Confrontando
aspectos econômicos e culturais, o autor analisa qualidades de épocas
históricas e de modelos socioeconômicos distintos, oferecendo importantes
conceitos ao pensamento marxista
Apresentados
o período de formação e o panorama histórico em que viveu Mariátegui, vejamos
agora alguns tópicos de sua interpretação histórica da questão nacional peruana
e latino-americana, bem como os principais traços de sua filosofia política.
Conforme
já apontado, o pensamento mariateguiano tem o princípio da práxis como
fundamento do materialismo-histórico: uma perspectiva “ativa” que o afasta
tanto do “marxismo parlamentar” (passivo, pacifista) da Segunda Internacional
(a Internacional Socialista); como também do “marxismo academicista”,
marcadamente teórico, da corrente depois conhecida como marxismo ocidental
(caso de certos representantes da dita Escola de Frankfurt, dentre outros) –
intelectuais fechados no purismo dos debates acadêmicos, pouco comprometidos
com a militância política concreta e trabalhos de base.
Por
outro lado, o marxismo de Mariátegui tem na dialética outro princípio básico do
pensamento começado por Marx e Engels, o que por sua vez o afasta de certas
interpretações simplistas, afetadas pelo positivismo ou cientificismo moderno;
por exemplo: o “evolucionismo social” (da Segunda Internacional), que
“naturaliza” a evolução histórica humana; e as teorias “mecânicas”, que
quiseram transplantar rigidamente modelos europeus para outras realidades
completamente distintas, caso do “etapismo” e de outras proposições da Terceira
Internacional (a Internacional Comunista, pela qual ele militou, mas sempre
mantendo sua independência crítica). Para Mariátegui, na América – grandemente
camponesa, indígena e mestiça –, o marxismo tem que promover um processo
dialético entre os saberes da tradição e os da modernidade.
O
marxismo de Mariátegui, em suma, se pauta pelos princípios dialético e de
práxis, preservando deste modo o que se pode chamar realmente de “ortodoxia” no
plano do materialismo-histórico:
–
de práxis, pois não se basta em teorizações, mas tem por dever intervir no
mundo, para a partir daí se repensar nesta nova realidade transformada;
–
dialético, pois defende que a intervenção na realidade tem que se dar a partir
da interpretação criteriosa de cada realidade, ação operada não segundo cópias
de outras sociedades, mas sim mediante a orientação rigorosa da metodologia
dialética (“bússola” que, ao observar as contradições universais e específicas
do contexto histórico de cada povo, respalda-o na escolha de seus caminhos).
Retorno ao Peru: polêmicas
com os reformistas
Em
1923, ao regressar do exílio, Mariátegui se encontra com Haya de la Torre,
líder estudantil e político que o convida a participar das Universidades
Populares González Prada, semente do que viria a ser a Aliança Popular
Revolucionária Americana (APRA) – movimento político internacional de viés
reformista.
Ele
faria ali duas dezenas de conferências de difusão do marxismo, nas quais
apresenta sua visão de uma cena mundial polarizada, na qual as teses
social-democratas (evolucionistas) já não têm sentido. Para ele, as entidades
de trabalhadores não podem ser apenas “institutos de extensão universitária
agnóstica e incolor” – mas têm de ser ativas “escolas de classe”. O centro
destes debates foi a “questão do índio” – tema que viria a ser central em sua
obra.
É
importante notar que a atração de Mariátegui pelo marxismo – apesar de suas
distintas influências – nasce de sua busca por uma explicação de longa duração
para os processos históricos de sua nação; e concomitantemente, de uma proposta
revolucionária que vinculasse dialeticamente o passado, o presente e o futuro.
Sua
sedução por Marx não provém apenas da grandeza deste pensador – como crítico do
conhecimento ou combatente pelo comunismo –, mas tem raízes na intenção prática
de um entendimento integral da civilização indígena, atrofiada pela
colonização; na necessidade de romper com esta estrutura depauperada.
Neste
sentido da busca “emancipatória”, o reformismo político, subjugado às classes
dominantes, nada tem a contribuir. É necessário promover a união trabalhadores
urbanos e camponeses – e organizar a revolução socialista.
Questão nacional: é preciso
se fazer a nação
Lima,
no início do século XX, já era uma capital cosmopolita, embora tivesse então
mais relação com a Europa de que com o próprio interior indígena pauperizado. O
Peru era um país fraturado em regiões bem separadas e com “ritmos históricos”
peculiares: a costa, a serra e a selva Amazônica.
