Há
pouco publicou-se a Lei n.º 14.010, de 10 de junho de 2020[1], como resultado
derradeiro do Projeto de Lei n.º 1179/20, que após tramitação formidavelmente
rápida, foi aprovado pelas duas Casas[2] e encaminhado à sanção do presidente
da República.
Para
surpresa geral, foram vetados os artigos 4º, 6º, 7º, 9º, 11, 17, 18 e 19. Isso
representou verdadeira mutilação ao escopo do texto legislativo. Este trabalho
cuidará exclusivamente do veto ao artigo 11, referente aos condomínios
edilícios, conquanto ulteriores escritos serão elaborados acerca dos demais
vetos.
Essa
escolha se deve ao destaque que foi dado pelo
Presidente da República, que se valendo de uma rede social[3], antes
mesmo da publicação no Diário Oficial da União, declarou: "Ontem vetei
artigos do PL 1179/2020 que davam poderes aos síndicos de restringir a
utilização de áreas comuns e proibir a realização de reuniões e festividades
inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos...". E
completou: "Qualquer decisão de restrição nos condomínios devem ser
tomados seguindo o desejo dos moradores nas assembleias internas..."
(sic).
Na
mensagem presidencial[4] remetida ao Senado, escreveu-se o seguinte: "A
propositura legislativa, ao conceder poderes excepcionais para os síndicos
suspenderem o uso de áreas comuns e particulares, retira a autonomia e a
necessidade das deliberações por assembleia, em conformidade com seus
estatutos, limitando a vontade coletiva dos condôminos".
Pois
bem, o artigo 11 do PL 1179/20 estabelecia que, emergencialmente, até 30 de
outubro de 2020, os poderes dos síndicos, além daqueles previstos no artigo
1.348 do Código Civil, ficavam aumentados, especificamente, para:
I
- restringir a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação do
Coronavírus (Covid-19), respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos
condôminos;
II
- restringir ou proibir a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos
de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos
condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação do
coronavírus (Covid-19), vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos
condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade.
Então,
a questão central não diria respeito a potencial desativação de salões de
festas, recintos e quadras destinadas a práticas desportivas, piscinas e
saunas, ou ainda a fixação de normas relativas ao número de indivíduos que
poderiam utilizar alguma dessas áreas comuns. Mas sim à suposta diminuição da
autonomia deliberativa das assembleias, o que implicaria o cerceamento da
vontade dos condôminos, que seria solapada pela discricionariedade do síndico.
Assim,
ao que parece, o veto ao artigo 11 concernia a temor quanto à violação,
diminuição ou limitação da estrutura decisória dos condomínios edilícios e, de
maneira subjacente, do direito de propriedade, em função da ampliação —
transitória — dos poderes dos síndicos e da sua potencial extensão sobre áreas
exclusivas.
Todavia,
em que pese o devido respeito, o veto presidencial se apoia em paralogismo,
isto é: argumentação que embora aparente alguma verossimilhança, contém —
involuntária e inconscientemente — incorreções lógicas e conceituais.
Coloque-se
isso de outra maneira: estaria o síndico de condomínio edilício investido de
poder bastante (pelo dispositivo de lei vetado) para, por exemplo: obstaculizar
um churrasco na varanda, ou ainda uma prosaica comemoração de aniversário
dentro de um apartamento?
Com
absoluta certeza, a resposta é negativa, mas para que se fundamente esse
posicionamento, convém analisar rapidamente as funções das assembleias e dos
síndicos e o regime estabelecido no Código Civil para as áreas comuns e
privativas dos condomínios edilícios, de tal sorte que se possa confrontar o
veto ao artigo 11.
Conforme
ensinam Carlos Alberto Dabus Maluf e Márcio Antero Motta Ramos Marques[5], a
assembleia geral estaria situada "no topo da hierarquia dos órgãos do
condomínio, razão pela qual suas deliberações obrigam o síndico, o conselho
fiscal, os condôminos e demais ocupantes do edifício".
Acerca
disso, não resta dúvida alguma, muito embora esses autores[6] advirtam que a
propalada soberania da assembleia deva ser analisada "com certa
reserva", pois subordina-se "à lei e à convenção do condomínio".
Por óbvio isso se aplica tanto às assembleias ordinárias, como às
extraordinárias (arts. 1350 e 1355 do Código Civil).
Todavia,
há que se ponderar o seguinte: se a mens do legislador era conter a propagação
do coronavírus, que sentido faria convocar-se — nos moldes do artigo 12 da Lei
n.º 14.010/20 — uma assembleia extraordinária para que se discutisse a
utilização de áreas comuns e privativas durante a pandemia?
Como
resposta à pergunta acima, imagine-se que a deliberação fosse contrária, por
exemplo, às normas estaduais e municipais quanto ao isolamento social? Ou ainda contrária à integralidade das
orientações sanitárias?
Novamente
indaga-se: e se um funcionário do condomínio for contaminado e adoecer,
contraindo a doença no seu ambiente de trabalho[7]? À parte a questão do ônus
da prova, ao que parece, isso agravaria os riscos do empregador. Quem há de
responder, eventualmente, por isso? O condomínio (como um todo), inclusive a
parcela minoritária dos condôminos, que teria votado em sentido oposto ao da
deliberação!
