Abstract:
provar parcialidade no Brasil virou “ordália negativa” e uma prova diabólica –
decisão do STF promete alterar esse quadro.
1.
Contexto
Nos
autos do agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus 144.615, a 2ª
Turma do STF declarou a nulidade da sentença condenatória proferida pelo juiz
Sergio Moro contra o doleiro Paulo Roberto Krug (processo n.
2002.70.00.00078965-2), por crimes financeiros no caso Banestado. Após voto que
rejeitava o recurso do ministro relator Edson Fachin, o ministro Gilmar Mendes
abriu a divergência, que foi seguida pelo ministro Ricardo Lewandowski, sob o
argumento de violação da imparcialidade do julgador. A ministra Cármen Lúcia
acompanhou o relator. No empate de 2×2, prevaleceu, por óbvio, a decisão mais
favorável ao réu.
2.
Os votos
O
relator, ministro Edson Fachin, sustentou a tese da taxatividade do artigo 252
do CPP. Assim, na medida em que a conduta de Moro não se encaixava nos incisos
do dispositivo, não havia parcialidade (ou suspeição, o que dá no mesmo). Para
aprofundar, ler aqui.
Já
o Min. Gilmar Mendes disse: “depois de o tempo demonstrar cada vez mais traços
da realidade que antes não se evidenciava, os excessos eram marcantes na
atuação do ex-juiz Sergio Moro exatamente em razão de suas condutas
tendencialmente parciais.”
Gilmar,
analisando detalhadamente a prova, descobre que não houve uma mera homologação
de acordo à luz da legalidade e da voluntariedade, tampouco uma “mera” produção
de prova de ofício pelo julgador, como disse o Ministro relator. Para ele,
houve manifesta ilegalidade por violação à imparcialidade em razão dos
seguintes pontos:
A leitura das atas de depoimentos mostra evidente
atuação acusatória do julgador, pois o magistrado agiu de modo proeminente na
realização de perguntas ao interrogado, fugindo completamente ao controle de
legalidade e voluntariedade. Houve “atuação direta do julgador em reforço à
acusação“.
Ao final da instrução, mesmo que o membro
do MP já entendesse como suficiente o lastro probatório produzido, o julgador
determinou a juntada de quase 800 folhas em quatro volumes de documentos
diretamente relacionados com os fatos criminosos imputados aos réus,
utilizando-se expressamente deles para fundamentar a condenação.
O
ministro Gilmar dissertou sobre a imparcialidade enquanto base fundamental da
jurisdição, o sistema acusatório e a separação de funções de acusar e julgar.
No
voto, Gilmar cita vários trechos em que fica clara a parcialidade de Moro (o
inteiro teor dos votos está aqui).
Para
o ministro Gilmar, o juiz da causa (Moro) atuou como “parceiro do órgão de
acusação na produção de provas que seriam posteriormente utilizadas no processo
penal que tinha como réu o paciente”. O juiz efetivamente guiou e reforçou a
tese acusatória com a direção do interrogatório.
3.
A nulidade da sentença ou do processo?
Examinando
o acórdão, talvez tenha faltado um ponto. Além de ter declarado a nulidade da
sentença, talvez o mais adequado seja que fosse declarada a nulidade do
processo. Se os elementos que embasaram a investigação e conduziram ao processo
criminal propriamente dito estavam “contaminados” com a parcialidade do Moro, o
mais correto seria anular tudo.
De
todo modo, é um enorme avanço. Mesmo que tenha havido empate (2×2), esse
julgamento se tornou o mais importante de 2020. O STF começa a entender,
corretamente, que é inadequado hermeneuticamente dizer que o artigo 252 do CPP
possui um rol taxativo, uma vez que nele não consta o requisito da
imparcialidade. Fosse correta a tese do relator, provar a parcialidade de um
juiz seria (ou seja) exigir uma prova diabólica. Ou uma autêntica “ordália
invertida”: atira-se Moro na água com dez boias e cinco coletes salva-vidas; se
ele afundar, está provada a sua parcialidade.
Esse
é o ponto. Toda a dogmática diz que que o juiz tem de ser imparcial. Se ele não
age desse modo, ele é o quê? Parece evidente que o Brasil tem de seguir o que
diz o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que adota a teoria da aparência:
ele exige não só a imparcialidade; ele exige a aparência de justiça. A tese é:
“Justice must not only be done; it must also be seen to be done“.
Ou
seja, a Constituição do Brasil e o Tribunal Europeu dos DH abominam o modelo
“juiz Larsen” (Caso Hauschildt vs. Áustria). Registro: esse juiz (Larsen)
pré-julgava e aplicava sua opinião independentemente do caso concreto. Atuava
como parceiro da acusação. Nesse sentido, sugiro a leitura do Livro das
Suspeições (clicando aqui).
4.
Minha concordância e minha discordância com o voto do min. Edson Fachin
Por
último, quero dizer que concordo com o que diz o ministro Edson Fachin no seu
voto, neste trecho:
“É
um erro supor que essa busca por um país com justiça mais eficiente é ilusória.
A ineficiência da Justiça dá mais incentivos à corrupção e, consequentemente,
faz aumentar a pobreza. Penso que é exatamente como um esforço de aprimoramento
da jurisdição, um esforço por maior eficiência, que deva ser visto o trabalho
de diversas instituições no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Tais
esforços são, antes de tudo, frutos de uma histórica demanda por mais
eficiência na justiça, em primeiro lugar, mas também por maior qualidade na
prestação de serviços públicos.” (página 21 do inteiro teor)
Só
não entendo as razões pelas quais isso que acima está dito justifica, de algum
modo, que um juiz aja parcialmente. Simples assim. Essa é a minha discordância!
A citação do Ministro serve, sim, como fundamento para que exijamos, sempre, um
juiz imparcial. E um Ministério Público isento. Sem dúvida que esses
ingredientes fazem bem para a democracia.
E
a propósito: para combater a ineficiência, reclamada pelo Min. Fachin no voto,
vale atropelar garantias e tornar lícita a parcialidade de um magistrado? Eis a
pergunta que deve ser respondida.
No
mais, está mais do que na hora de sufragarmos a tese de que também a
parcialidade do juiz é causa de nulidade semelhantemente ao que consta no art.
252 do CPP. Como fez o STF agora. Afinal, se toda a dogmática
processual-constitucional exige um juiz imparcial (não conheço nenhum autor que
diga o contrário), por qual razão se deve aceitar a parcialidade sem sanção
processual? Parcialidade demanda sanção de nulidade processual. E sem que se
necessite apelar a uma ordália negativa. Que é sempre diabólica.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/pela-primeira-vez-supremo-tribunal-federal-reconhece-parcialidade-de-moro-por-lenio-streck/
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