No
contexto de sua reflexão sobre a questão nacional, Mariátegui depreende desse
fato uma de suas principais teses: o Peru era ainda um “esboço”, uma nação
incompleta. Conforme analisa em sua obra máxima, “Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana” [1], a formação peruana enquanto nação
tinha sido interrompida.
Em
sua interpretação, descreve um processo revolucionário que se dá “pelo alto”,
através de uma via não clássica – tema que discuto no livro “Marx na América: a
práxis de Caio Prado e Mariátegui” [2]. Trata-se de uma análise original, que
se abstém de copiar modelos clássicos europeus – e se aproxima daquela
elaborada por Gramsci (para a Itália), ou da de Caio Prado Júnior (para o
Brasil).
Segundo
Mariátegui, é preciso se fazer o Peru – um país cuja elite se pautou quase
sempre por modelos estrangeiros, até que o indigenismo, por volta dos anos
1920, interrompesse parcialmente esta tendência. Neste tempo, o que prevalecia,
mesmo no âmbito socialista, era a ideia eurocêntrica de que a emancipação dos
povos indígenas consistiria em torná-los “civilizados” (nos moldes ocidentais).
Isto somente começa a mudar a partir da ação dos próprios índios que, na década
de 1910, inauguram um novo ciclo de sua longa história de resistência contra a
dominação do Estado colonial e dos latifundiários, e cujo marco é sua
participação na Guerra do Pacífico.
Este
conflito com o Chile foi o estopim para a autocrítica do meio socialista
peruano, o qual se dá conta que as populações indígenas não precisavam ser “despertadas”,
mas sim era preciso que os próprios revolucionários relativizassem suas
referências eurocêntricas, atentando à experiência prática das mobilizações
nativas.
Por um comunismo
latino-americano
Em
seu debate acerca da questão do índio, Mariátegui tem o propósito de submeter
as diversas tendências de então a uma crítica socialista radical. É o caso do
“nacionalismo crioulo”, defendido pela elite mestiça, subalterna ao estrangeiro
– e que almeja ser “branca”: uma parcela da classe dominante que, apesar de sua
pretensão “nacionalista”, é solidária com o colonialismo.
Contrário
a isso, Mariátegui propõe um nacionalismo vanguardista, que reivindique o
“passado incaico”, sociedade indígena que ele concebe como “comunista agrária”.
Com
a fundação em 1926 da revista Amauta (“sábio”, em quêchua) – nome pelo qual ele
ficaria conhecido – fica enfraquecida sua aproximação com a APRA. Em polêmica
com esta organização, critica seu “indigenismo paternalista”. Defende que na
América Latina não se poderia ter apenas uma imagem ou cópia do comunismo
europeu, mas sim que seria necessária uma “criação heroica”, em que a
comunidade camponesa nativa, essencialmente “solidária” em suas relações
sociais, se tornaria a base do estado contemporâneo: comunista.
Rechaça
também a teoria de certos indigenistas pautados por teorias “racistas” que, em
oposição simétrica aos racistas eurocêntricos, afirmavam que os índios teriam
algo inato em sua espécie que os levaria “naturalmente” a se libertarem. A
“raça” por si só não é emancipadora – pondera Mariátegui –, os índios, assim
como os operários das cidades, estão sujeitos às mesmas “leis” que governam
todos os povos. O que assegurará a emancipação indígena é o “dinamismo” de uma
economia e de uma cultura “comunista agrária” que porta “em suas entranhas o
germe do socialismo”.
É
papel do revolucionário, conclama ele, convencer os índios, mestiços e negros
de que somente um governo de trabalhadores e camponeses unidos, representativo
de todas as etnias, pode libertá-los de sua opressão.
Questão indígena: a
“esperança” revolucionária
Em
1927, Mariátegui assume a publicação de “Tempestad en los Andes”, obra
indigenista radical do historiador e antropólogo Luís Valcárcel. No prólogo, o
pensador peruano escreve a frase que se tornaria emblema de seu marxismo: “a
esperança indígena é absolutamente revolucionária”. A partir daí, desenvolve a
ideia de que a revolução socialista é o “novo mito” do índio, o princípio
mobilizador do revolucionário – a “fé” transformadora segundo a qual o comunismo
andino deveria construir seus pilares.
Descartando
os enfoques “filantrópicos” do problema indígena, compreende a questão como
sendo de natureza econômica. O problema do índio é o problema da terra: é o
latifúndio.
Polemizando
com a APRA, acusa seu “indigenismo” de ser paternalista, teoria criada
“verticalmente” por mestiços das classes letradas; algo que, apesar de útil na
condenação do latifundismo, exala uma filantropia que não é adequada e nem
serve à revolução: o comunismo não pode ser confundido com paternalismo.
