Liev
Tolstói, autor de “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, nos legou um material
literário precioso, onde os princípios da “banalização do mal” encontrados por
Hanna Arendt ao analisar o caso do criminoso nazista de guerra, Eichmann, foram
por ele descritos com precisão com mais de sessenta anos de antecedência, sob o
autoritarismo do czarismo russo.
E
como a literatura se espelha na realidade e a reflete! Nos dias de hoje, o
maior assassino da história da Rota de São Paulo, desfila sua “bravura” e
impunidade pelas paginas da mídia social!
O
conto de Tolstoi, denominado “Nicolas Palkine”, referindo-se a Nicolau I, czar
russo (1825- 1855), tem o termo Palkine originário de palka, em russo vara, que
era “legalmente” utilizada com ponta de metal, aplicada em açoites e
espancamentos, muitos deles até à morte de soldados, prisioneiros e até mesmo
de suspeitos de crimes banais. O conto, ao traçar o perfil do executor deste
tipo de tortura e de massacre, assim como o ambiente que torna propício o
surgimento desses indivíduos, foca literariamente as principais conclusões de
Arendt, no século XX. E nos trazem aos dias atuais dos assassinos fardados ou
em horário de suas folgas, o caso do Sargento Martinez.
O
conto desenvolve-se a partir do diálogo que o narrador mantém com um velho
Sargento, que servira primeiramente sob as ordens do Czar Alexandre I
(1881-1825) e, posteriormente, sob o mando de seu filho, Nicolau I.
O
velho declara que estava carregado de pecados e o que mais desejava antes da
morte era arrepender-se e comungar, livrando-se do castigo divino!
São
tantos os seus pecados, pergunta-lhe o narrador, ao que ele responde: “Não
sabeis que servi sob Nicolau? Comecei o serviço sob Alexandre; os soldados o
elogiavam, diziam que ele era muito bom...” Ao que o narrador retruca:
“Lembro-me dos últimos tempos do reinado de Alexandre, quando até vinte por
cento dos soldados convocados para o exército apanhava até morrer; como deveria
ser com Nicolau se o tempo de Alexandre era tido como muito bom?”
Logo
em seguida o velho Sargento se abre dizendo que para cinquenta açoitadas, nem
mesmo a calça do torturado se tirava; davam-se duzentos, trezentos golpes...
Espancava-se até matar. Ao empolgar-se, o soldado falava com desgosto e horror,
mas não sem certo orgulho da antiga bravura... de espancador obediente!
“Entre
nós, chamávamos o Imperador de Nicolau Palkine, ao invés de Paulovitch”.
De
tempos em tempos, surgem na narrativa, entretanto, pecados de consciência! Por
exemplo, quando se condenava um soldado por má conduta a cento e cinquenta
golpes de vara “e nós aplicávamos duzentos”; mas isso ainda não bastava aos
oficiais, pois “batíamos para valer nos jovens soldados, com a coronha, com os
punhos, no peito, na cabeça; o soldado morria e nem ao menos sofríamos uma
repreensão”.
“Morria
porque apanhava e as autoridades escreviam no prontuário: morreu pela vontade
de Deus”.
O
narrador solicita ao velho que descreva a aplicação do tipo de tortura por
varas, as “palkas”: o supliciado tem cada uma das mãos amarradas a um fuzil; é
então empurrado entre duas filas de soldados armados com varas e os oficiais
gritam “batam mais forte, mais forte”. O velho pronunciava estas palavras com
voz imperiosa, lembrando-se delas com evidente satisfação e imitando o tom de
bravura autoritária.
O
pecado, o inferno e a necessidade do perdão cristão advêm, na narrativa do
velho, exclusivamente do fato de não haver cumprido apenas o ordenado pelos
superiores, mesmo que o resultado também conduzisse o supliciado à morte, pois,
enfim, somente “cumpria ordens”. O “pecado” estava em que se excedia no
cumprimento do “dever”.
Contava
essas minúcias sem nenhum remorso, como se tratasse de bois destinados ao
matadouro. Lembrava-se perfeitamente de como o homem ferido resiste e depois
cai; percebem-se os sulcos sangrentos; o sangue que corre; a carne que se
desfaz em pedaços, até expor os ossos. O infeliz grita, depois urra surdamente
a cada pancada e, por fim, se cala, já não tem mais forças nem para gemer.
Chega
o médico-inspetor, examina o pulso do supliciado e decide se podem continuar a
bater sem matá-lo ou se é preferível esperar que ele se cure para recomeçar o
castigo e acabar de lhe dar a quantidade de pancadas a que animais ferozes, os
chefes militares comandados por Nicolau Palkine, decidiram submetê-lo.
