou por corporações
econômicas se tornam, então, ferramentas de opressão, de destruição de
parâmetros essenciais como verdades- mentiras, pela manipulação dos seres e
pela criação de dóceis e acovardados rebanhos humanos.
Mesmo
num país desigual, injusto e desagregado socialmente como o nosso, quando e se
a pandemia provocada pelo Covid 19 for vencida, podemos imaginar construções
onde a solidariedade entre os homens seja retomada, utopia onde o Estado se
reestruturará em função das necessidades das maiorias, quando a ciência e a
razão voltarão a iluminar corações e mentes. Mesmo que sejam cada vez mais
remotas essas possibilidades, elas devem permanecer em nosso horizonte e por
elas deveremos combater.
No
entanto, deveremos preparar nossos espíritos emoldurados pela dor e pelo
sofrer, para uma árdua luta contra as correntes obscurantistas, destruidoras da
civilização; contra a sociedade totalitária e desumanizada, que nos tentarão
impor!
Para
tal, queremos nesse ensaio visitar alguns trabalhos literários distópicos,
antíteses da Utopia nas obras literárias, que na expressão do The New Yorker
“são ficções, sim; irrealidades, jamais!”.
Como
será o Admirável Mundo Novo, tomado por empréstimo dos lábios de Próspero,
protagonista de “A Tempestade” de Shakespeare, que será construído após a Peste
que nos afoga?
Antes
de chegar ao título de “1984”, Orwell dera a seu livro o nome de “O último
homem na Europa”. Era um apelo e uma advertência em favor de uma Europa
socialdemocrata, capaz de resistir tanto ao sistema totalitário do stalinismo
russo quanto à desumanidade dos financistas e de uma tecnocracia controladora,
de uma hipnose de massas por meio da mídia, o perigoso rumo que para Orwell era o da sociedade
norte-americana.
“Meu
romance NÃO (sic) é um ataque ao socialismo... e sim uma mostra das perversões
a que está sujeita uma economia centralizada e que já se concretizaram tanto no
comunismo quanto no nazi-fascismo... O cenário do livro é ambientado na
Inglaterra (sob a alcunha de Oceania) para ressaltar que os povos de língua
inglesa não são inatamente melhores que quaisquer outros e o totalitarismo se
não for combatido, pode triunfar em qualquer lugar.”
Orwell
escreveu seu profético manuscrito em 1948, tendo apenas invertido seu
algarismo, pois é no dia 4 de abril de 1984 que o anti-herói do romance,
Winston Smith, faz a primeira observação em seu diário clandestino.
Conta
a história de Winston, apagado funcionário da “Oceania” (membro pertencente ao
Partido Externo, à periferia do sistema) e de como ele parte da indiferença à
revolta, motivado tanto pelo amor por Júlia, quanto incentivado por O'Brien,
(um membro do Partido Interno, a burocracia que detém o poder e que no caso
atua como agente provocador) com quem Winston simpatiza.
E
Winston acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo Partido no
poder, pois as guerras, os combates e o ódio devem ser sempre alimentados para
que o Poder permaneça em suas mãos!
“1984” encarna um mundo no qual a realidade
tornou-se obsoleta e a personalidade, um crime. “Depois de 1984, quais são os
futuros para a liberdade pessoal, a autoridade política e a cultura cívica?”,
pergunta G. Steiner.
Ora,
toda noção do eu como algo precioso e inviolável é cultural, produto do
humanismo, da era liberal. Acontece que num mundo distópico e absolutamente
autoritário, o eu não é mais um valor significativo, nem mesmo um valor a ser
violado. É o nada!
Foi
a partir do final dos anos 1920, com a desilusão trazida pela burocratização do
socialismo na U.R.S.S., que começaram a surgir romances e peças teatrais
distópicos, “profetizando” sociedades que dissolvem o indivíduo.
Um
dos trabalhos pioneiros é uma peça teatral de Maiakovski, “O Percevejo”, o qual
era ao mesmo tempo, uma praga que tanto incomodava como garantia a humanidade
da revolução, em franca e trágica transição para o burocratismo stalinista.