No
texto “El problema de la tierra” (1927), Mariátegui se declara um marxista
“convicto e confesso” [3]. No ano seguinte, reunindo dezenas de ensaios
elaborados desde 1924, publica seu clássico “Sete ensaios de interpretação da
realidade peruana” – ponto alto de sua “investigação da realidade nacional de
acordo com o método marxista”.
Por
este tempo, dá-se o rompimento com o nacionalismo aprista. Em carta a Haya,
expõe seu desacordo, sobretudo quanto à política de aliança de classes. Haya
responde, acusando-o de europeísmo. Em sua réplica, Mariátegui defende a
mencionada síntese dialética de saberes: “Acredito que não há salvação para a
Indo-América sem a ciência e o pensamento ocidentais”; “meus juízos se nutrem
dos meus ideais, dos meus sentimentos, de minhas paixões”.
Em defesa da Internacional
Comunista
Ainda
em 1928, Mariátegui coordena a fundação do Partido Socialista Peruano,
colocando como prioridade sua vinculação à Internacional Comunista –
organização da qual não mais se afastaria, embora mantendo sempre a
independência de sua crítica.
Para
ele, seu partido (que não usou o nome “Comunista” por uma questão tática)
deveria adaptar suas ações às condições sociais peruanas, mas sem deixar de
observar critérios universais, pois as circunstâncias nacionais estavam
submetidas à história mundial. O método de luta do Partido Socialista – declara
–, é o marxismo-leninismo, e a forma de luta, a revolução.
É
um momento fervilhante de sua vida, época em que inicia grandes polêmicas
político-filosóficas. Contesta não só o nacionalismo conservador, como também o
dogma europositivista que previa certa “evolução natural” no socialismo (sempre
nos moldes da história europeia).
No
ensaio “Punto de vista anti-imperialista” (1929), aprofunda suas críticas à
ideia de “burguesia nacional”: não existe na América Latina uma parcela da
burguesia identificada ao povo. Entende que as elites latino-americanas não têm
nenhum interesse em se confrontarem com o imperialismo, como “ingenuamente”
creem os reformistas. Isto porque, diferentemente dos povos orientais, as
elites não estão vinculadas ao povo por alguma história ou cultura comuns. Pelo
contrário: “o aristocrata e o burguês” desprezam o “popular”, o “nacional”;
antes de tudo “sentem-se brancos”, e o pequeno-burguês mestiço os imita.
Somente
a revolução socialista pode barrar o imperialismo de um modo radical – afirma
em “El problema de las razas en América Latina” (capítulo de “Ideología y
política”).
Pouco
depois, em 1930, a saúde do pensador e ativista peruano volta a se complicar. À
véspera de sua morte, o ainda jovem marxista conclama os revolucionários a
estudarem o “leninismo”.
Dialética de saberes: entre
a tradição comunitária e a modernidade
Segundo
Mariátegui, em meio ao processo de alienação política e existencial que é
inerente ao capitalismo, a Revolução Soviética despertou o “homem matinal”, o
ser cansado da noite artificialmente iluminada da decadência pós-bélica
europeia-burguesa. E para a construção social deste novo homem, o socialismo
deve absorver – dialeticamente – os bens de todas as fontes do conhecimento a
que pôde ter acesso o mundo contemporâneo: não apenas as contribuições
ocidentais, mas também as de outros povos, como os indígenas [“El alma
matinal”].
Confrontando
aspectos econômicos e culturais, o autor analisa qualidades de épocas
históricas e de modelos socioeconômicos distintos, oferecendo importantes
conceitos ao pensamento marxista: uma utopia revolucionária concreta que propõe
síntese dialética entre os conhecimentos ocidental e oriental (no sentido de
não-ocidental), entre o moderno e o antigo, entre objetividade e subjetividade
– dentre outras contraposições potencialmente criadoras.
A
intenção de Mariátegui é a de revitalizar a práxis marxista – em seu tempo
abafada pelo reformismo contaminado de ideias positivistas da Internacional
Socialista. Entende que o homem contemporâneo tem necessidade de “fé
combativa”. A Primeira Guerra mostrou à humanidade que existem “fatos
superiores à previsão da Ciência” e, especialmente, “fatos contrários ao
interesse da Civilização” – escreve em “El crepúsculo de la civilización”
(capítulo de “Signos y obras”).
Sua
convicção é a de que o progresso irrefletido, promovido pelo capitalismo,
redunda em aumento da barbárie. Do mero progresso técnico não se obtém
“naturalmente” uma evolução humana, mas ao contrário, observando-se a
totalidade do conjunto social, vê-se o agravamento da desorientação humana, em
um processo civilizacional autodestrutivo.