Na
verdade, o doutor emprega toda sua ciência para impedir que o homem morra antes
de sofrer todos os suplícios que um corpo possa suportar. Recorda-se o velho
ainda daqueles soldados que eram recolhidos em macas e transportados ao
hospital para depois voltarem à tortura e de "como imploravam pela
morte"! E os crimes dos mesmos eram, por exemplo, haverem fugido do
regimento, terem tido o atrevimento e a ousadia de protestar contra a má
qualidade da alimentação ou falarem que os chefes roubavam.
Ao
terminar a narrativa, o velho se revolta contra o intento de o narrador buscar
nele o arrependimento: “Mas era a lei, e estava certa, pois era executada
depois de um julgamento, do que posso eu ser culpado?”
Estava,
pois, em paz consigo mesmo e em tudo aquilo no que se ativera ao cumprimento de
uma “Lei”, de uma “ordem”. Somente seus atos, que considerava pessoais, o
afligiam como haver por conta própria aumentado o sofrimento de homens.
O
conto vai além e o velho soldado recorda a invasão da Polônia, fala da matança
de crianças, de prisioneiros que deixavam morrer de fome ou frio, de um jovem
assassinado a golpes de baioneta ao encontro a uma árvore, e nesses casos, em
absoluto demonstrava qualquer tormento de consciência, pois o genocídio do qual
participara fazia parte da guerra: para ele, “guerra era guerra”, tudo dentro
da Lei, pelo Imperador e pela Pátria!
Haver
saqueado a terra polonesa, assassinado mulheres e crianças inocentes, açoitado
até a morte os infelizes que levou ao hospital para novamente torturá-los, nada
disso lhe perturbava o espírito, a consciência. Para ele, não eram atos que
dependessem dele e mesmo lhe parecia ter sido outro e não ele o autor disso
tudo. Apenas e tão somente porque “era uma ordem”e mandaram-no fazer, dentro de
“Lei”!
Enfim,
o velho soldado passara a vida a torturar e a massacrar homens e “ele não se
acreditava culpado de todas as terríveis coisas que praticara”.
“Que
teria pensado esse velhinho se compreendesse que entre sua consciência e Deus
não há nem pode haver intermediários, e que também não deveria existir nenhum
intermediário que o forçasse a torturar e a matar homens?” O narrador se
pergunta se vale a pena atormentá-lo, buscar despertar nele a consciência das
perversões genocidas praticadas. Afinal, ele está moribundo e para que “lembrar
o que passou?”
Mas
trata-se de “uma doença” que não passa, somente se modifica, penetra mais fundo
nos ossos, na carne. "A doença que faz homens dóceis, comuns, praticarem
crueldades terríveis sem saber por que e com que finalidade!”
“Muitos
dizem que esse tempo, o de Nicolau I é passado, já passou. No tempo de Nicolau
se disse o mesmo de Alexandre; no tempo de Alexandre, o mesmo de Paulo, o mesmo
de Catarina, dos furores de sua depravação, da loucura de seus amantes; no
tempo de Catarina se disse o mesmo de Pedro, o Grande... Em todos os tempos
houve coisas das quais nos lembramos com horror, indignação. Lemos descrições
das fogueiras para hereges, das torturas, açoites, suplícios de varas e
sentimos horror pela crueldade de que é capaz o ser humano. E declaramos que
tudo isso passou...”
Concluindo,
o narrador pergunta:
“Onde
estão nossas salas de torturas, nossa escravatura, nossos açoites? Temos a
impressão de que desapareceram, que não mais existem, mas eles apenas estão
acobertados”. “Existem os mesmos atos e os mesmos horrores, simplesmente não os
vemos, assim como nossos antepassados não viam os de seu tempo... Contudo, isso
não passa de aparência. Trezentos mil homens (final do século XIX) estão
fechados nas prisões de Nicolau II (1868-1917), em redutos estreitos, fétidos,
morrendo física e moralmente. Suas mulheres e seus filhos, sozinhos definhando
de fome. Guardam-se esses homens em cavernas de depravação, nas prisões e esta
reclusão só é útil aos guardas e aos diretores, senhores absolutos desses
escravos.”
Mais
de sessenta anos após a publicação de “Nicolas Paukine”, a filósofa Hanna
Arendt analisou o caso do criminoso de guerra Adolf Eichmann, preso em Israel e
acusado de comandar genocídio em campos de concentração nazista na Segunda
Guerra Mundial.