Se,
entretanto, coubesse ao síndico a tomada de uma medida restritiva ou mesmo
proibitiva nos termos dos incisos I e II do artigo 11 e ele fosse omisso, ou
concorresse com dolo ou culpa, ou ainda, simplesmente merecesse o adjetivo de
"inepto", a responsabilidade por eventuais danos recairia — por ação
regressiva — sobre o seu patrimônio. Todavia, nada disso foi cogitado quando do
veto.
Parece
claro que o presidente da República tinha em vista preservar as deliberações
assembleares, em detrimento dos poderes excepcionais conferidos pelo artigo 11
ao síndico — exclusivamente durante a pandemia — malgrado a falta de
racionalidade do veto que, dentro de uma escala de valores insondável, coloca
"a vontade coletiva dos condôminos" em posição de preferência sobre a
efetividade do combate ao contágio.
A
continuação dessas reflexões virá na segunda parte deste escrito.
Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma
II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,
UFRJ e UFAM).
[1]
BRASIL. Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico
Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no
período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Brasília, 10 jun. 2020.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14010.htm. Acesso
em: 12 jun. 2020.
[2]
Acerca do histórico da tramitação do PL 1179/20, vide o Parecer e o
Substitutivo da Senadora Simone Tebet, como também o Parecer e o Substitutivo
do Deputado Enrico Misasi (PV-SP) e as 58 Emendas que foram apresentadas no
Plenário. Estas, igualmente, foram analisadas por esse parlamentar, de tal
sorte que na sessão do dia 14 de maio, aprovou-se o texto correspondente ao seu
Substitutivo sem que se desse abrigo a quaisquer Emendas ou Destaques. Por fim,
o texto foi devolvido ao Senado, que procedeu à redação final e encaminhou-o ao
Presidente da República para sanção [SENADO FEDERAL DO BRASIL. Parecer sobre o Projeto de Lei nº 1117, de
2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações
jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus
(Covid-19) da Senadora Simone Tebet (MDB/MS). Brasília, 03 abr. 2020.
Disponível em:
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8085147&ts=1585934135368&disposition=inline.
Acesso em: 05 abr. 2020; CÂMARA DOS
DEPUTADOS DO BRASIL. PARECER PROFERIDO EM PLENÁRIO AO PL N. 1.179, DE 2020.
Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas
de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).
Brasília, 14, mai, 2020. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1893920&filename=Tramitacao-PPP+1+PL117920+%3D%3E+PL+1179/2020.
Acesso em: 20 mai. 2020; CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. PL 1179/2020. EMENDAS
APRESENTADAS. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_emendas;jsessionid=AED5F4A26BE0BBBA7F8EBE22EC4FCBF6.proposicoesWebExterno2?idProposicao=2247564&subst=0.
Acesso em: 20 mai. 2020; CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. PARECER ÀS EMENDAS DE
PLENÁRIO OFERECIDAS AO PL N. 1.779, DE 2020. Brasília, 14, mai, 2020.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1894069&filename=PEP+2+PL117920+%3D%3E+PL+1179/2020.
Acesso em: 20 mai. 2020; CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. SUBSTITUTIVO AO
PROJETO DE LEI Nº 1.179, DE 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e
Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da
pandemia do Coronavírus (Covid-19). Brasília, 14, mai, 2020. Disponível
em:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1893919&filename=SBT+1+%3D%3E+PL+1179/2020.
Acesso em: 20 mai. 2020 e SENADO FEDERAL DO BRASIL. Projeto de Lei nº 1117, de 2020. Dispõe sobre
o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito
Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Brasília, 21
mai. 2020. Disponível em:
C:/Users/alexa/Downloads/PL1179.2020_AUTOGRAFO%20(2).pdf. Acesso em: 25 mai.
2020.
[3]
Como não há regra da ABNT acerca de referências extraídas de redes sociais,
optou-se por indicar a fonte tal como noticiada por um veículo de imprensa:
UOL. Bolsonaro veta proposta de proibir despejos durante pandemia. 11 jun.
2020. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/06/11/bolsonaro-veta-pl-que-deixava-sindicos-proibirem-festas-em-condominios.htm.
Acesso em: 11 jun. 2020.
[4]
BRASIL. Mensagem 331, de 10 de junho de 2020. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm.
Acesso em: 12 jun. 2020.
[5]
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MARQUES, Márcio Antero Motta Ramos. Condomínio
Edilício. 3.ed. (2ª tiragem). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 129.
[6]
MALUF-MARQUES, ob. cit. p, 129.
[7]
Acerca disso, vide: MELO, Raimundo Simão de. Adequação do meio ambiente do
trabalho em tempos de Covid-19. Consultor Jurídico, 29 mai. 2020. Disponível
em:
https://www.conjur.com.br/2020-mai-29/reflexoes-trabalhistas-adequacao-meio-ambiente-trabalho-tempos-covid-19#author.
Vide também: TORRES JUNIOR, Alípio Alves. Covid-19 e as medidas para reabertura
das atividades. Migalhas, 14 jun. 2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/327783/covid-19-e-as-medidas-para-reabertura-das-atividades.
Alexandre G. N. Liquidato é
advogado, professor universitário e doutor em Direito Civil pela USP.
Revista Consultor Jurídico
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