Carl
Schmitt (1888-1985) foi um dos mais influentes e controversos juristas do
século XX. Durante a República de Weimar, empreendeu implacável oposição ao
liberalismo e ao pluralismo consubstanciados na Constituição alemã de 1919 e
advogou uma teoria jurídico-política autoritária no raso e nas profundezas. Em
1933, por meio de um pacto mefistofélico, o jurista se filiou ao Partido
Nazista e se tornou, para muitos, o Kronjurist do III Reich.
A
despeito (ou em razão) de sua intolerância beligerante, o professor William E.
Scheuerman avalia que a obra de Carl Schmitt nunca foi tão popular e que o
jurista acumula hoje uma significativa coleção de discípulos.[1] É forçoso
subscrevê-lo: as lições schmittianas parecem estar na ponta da língua dos
radicais de extrema-direita e seus conceitos já tomaram o debate público, as
discussões legislativas e os gabinetes presidenciais. Carl Schmitt é o
intelectual da vez — outra vez — e, para enfrentá-lo, é preciso, como Chantal
Mouffe sugeriu, pensar com e contra ele.[2]
Uma
de suas elaborações teóricas mais problemáticas — e mais populares — entre os
reacionários dos dias atuais é a relativa ao conceito de igualdade democrática.
Em sua Teoria da Constituição (Verfassunglehre, 1928), Schmitt argumenta que a
igualdade possível em democracias é uma de tipo substancial: os integrantes do
povo devem constituir um corpo social homogêneo por força do compartilhamento
de uma substância comum, referente, por exemplo, à raça, fé ou tradição,[3] que
os defina como um agrupamento semelhante em contraposição a outros povos,
potencialmente inimigos. A democracia não se estrutura, para ele, sobre uma
ficção do direito que reconhece e trata todos os cidadãos “como se fossem
iguais”.[4] Diferentemente, é um regime de poder em que, a partir de algum
critério objetivo e concreto, os cidadãos são iguais, reproduzem identicamente
algum elemento social específico.[5] A igualdade normativa só surgiria em um
segundo momento, para formalizar a igualdade entre os já “substancialmente
iguais” e para promover seus desdobramentos — igualdade de direitos, igualdade
no acesso à cargos públicos, sufrágio universal, serviço militar obrigatório
etc.[6]
Para
Schmitt, o regime democrático, entendido como aquele em que um povo se
autogoverna, é verificável na identidade entre governantes e governados, entre
dominadores e dominados, entre os que mandam e os que obedecem[7]. Neste ponto,
ele e Hans Kelsen, seu nêmesis liberal e positivista, concordam.[8] No entanto,
em A crise da democracia parlamentar (Die geistesgeschichtliche Lage des
heutigen Parlamentarismus, 1923), o jurista defende que essa identificação
exige que o povo seja homogêneo, caso não seja, que se “elimine ou aniquile o
heterogêneo”.[9] Como exemplos, menciona a Turquia que, naquele momento,
realizava a repatriação forçada de gregos residentes e promovia a
“turquificação” no país — em qualificação sua, “sem concessões” — e a
Austrália, que aplicava leis rígidas de imigração e, como observa
elogiosamente, só permitia a entrada daqueles que correspondiam ao “right type
of settler”.[10]
No
mesmo texto, Schmitt tece duras críticas ao parlamentarismo, que considera uma
expressão do sistema metafísico liberal, e defende que seu design institucional
construído em torno do debate público paralisaria o Estado por promover o
fenômeno romântico das “discussões intermináveis” (ewige Gespräch), como
caracteriza em Teologia Política (Politishe Teologie).[11] Essas discussões e,
no limite, a divergência e o dissenso, seriam consequências forçosas do
pluralismo em sociedade que, por sua vez, teria espaço graças ao princípio
liberal da igualdade abstrata e normativa — se todos são iguais perante a lei,
têm igual direito de viver segundo suas consciências e de ver representadas as
suas convicções no Parlamento.