Ela
obteve autorização para entrevistá-lo e seguir de perto seu processo e, a
partir deste trabalho, publicou “Eichmann in Jerusalem: A Report on the
Banality of Evil”. Em suas conclusões encontramos o mesmo sentido de
banalização do mal descrito pelo escritor russo:
O
nazista Eichmann carecia inteiramente do senso de ser, tal qual o velho
soldado. Ele ficava perturbado com temas emocionais de agressão, tal qual o
Sargento quando o narrador questionava-o sobre os massacres por ele praticados.
O
que importava ao nazista era reduzir toda a vida à ordem, ao não movimento, à
não emoção, de modo que toda a vida dos
seus prisioneiros pudesse ser controlada. Tal e qual o velho Sargento, era um
funcionário calmo, “bem equilibrado”, imperturbável, desempenhando seu trabalho
de forma burocrática, às vezes com pequenos deslizes de ordem sádica.
Ambos
sentiam profundo respeito pelo sistema, pela lei e pela ordem, funcionários
fiéis de um grande Estado, por um lado, o Czarismo Russo, por outro, o Nazismo
Alemão. Não guardavam remorsos e eram “mentalmente sãos” e bem adaptados.
Arendt
conclui que o foco real na vida de um destruidor “talvez não seja a destruição
como tal, mas a imposição da ordem e a uniformidade em tudo”.
De
todo modo, Liev Tolstói mais de meio século antes deixara claro que o genocídio
é um tema do presente, do passado e do futuro!
É
o tema que revela a natureza real de nossa espécie, capaz do trabalho mais vil
que pode sair de mãos humanas: matar outros seres sem defesa.
Em
Nicolas Palkine, como no banco dos réus, os genocidas racionalizam e atenuam
seus atos, de modo que, com grande sinceridade, acreditam que estavam agindo em
defesa deste ou daquele tipo de Lei, de País, de autoridade.
O
Sargento Roberto Martinez, apontado como um dos maiores matadores da Rota
unidade de elite da Polícia Militar de São Paulo, foi acusado de pelo menos 45
homicídios conhecidos e atos diferentes atos de barbárie e crueldade.
Passados
mais de vinte anos, o velho Sargento, tal qual o de Toltoi, ostenta com muita
“honra” nas redes sociais, uma espécie de "lista da morte" de suas
vítimas conhecidas.
Martinez
foi protagonista do caso “Rota 66”, livro de autoria de Caco Barcellos, no qual
três jovens de classe média foram mortos por policiais militares nos Jardins,
área nobre da zona sul paulistana. Causa? O possível roubo de um toca-fitas. À
época, os PMs alegaram ter havido troca de tiros e foram absolvidos pelo
Tribunal do Juri.
Passados
quarenta e cinco anos do caso, ocorrido em 1975, o Sargento ainda é
reverenciado e chamado de “herói” por admiradores em um de seus perfis no
Facebook.
E
foi nessa rede social que ele postou "a lista da morte". A relação
tem três páginas. Há datas de 72 audiências judiciais, números de processos aos
quais o Sargento respondeu de 1986 a 1995, devido a assassinatos de civis
conhecidos e denunciados, quando ele atuava na Rota.
A
lista traz ainda os locais onde aconteceram os homicídios: quase sempre bairros
pobres da periferia da capital e da região metropolitana de São Paulo.
Martinez
foi absolvido em 15 processos de homicídio. Outros 19 Inquéritos Policiais Militares
também de homicídios, assim como dois por lesões corporais, foram simplesmente
arquivados. Outros quatro inquéritos com mortes de civis foram encaminhados à
Justiça Comum.
O
livro de Caco Barcellos nos conta que Martinez foi preso em 1986. A expulsão da
Polícia Militar aconteceu em março do mesmo ano. E ele deixou a cadeia...
Martinez
também não carrega consigo nenhum resquício de arrependimento. Afinal, ele
encarnava a “Lei”, a lei da morte, da tortura e do suplício daqueles que pouco
podem para se defender.
O
velho Sargento, tal qual o Sargento de Lev Tolstoi possuem o mesmo DNA, aquele
que também se inscreve na genética dos criminosos nazistas de que Hanna Arendt
nos fala
Por
mais que seja espantoso para uma imaginação solidária e moral, são incontáveis
os indivíduos prontos para cometer o mal intolerável: torturar e matar outros
seres humanos!
Obs:
A reportagem completa sobre o caso do velho Sargento Martinez está disponível
no link:
https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2020/07/12/Sargento-da-rota-nos-anos-1970-ostenta-lista-da-morte-nas-redes-sociais.htm?fbclid=IwAR1DeKsu5xjvAD6Gvvgcsu0vG-r2wJrb7fwOqXCgXlnu2oyj9kFvRDeraSs&cmpid=copiaecola

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