“Cuidado, cidadão” clama um bombeiro, “incêndios são causados por sonhos mal
sonhados”. “E para que viver?”, “Para um socialismo do futuro?” É um grito de
socorro do poeta Maiakovski lançado ao vento, um pathos impossível de encontrar
uma luz, a não ser no seu próprio suicídio, o que ocorreria pouco tempo após a
montagem da peça “O Percevejo”, realizada por seu parceiro Meyerhold, que
terminaria preso, torturado e assassinado pela burocracia stalinista.
Nos
anos 20, também vem à luz a obra prima de outro russo, Eugeni Zamiatin,
denominada “Nós”, uma sátira futurista também distópica, que geralmente é
considerada um dos berços do gênero. O livro leva a extremos os aspectos mais
totalitários e, ao mesmo tempo o conformismo da sociedade industrial moderna,
descrevendo um Estado que acredita que o livre-arbítrio é a causa da
infelicidade e que a vida dos cidadãos deva ser controlada por regras fixas com
precisão matemática. Na visão de Zamiatin as casas, como quase tudo o mais no
futuro distópico, seriam de vidro e outros materiais transparentes; “quando
todos os seres estão visíveis, a privacidade é proibida, e um cidadão é o vigia
do outro”.
Após
o surgimento do Nazi fascismo e da Segunda Guerra, Orwell disse que "iria
tomar “Nós” como modelo para seu próximo romance", “1984”. Disse ainda que
acreditava que outro importante romance distópico, “Admirável Mundo Novo”, de
Aldous Huxley, escrito em 1932 "deve ter sido parcialmente derivado"
também de “Nós”.
“Fahrenheit
451” é outro romance distópico do pós-guerra, fortemente inspirado pelo terror
nazista, escrito por Ray Bradbury. O romance apresenta um futuro onde todos os
livros serão proibidos, opiniões próprias consideradas antissociais e
hedonistas, e o pensamento crítico, suprimido. O personagem central, Guy Montag
trabalha como "bombeiro" (o que na história significa "queimador
de livros"). O número 451 é a temperatura em graus Fahrenheit da queima do
papel.
Retornando
a “1984”, o Estado único de “Nós” se converte em “Oceania”, o Benfeitor, no
“Grande Irmão”, os Guardiões serão a “Polícia do Pensamento” orweliana. Winston
Smith é oficialmente 6079 Smith W..
Tal
qual em “Nós”, a questão da sexualidade autêntica em oposição à programada é
central. As moradias de vidro têm o mesmo simbolismo das Teletelas de Orwell,
precursoras de Google e outros localizadores midiáticos.
A
tentativa malograda de Winston de preservar sua individualidade, de conhecer e
lembrar o passado histórico representa uma recusa europeia tanto do
totalitarismo stalinista quanto da cultura anti-histórica de massas do
capitalismo americano.
Orwell,
em determinado momento de “1984”, parece se referir ao ano 2021 em que vivemos.
“Já existem pessoas que achariam escandaloso falsificar um material científico,
mas não veriam nada demais falsificar um fato histórico. É no ponto em que se
cruzam a literatura e a política que o totalitarismo exerce sua máxima pressão
sobre o intelectual.”
Nessa
ideia de uma esquizofrenia sistematizada, imposta e controlada pelo Estado,
vemos a origem do “Duplipensar”.
Orwell
acreditava que o simples ato de escrever seria a última possibilidade de
resistência humana. A própria política, escreveu, “é um amontoado de mentiras,
evasivas, loucuras, ódios e esquizofrenia.”
E
justamente porque todas as questões são políticas, esse amontoado ameaça
invadir e extinguir a vitalidade consciente e responsável de todo discurso
humano.
O
termo “elemento” (tão utilizado pelos nossos policiais), ao designar uma pessoa
pobre, negra, faz com que ela se torne uma não pessoa; as inversões e mistificações
da “Novilíngua” em que “guerra é paz”, “liberdade é escravidão”, “Ignorância é
poder”, tocam os pontos nevrálgicos de nossa própria política, personificada na
distopia da mídia bolsonarista.
A
diluição estilística de mentiras apaga ou falsifica todos os textos do passado
que possam de alguma forma lançar dúvidas sobre a linha política gangue
dominante.
Basta
abrirmos nosso Whatsap para nos depararmos com o ‘falafacil’ de “Novilíngua”.