Trata-se
de uma realidade nítida aos olhos e corpos da periferia do sistema, hoje cada
vez mais evidente, mas sempre subestimada desde a perspectiva eurocêntrica
Um marxista
“romântico-realista”: mito e ação revolucionários
A
concepção marxista mariateguiana exalta o valor das tradições comunitárias da
América, ressaltando fatores que permitiram ao índio desfrutar de uma melhor
qualidade de vida, anteriormente à invasão europeia – como é o caso da
“solidariedade” característica do povo inca (em contraste com a
“competitividade” da sociedade capitalista).
Porém,
Mariátegui tem claro que, se antigamente o índio trabalhava com prazer e mais
plenitude, hoje já não seria possível abdicar-se da ciência moderna. A tarefa
está portanto em se relacionar os melhores frutos do pensamento contemporâneo
“ocidental” (cujo ápice é o marxismo), ao melhor legado da sabedoria “oriental”
(no caso peruano, refere-se aos saberes “não-ocidentais” dos povos andinos,
materializados em seus hábitos de cooperação mútua e fé revolucionária).
Nesse
sentido, defende a ideia de um “romantismo socialista”: um renovado espírito
romântico que, incorporando a postura epistêmica objetiva do “realismo
proletário” (percepção antipositivista, que percebe o homem como ser
imperfeito), cultiva a energia subjetiva presente na esperança por uma nova
sociedade.
Como
reação à modernidade desumanizada – ao homem burguês acomodado, “cético”,
“niilista” –, reelabora o conceito de mito revolucionário (a partir de ideia de
Georges Sorel): uma “esperança sobre-humana”, utopia que traz um novo
encantamento perante a vida. Seu esforço é por unir o impulso revigorante e
idealista da subjetividade romântica, à concretude sempre conflitiva da
objetividade realista.
O
romantismo e o realismo são para Mariátegui duas posturas intrínsecas ao
marxismo, que concorrem para a transformação revolucionária – segundo uma
dialética romântico-realista.
Obra mariateguiana: um
legado de peso – e na rede
Os
principais trabalhos filosóficos e histórico-políticos de Mariátegui – além de
sua correspondência, crítica literária, etc. – foram publicadas em 1959, em
versão popular, pela editora Amauta (Lima), em 16 volumes escritos pelo autor,
com o título “Obras completas”.
Em
1994, no marco comemorativo de seu centenário, a mesma editora publicaria
“Mariátegui total”, edição mais completa, que inclui seus escritos de juventude
e vasta correspondência.
Além
do clássico “Siete ensayos…”, dentre seus livros, destacam-se “La escena
contemporánea” (1925); e as obras póstumas que o autor deixou pré-organizadas:
–
“Defensa del marxismo – polémica revolucionaria” (1928–1929/ publicada em
1934), cuja primeira edição em português (“Defesa do marxismo: polêmica
revolucionária e outros escritos”) aparece somente em 2011, em edição da
Boitempo que traz também outros textos
fundamentais do autor [4];
–
“El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy” (1923–1929/ publicada em
1950);
–
“La novela y la vida” (1955).
Fora
estes livros, seleções de seus textos foram organizadas posteriormente por seus
editores, como “Temas de Nuestra América”, “Peruanicemos al Perú”, “Cartas de
Italia”, “Signos y obras”, e em especial “Ideología y política” (livro que
trata do indigenismo, do socialismo no Peru, e da posição político-filosófica
marxista de Mariátegui).
Sua
obra foi só em parte traduzida ao português – e algumas destas traduções se
encontram abertas na rede. Já em castelhano, a edição de “Obras Completas” pode
ser baixada na íntegra.
Notas
(parte II)
[1]
MARIÁTEGUI. José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.
São Paulo: Expressão Popular/ Clacso, 2008.
[2]
MARTINS-FONTES, Yuri. Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui. São
Paulo: Alameda/ Fapesp, 2018.
[3]
“El problema de la tierra” viria a ser um de seus “Sete ensaios”, compondo seu
livro clássico juntamente aos seguintes escritos: “Esquema de la evolución
económica”; “El problema del indio”; “El proceso de la instrucción pública”;
“El factor religioso”; “Regionalismo y centralismo”; e “El proceso de la
literatura”.
[4]
MARIÁTEGUI. J. C.; MARTINS-FONTES, Y. (org., trad. e introdução). Defesa do
marxismo: polêmica revolucionária e outros escritos. São Paulo: Boitempo, 2011.
https://revistaforum.com.br/rede/um-marxista-da-america-para-o-mundo-mariategui-vive-apos-90-anos-de-sua-morte-ii-por-yuri-martins-fontes/
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