A
crise global, sanitária e social provocada pela Covid-19 em 2020 revelou as
consequências das políticas econômicas neoliberais das décadas anteriores sobre
os corpos vivos. A opção política e ideológica por processos de privatização e
desmantelamento dos sistemas nacionais de cuidado e atenção à saúde produziu
mortes e potencializou o sofrimento da população. A aproximação entre
neoliberalismo e necropolítica tornou-se ainda mais evidente.
O
modo hegemônico de compreender e de atuar no mundo (a que se convencionou
chamar de “racionalidade neoliberal”) passa necessariamente por decisões que
autorizam a morte. Dos grandes empresários ao trabalhador precarizado (que se
percebe, também, como um empresário-de-si e trata os outros como concorrentes a
serem vencidos ou inimigos a serem neutralizados), as respectivas decisões são
tomadas a partir de cálculos de interesse que visam quase que exclusivamente a
ampliação dos lucros e a obtenção de vantagens pessoais.
Porém,
grande parte da população permanece sem compreender a relação entre esse modo
de pensar, o crescimento do número de mortos e as opções políticas
condicionadas pelo neoliberalismo. Isso porque foi construída uma espécie de
“véu” sobre os mecanismos de sociabilidade, de produção e de reprodução do
capital (e da vida), bem como sobre as opções políticas neoliberais, que
passaram a ser vistos como naturais e inevitáveis.
Da
mesma maneira que as vítimas da violência policial e de outras manifestações de
arbítrio estatal, os pacientes sem tratamento adequado nos hospitais públicos
são também efeitos de uma determinada racionalidade, de um modo de ver e atuar
que tanto produz uma rede de poder capaz de extrapolar os limites legais quanto
faz com que parcela da população passe a ser etiquetada de “matável”.
Deixar
morrer tornou-se um mandamento neoliberal sempre que o custo da vida reduzir os
lucros e prejudicar o objetivo de acumulação tendencialmente ilimitada do
capital. A racionalidade, hoje
hegemônica, busca o lucro sobre os corpos, os mortos, as crises, os desastres,
as pandemias etc.
A
crise sanitária, econômica e social global de 2020, porém, abre um horizonte de
possibilidades. Há, a partir dela, um campo em disputa pelos atores sociais.
Como em toda crise, gera-se um momento com potencial de ruptura. A palavra
“crise”, vale lembrar, aparece na Roma Antiga como um termo médico para
designar o momento decisivo em que se define se um paciente doente irá morrer
ou, a partir da própria doença, se curar.
Em
resumo: diante de cada crise, que sempre é a consequência de um determinado
modo de ver e atuar no mundo, diversos caminhos e possibilidades se abrem.
O
mundo pós-pandemia vai ser definido a partir da resolução de uma questão
prévia: a manutenção ou não da racionalidade neoliberal. Insistir na
naturalização do modo de pensar e atuar neoliberal, que considera a busca do
lucro e de vantagens pessoais o único objetivo “racional” (ao mesmo tempo em
que trata as pessoas como objetos negociáveis), pode levar a dois horizontes
catastróficos (apresentados como naturais e inevitáveis, como toda manifestação
neoliberal).
Nos
países em que o pensamento autoritário se instaura sem maiores dificuldades,
nos quais o conhecimento e a ciência são demonizados enquanto a violência é
sacralizada, as mortes causadas pela Covid-19 são tratadas como positividades
(da mesma maneira que a eugenia era tratada como positividade pelos nazistas no
século passado). Nos cálculos de interesse levados a cabo pelos “técnicos”
desses países, em que a morte e a violência estrutural produzida pelo
funcionamento “normal” do capitalismo são naturalizadas e percebidas como
inevitáveis, as mortes em razão da pandemia viral serão consideradas “ganhos”
equivalentes aos que seriam obtidos com a destruição dos sistemas de proteção
trabalhista e previdenciário. Assim, o Estado, utilizado como um instrumento a
serviço dos detentores do poder econômico, funcionou e continuará a funcionar
como uma agência indutora de mortes (que vão se somar ao projeto genocida dos
indesejáveis em curso há muitos anos), dando concretude ao objetivo de
controlar e neutralizar os indesejáveis aos olhos dos detentores do poder
econômico. Essa lógica, o aprofundamento do pensamento autoritário e o aumento
de práticas flagrantemente antidemocráticas, não desaparecerá no mundo
pós-pandemia. Ao contrário, o medo de novas pandemias (transformado em medo do
outro) reatualizará o paradigma imunológico (nesse particular: HAN, Byung-Chul.
A sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2017), que justifica o uso do
poder por uma agência estatal (em especial, da violência) para conter a
população em nome da luta contra o
vírus.
Com
isso, nos países de baixa densidade democrática, ter-se-á o aprofundamento de
um paradigma repressivo de governo dos homens e das coisas baseado no poder
disciplinar, no obscurantismo e na naturalização de mortes evitáveis em nome
dos interesses de poucos.
Porém,
uma das principais características da racionalidade neoliberal é a
plasticidade, ou seja, sua capacidade de se adaptar aos mais variados contextos
e ideologias. Assim, em países que conseguiram construir uma cultura
minimamente consistente de respeito aos direitos e garantias fundamentais
(vida, integridade, saúde, trabalho etc.), a lógica neoliberal atuará a partir
de mecanismos e dispositivos mais engenhosos e sofisticados. A partir da
necessidade de adoção de políticas de confinamento e distanciamento social, mas
principalmente em razão da manipulação política do medo da pandemia, novas
estratégias (tipicamente biopolíticas) passarão a ser postas em prática e
naturalizadas. Serão potencializadas técnicas de psicopoder, que fazem o
indivíduo tanto naturalizar a exploração (aumento das horas de trabalho em home
office, novas precarizações do trabalho, redução dos salários etc.) quanto
fornecer informações (que serão exploradas pelo mercado e utilizadas
politicamente pelos governos).
Nesses
países em que o exercício explícito da violência ainda é capaz de chocar,
ter-se-á um novo paradigma de governo das pessoas e das coisas. Nesse novo
paradigma, a ideia de segurança sanitária passará a ocupar papel de destaque
como justificativa para o afastamento de direitos fundamentais como o da
intimidade e o da inviolabilidade frente ao Estado (sobre o tema, vale ler
Tempêtes microbiennes, de Patrick Zylberman, Gallimard, 2013). O medo da morte
diante do risco de novas pandemias fará com que conquistas da civilização que
representavam limites à ação do Estado sejam deixadas preventivamente de lado.
No lugar do poder disciplinar, dar-se-á a opção preferencial pelo recurso do
psicopoder.
A
racionalidade neoliberal, portanto, fará com que se insista em fazer do Estado
um instrumento a serviço do mercado e dos detentores do poder econômico,
prestando auxílio financeiro a empresários e a instituições financeiras,
restringindo a liberdade dos cidadãos em nome do medo da contaminação,
eliminando os espaços de intimidade, reduzindo a liberdade das pessoas,
reatualizando o poder disciplinar e aumentando o controle biopolítico sobre a
população.
Mas,
diante de um quadro de crise, também se pode construir saídas novas e
originais, revolucionárias, a partir de outro modo de ver e atuar no mundo.
Apresentar caminhos alternativos para o mundo pós-pandemia é um desafio, mas
também um dever ético. Construir coletivamente outro mundo possível em relação
ao qual qual cada pessoa se perceba responsável ainda é um sonho, mas pode se
tornar realidade.
RUBENS
R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em
Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da
ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo
Freudiano

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