Nesse
sentido, liberalismo e democracia são, para Schmitt, inconciliáveis: enquanto o
liberalismo exigiria a afirmação primordial da igualdade abstrata — o que
franquearia oportunidade para a manifestação da diferença —, a democracia
exigiria homogeneidade. Em razão desse suposto descompasso, lhe é inconcebível
algo como uma democracia liberal e é nessa esteira que afirma que o fascismo e
o bolchevismo, bem como qualquer ditadura, são antiliberais, mas não são
antidemocráticos, porque constituem regimes de poder em que a vontade do povo é
“educada” para a formação da homogeneidade.[12]
Um
regime democrático próximo do ideal, para Schmitt, é um em que o povo, uma vez
constituído como grupo social homogêneo livre dos “obstáculos” do pluralismo,
tornaria prescindíveis o debate público e o voto secreto. Para tomar decisões,
se reuniria publicamente e exerceria seu poder de forma direta, por meio do que
o jurista chama de “aclamação” (aclamatio), dizendo “sim” ou “não” ao que lhe é
perguntado. Joel Klein explica, em excelente artigo sobre o tema, que o povo
também escolheria seu líder por meio desse procedimento de aclamação, de modo
que mesmo a partição do poder em Executivo e Legislativo se tornaria
desnecessária, tendo em vista que o líder aclamado poderia expressar
corretamente a vontade do povo.[13] Schmitt não vislumbra qualquer inadequação
teórica necessária entre a constituição ideal das democracias e regimes
ditatoriais.[14]
Ademais,
Schmitt escreve que uma democracia pode excluir uma parte da população sem
deixar de ser democracia, tendo em vista que uma igualdade sempre pressuporia uma
desigualdade.[15] A história, para ele, provaria isso: muitos regimes
democráticos conviveram com a escravidão ou tiveram como jurisdicionados
pessoas com poucos ou quaisquer direitos. Para tornar essa elaboração mais
clara, lembro aqui que, em O conceito do político (Der Begriff des Politischen,
1932), Schmitt afirma que o político (das Politischen) diz respeito
essencialmente à distinção entre amigos e inimigos e que todos os conceitos
políticos possuem um sentido “polêmico”, ou seja, têm em vista a possibilidade
concreta da oposição de um grupo de pessoas a outros. Concebe que “termos como
Estado, república, sociedade, classe, . . . etc., são incompreensíveis se não
se souber quem, in concreto, deve ser posto em causa, combatido, negado e
refutado”.[16] Logo, sendo o conceito de igualdade um conceito político, ele
também ensejaria a possibilidade da distinção entre sujeitos.[17] Para o
alemão, não é possível a afirmação de uma igualdade entre todas as pessoas e
nenhuma democracia no mundo teria empreendido essa façanha.[18] Sua teoria
iliberal da democracia é uma que tem na exclusão um pressuposto lógico.
Como
o leitor deve ter notado, não são silenciosos os ecos dessa retórica no debate
público mundial. Líderes de extrema-direita são bastante vocais no seu
entendimento da democracia como, na certeira expressão de Scheuerman, uma
“política de identidade”,[19] demandando a afirmação de uma homogeneidade
substancial entre os cidadãos que permita a sua distinção em relação ao que é
estranho ou inimigo. Wendy Brown nota que as políticas neoliberais
contemporâneas estimularam a ascensão de discursos extremistas homogeneizantes
na Europa, que se deixam intuir pelos seus slogans: “a França para os
franceses” (Le Pen e a Frente Nacional), “Recupere o controle” (Brexit), “Nossa
cultura, nosso lar” (Alternativa para a Alemanha), “Polônia pura, Polônia
branca” (Partido Polonês da Lei e Justiça), “Mantenha a Suécia sueca”
(Democratas Suecos).[20]
Nos
Estados Unidos, o cenário não é diferente: o filósofo e historiador Jan-Werner
Müller, se referindo ao governo de Donald Trump, asseverou que “quem exatamente
é excluído e como — sejam mexicanos por meio de um muro ou muçulmanos por de
meio uma prova religiosa — pode variar de dia para dia”. [21] Mas alguém há que
ser excluído. A América é lugar para os americanos — para os “real Americans”,
os “real citizens”. Müller parece ter acertado no seu diagnóstico: o populismo
de direita dos dias atuais encontra seu centro gravitacional na rejeição
enérgica ao pluralismo.[22]
No