Estar
dentro do sistema significa não pensar, não precisar pensar! Ortodoxia é
inconsciência! Ou o analfabetismo funcional com a tela dos celulares defronte
os olhos 24 horas por dia!
A
terceira parte da obra de Orwell, denominada Utopia, consiste na tortura
aplicada a Winston, que segue sendo “exemplar” no mundo da barbárie:
“O
cotovelo! Ele tinha caído de joelhos, quase paralisado, agarrando o cotovelo
atingido com a outra mão. Tudo explodira numa luz amarela, inconcebível que um
único golpe pudesse causar tanta dor! A luz clareou e ele pode ver o guarda
acima rindo de suas contorções. Uma pergunta pelo menos estava respondida.
Nunca, por nenhuma razão do mundo, você iria querer que aquela dor aumentasse.
Você só poderia querer que ela parasse. Nada no mundo era mais terrível que a
dor física. Diante da dor não existem heróis, não há heróis, pensava ele sem
cessar enquanto se retorcia no chão, agarrando inutilmente o braço esquerdo mutilado.”
“Houve
uma violenta náusea que o convulsionou por dentro, e ele quase perdeu a
consciência. Tudo havia escurecido. Por um instante ficou insano, um animal a
gritar.”
No
mundo de “1984” o Estado Leviatã engoliu o homem. Os relacionamentos humanos,
quando ocorrem, são clandestinos, quando sobem à superfície são reprimidos. O
modelo de estado autoritário, totalitário, encontra a sua forma “pura”,
essencial. Um pesadelo no qual a política substituiu a humanidade e o estado
sufocou a sociedade, na medida em que qualquer coisa pode ser feita com os
homens, com suas mentes, com a história e com as palavras.
A
realidade não é mais algo a ser admitido, vivenciado ou mesmo transformada: ela
é fabricada de acordo com a necessidade da elite dominante.
Os
autores das distopias compreenderam que numa sociedade decadente em que os
valores se esgarçaram, o caminho da democracia apodrecida para uma ditadura
constitui apenas um passo.
Orwell
introduziu, setenta anos atrás, o significado do “gabinete do ódio”, ao estilo
dos Bolsonaro e seus milicianos de hoje. A manutenção do estado de ódio
permanente, a eleição do inimigo do ano, do mês, do dia, da hora; e o ódio como
indispensável para a eleição de inimigos, sempre renováveis.
“Não
estamos interessados no bem estar alheio; só estamos interessados no poder”,
diz Brian, o representante do partido do poder de Oceania.
Nestes
escritos sentimos o odor, o odor repugnante e nauseabundo dos dominados e dos
que nada significam socialmente. Genial em Orwell, na “Oceania” a esmagadora
maioria vive em casebres, a miséria de milhões que foram excluídos pelos poucos
que a tudo têm direito. E os trabalhadores, os “proles”, os proletários? Na
Oceania, o Estado não os teme. Eles se tornaram, salvo exceções, desmoralizados
como indivíduos e absolutamente desiludidos enquanto classe social.
Orwell
pintou a Londres do pós-guerra, com suas mansões vitorianas e cortiços
apodrecidos. E nos trouxe uma das imagens mais fortes do Brasil dos favelados
dos anos 2020!
Até
que ponto um regime terrorista pode suprimir ou alterar radicalmente os
impulsos fundamentais do homem? Existe algo na natureza humana que nenhuma
quantidade de terror ou propaganda pode destruir?
Orwell,
duvida, acha que não! “Se quiser uma imagem de futuro imagine uma bota
pisoteando um rosto humano – para sempre.”
Entretanto,
para enfrentar o mal, a banalização do mal absoluto, temos que reconhecê-lo.
Para detê-lo, devemos nos unir na defesa do humanismo, dos valores
civilizatórios. Mesmo que estes valores, hoje, nos pareçam Utópicos!
Afinal,
ouçamos Maiakovski:
"Escutai!
Se as estrelas se acendem
será
por que alguém precisa delas?
Por
que alguém as quer lá em cima?
Será
que alguém por elas clama,
por
essas cuspidelas de pérolas?...
Escutai,
pois! Se as estrelas se acendem
é
porque alguém precisa delas.
É
porque, em verdade, é indispensável
que
sobre todos os tetos, cada noite,
uma
única estrela, pelo menos, se alumie".
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