No
excelente livro A queda, de Albert Camus, a narração é em primeira pessoa:
“Quando penso nesse período em que eu pedia tudo sem dar nada em troca,
mobilizava tantos seres ao meu serviço, colocava-os em uma espécie de
geladeira, para tê-los um dia ou outro em minhas mãos, quando me convinha…”.
Agora
vamos para outro “livro”. O livro da vida real. Do que existe e existiu. E o
que existiu? A queda de um juiz e de uma operação. Façamo-lo por meio de uma
metáfora. Ou alegoria. A partir de A queda, de Camus. Tudo para mostrar uma
queda.
Três
personagens veem um sujeito cair do décimo andar de um prédio. É dia claro. Não
há qualquer dúvida sobre o fato. Um corpo que cai. E está lá um corpo estendido
no chão.
O
primeiro comentador ou os primeiros comentadores que viram a queda são
advogados. Eles conhecem o sujeito que caiu. Sabem o que ele fazia no prédio. E
relatam, incansavelmente, desde o momento da queda, o que viram: um corpo que
caiu. Escrevem tudo. Todos os dias. Desde o dia da queda. Relatam em livros.
Contam várias vezes quem caiu e como caiu o corpo. Porém, tarefa difícil.
Jornalistas e jornaleiros e gente do Judiciário e Ministério Público desdenham
do relato. Muitos dizem que o corpo nem caiu.
O
segundo comentador que viu a queda do corpo conta detalhes dos bastidores.
Bilhetes trocados entre personagens no prédio. Não, não há análise mais
especifica sobre o corpo que caiu. Sim, conta que o viu o corpo cair. Ainda
bem, dizemos. E, sim, trata-se de um bom relato.
Há
também um — muito bom — relato mais scholar sobre a queda do corpo. Conta a
velocidade do corpo. Mediu o atrito do ar. E, é claro, tudo depois de já ter
sido dito “está lá um corpo estendido no chão”. Resultado: os “não imparciais”,
os que relataram primeiro a tal queda… não são críveis. Ou “não tão críveis”.
Fica
a pergunta: se três pessoas (chamemo-las de testemunhas da história) estão
diante de um fato — um corpo que cai — qual seria a diferença se os primeiros
relatantes fossem “não imparciais”? Aliás, seria possível alguém fazer
descrição do fenômeno usando o método empírico-analítico? Seria o Direito um
sucedâneo do empirismo? “Olho para um fenômeno e o ‘descrevo’”? Causalidade? A
água cai da montanha e eu relato. Ou, melhor, um corpo cai do décimo andar e o
relato — considerado — (mais) crível é o desinteressado.
O
que é um relato desinteressado? Escreveu um jornalista: todos relataram a caída
do corpo, mas ainda bem que agora vieram os relatos imparciais.
Fatos,
relatos. Vale lembrar aqui de uma anedota contada por Jonathan Swift, em que
Gulliver assiste a tentativa de alguém fazer um relato bruto de um relógio
pendurado em uma corrente. Ali, em 1726, Swift, com sua verve moderna, mostrava
que não existem “fatos brutos” e que, portanto, só existem “fatos
institucionais”. Alasdair MacIntyre dizia: mesmo quando eu digo que um relógio
está estragado, estou emitindo juízo de valor.
Portanto,
imparcial, mesmo, quem deve ser é o juiz. E não existe grau zero de sentido.
“—
Um corpo que caiu e, agora, está lá estendido no chão”. Como seria o relato
desse “fato bruto”?
Eis
a questão.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-queda-em-tres-atos-de-camus-a-lava-jato-relatos-e-fatos-por-lenio-streck-e-pedro-serrano/
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