Brasil, discursos que parecem apelar a esse tipo de homogeneidade substancial
também estão na ordem do dia. A categoria do “cidadão de bem”, folclórica no
imaginário moral brasileiro, tem sido evocada para acompanhar argumentos que
parecem subscrever Schmitt, quando este diz que “nas democracias, só existem a
igualdade dos iguais e a vontade daqueles que pertencem aos iguais”.[23] Para
quem engrossa o coro dessa retórica, o grupo homogêneo de pessoas que
supostamente constitui o povo brasileiro é definível a partir de critérios
objetivos e aqueles que não os preenchem satisfatoriamente ou não merecem ter
direitos ou são verdadeiros inimigos nacionais — e, aqui, vale observar que a
possibilidade de declaração de uma inimizade intraestatal é concebida por Schmitt
em O conceito do político.[24]
A
democracia liberal possui latentes deficiências, fragilidades e limitações,
umbilicalmente associadas ao modo como o capitalismo organiza e sustenta as
estruturas de poder. O raciocínio jurídico liberal, que a acompanha, também
apresenta imensas dificuldades como, por exemplo, a de compreender os fenômenos
sociais a partir de categorias coletivas, como raça, gênero e classe — que
afetam diretamente a experiência da cidadania pelos sujeitos — e,
consequentemente, a de aplicar o direito em ativa consideração à arquitetura
dos sistemas de subordinação (sobre o tema, recomendo a leitura do ensaio do
Professor Filipe Campello A cegueira da justiça, publicado aqui no Estado da
Arte, assim como a obra Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica
jurídica, do professor Adilson Moreira).
Mas
se ambos, tanto o design liberal de organização e limitação do poder quanto seu
raciocínio jurídico correlato, nos valem de alguma coisa, nos valem
precisamente para isto: para dispensar a exigência de termos que reproduzir
alguma rubrica concreta para que possamos ser considerados institucional e
juridicamente “cidadãos”. Em outras palavras, para nos livrar da ameaça de
termos que integrar um bloco social monolítico e homogêneo, a partir de
critérios exigidos pela ideologia política que ocupa o poder, para vivermos em
sociedade, gozarmos de proteção do direito e sermos contemplados por políticas
públicas.
No
mais, à essa altura do campeonato, não é possível fingir que não se sabe o que
essa retórica de igualdade substantiva é capaz de edificar e, principalmente, o
que é capaz de destruir. Todo alarme é insuficiente.
Carl
Schmitt está de volta — e não se pode subestimá-lo.
Notas:
[1]
SCHEUERMAN, William. The End of Law – Carl Schmitt in the Twenty-First Century.
Londres/Nova Iorque: Rowman & Littlefield International, 2020, p. ix.
[2]
MOUFFE, Chantal. The Challenge of Carl Schmitt. Londres/Nova York: Verso, 1999,
p. 6.
[3]
SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri:
Alianza Editorial, 1996, p. 224-225.
[4]
Ibidem.
[5]
Schmitt concede que o “povo” só existe como sujeito idêntico de forma abstrata
e que, na realidade, as massas são sociológica e psicologicamente heterogêneas.
No entanto, defende que o esforço, em um regime democrático, deve se dar no
sentido de obter homogeneidade, não diferença. SCHMITT, Carl. A crise da
democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p.
26.
[6]
SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri:
Alianza Editorial, 1996, p. 224-225.
[7]
Ibidem, p. 230.
[8]
“Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito
e objeto do poder, governo do povo sobre o povo”. KELSEN, Hans. A democracia. 2
ed. Tradução: Ivone Castilho Benedetti, Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão
Cipolla, Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 35.
[9]
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São
Paulo: Scritta, 1996, p. 10.
[10]
Ibidem.
[11]
SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humbolt, 2015, p.
59.
[12]
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São
Paulo: Scritta, 1996, p. 16.
[13]
KLEIN, Joel Thiago. A teoria da democracia de Carl Schmitt. Princípios: Revista
de Filosofia (UFRN), v. 16, n. 25, p. 139-156. Set. 2010. Disponível em:
https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/444. Acesso em: 19 out 2020.
[14]
O jurista não só não acredita existir inadequação teórica entre ditaduras e
democracias como defende que “uma Ditadura, em particular, só é possível em
bases democráticas, enquanto contradiz os princípios do Estado Liberal de
Direito”. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala.
Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 232.
[15]
“Uma igualdade que não tivesse outro conteúdo senão a igualdade comum de todos
os homens por si próprios seria uma igualdade apolítica, pois lhe faltar o
correlato de uma possível desigualdade. Toda igualdade recebe sua significação
e sentido por meio do correlato de uma possível desigualdade; e é tanto mais
intensa quanto maior é a desigualdade contrastante daqueles que não são iguais.
Uma igualdade sem possibilidade de desigualdade, uma igualdade que existe por
si mesma e não pode ser perdida, não tem valor e é indiferente”. SCHMITT, Carl.
Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza
Editorial, 1996, p. 224.
[16]
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução: Alexandre Franco de Sá.
Lisboa: Edições 70, 2018, p. 59
[17]
“O conceito democrático de igualdade é um conceito político e, como todo
conceito político autêntico, deve estar relacionado com a possibilidade de uma
distinção”. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constituicíon. Tradução: Francisco
Ayala. Madri: Alianza Editorial, 1996, p. 224.
[18]
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São
Paulo: Scritta, 1996, p. 11-12
[19]
SCHEUERMAN, William. The End of Law – Carl Schmitt in the Twenty-First Century.
Londres/Nova Iorque: Rowman & Littlefield International, 2020, p. 334.
[20]
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política
antidemocrática no ocidente. Tradução Mario A. Marino e Eduardo Altheman C.
Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019, p. 13-14.
[21]
MÜLLER, Jan-Werner. Real Citizens. Boston Review. 2016. Disponível em:
http://bostonreview.net/politics/jan-werner-muller-populism. Acesso em 13 dez
2020.
[22]
A respeito desse argumento, ver MÜLLER, Jan-Werner. What is populism?
Pennsylvania: University of Pensylvania Press, 2016.
[23]
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São
Paulo: Scritta, 1996, p. 16.
[24]
“Esta necessidade de uma pacificação intra-estatal conduz, em situações
críticas, a que o Estado, enquanto unidade política, enquanto existir, determine
a partir de si também o inimigo interno. Daí que em todos os Estados haja, numa
forma qualquer, aquilo que o direito do Estado das repúblicas gregas conhecia
como declaração de πoλέµoζ, e o direito do Estado romano como declaração de
hostis, espécie de ostracismo, de banimento, de proscrição, de perseguição, de
colocação hors-la-loi, numa palavra, de declaração de inimizade intra-estatal
que, mais suave ou mais incisivamente, surgem ipso facto ou atuam com base em
leis especiais sob a forma da justiça, que são abertas ou escondidas em
circunscrições gerais”. SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução:
Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições 70, 2018.
Referências
BROWN,
Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no
ocidente. Tradução Mario A. Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo:
Editora Filosófica Politeia, 2019.
MOUFFE,
Chantal. The Challenge of Carl Schmitt. Londres/Nova York: Verso, 1999.
MÜLLER,
Jan-Werner. Real Citizens. Boston Review. 2016. Disponível em:
http://bostonreview.net/politics/jan-werner-muller-populism. Acesso em 13 dez
2020.
MÜLLER,
Jan-Werner. What is populism? Pennsylvania: University of Pensylvania Press,
2016.
SCHEUERMAN,
William. The End of Law – Carl Schmitt in the Twenty-First Century.
Londres/Nova Iorque: Rowman & Littlefield International, 2020.
SCHMITT,
Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução Inês Lohbauer. São Paulo:
Scritta, 1996, p. 26.
SCHMITT,
Carl. O conceito do político. Tradução: Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Edições
70, 2018.
SCHMITT,
Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humbolt, 2015.
SCHMITT,
Carl. Teoria de la Constitucíon. Tradução: Francisco Ayala. Madri: Alianza
Editorial, 1996.
https://estadodaarte.estadao.com.br/carl-schmitt-jfp/?fbclid=IwAR0mFhA47-n28Y1Bl4YIzUZLVhibv75WacRbr4geGcAZUAE3uNZXT7hXP9o
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