Esse
edifício está sendo, passo a passo, desmontado. Não foi e nem será necessário
promover mudança no texto constitucional para continuar o esvaziamento do seu
potencial. Isso o bolsonarismo aprendeu com a melhor cepa da história
autoritária.
‘Evitar
mundos piores’ é recado que vale sobretudo para a ação política
O
historiador Tony Judt, ao olhar com assombro para o início deste século,
observou que não era hora de imaginar mundos idealizados e prescrever um
caminho sem escalas em direção ao paraíso. Os ventos da história não sopravam a
favor.
Sugeriu
pensar em como “evitar mundos piores”, em como “proteger instituições e leis,
regras e práticas que encarnem nossa melhor tentativa nessas grandes
abstrações”. Suspender a utopia para prevenir a distopia —essa era a tarefa
primária que enxergava. A ambição não pecava pela modéstia.
Judt
se referia a filósofos políticos. As abstrações não ofereciam bom guia prático
para o xadrez da ocasião ou para a urgência de se explorar as frestas da
conjuntura. A defesa de valores comuns, a essa altura, importava mais que
qualquer projeto de avanço à terra prometida. Afinal, é com base na disputa
pela versão mais atraente da terra prometida que partidos se dividem.
Tudo
isso foi outro dia, e as frestas eram mais generosas.
Não
passava pela cabeça desse estudioso do século passado algo parecido com o
Brasil de 2020, país em estado de aguda degradação cívica, paralisado na mais
grave pandemia em cem anos, e rumo a uma crise econômica e climática inauditas.
Para completar, país chefiado por um sociopata, aquele que é desprovido de
responsabilidade moral e percepção da dignidade e humanidade do outro, na
definição da psicopatologia.
“Evitar
mundos piores” é recado que vale para o pensamento, mas sobretudo para a ação
política. Diante do mal maior, pede-se concessões pragmáticas, alianças
ecléticas e renúncia a projeto eleitoral de curto prazo.
Não
é desapego desinteressado, por pura grandeza moral. É uma tentativa de
sobrevivência em liberdade, se pelo menos a liberdade for um compromisso
compartilhado acima de nossos desacordos.
A
Constituição de 1988 encarna “nossa melhor tentativa nessas grandes
abstrações”. Em nenhum lugar do passado havíamos alcançado versão melhor de nós
mesmos.
Não
foi por sua extensa declaração de direitos, nem pelos deveres e
responsabilidades que impôs ao Estado, aos indivíduos e às famílias, que a
Constituição desencadeou o desenvolvimento institucional e social que
assistimos ao longo de quase três décadas. Não foi pela beleza do texto.
Foi
antes pelo compromisso de parte das elites políticas em tomá-la como plataforma
inegociável para organizar a competição pelo poder. Foi também pelos múltiplos
canais institucionais que abriu à sociedade civil para demandar a implementação
de políticas públicas.
Essa
demanda não precisava mais apelar à generosidade do presidente, à boa vontade
do deputado ou ao favor do burocrata bem intencionado. Passou a se expressar,
finalmente, pela linguagem dos direitos. Esse novo código mudou a história da
cidadania e provocou outra dinâmica institucional, na qual o sistema de Justiça
(Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) ganhou protagonismo.
Esse
edifício está sendo, passo a passo, desmontado. Não foi e nem será necessário
promover mudança no texto constitucional para continuar o esvaziamento do seu
potencial. Isso o bolsonarismo aprendeu com a melhor cepa da história
autoritária.
As
mesmas elites políticas que asseguraram a continuidade democrática desde 1988
entraram em espiral autofágica. Perderam de vista o que estava em risco e
embarcaram na disputa sectária inconsequente. Pavimentaram a avenida para o
bolsonarismo. Divididas assim, vão ser engolidas. Se quiserem evitar o pior,
vão ter que sentar para conversar.
Conrado Hübner Mendes é
professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência
política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Texto
publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo.
https://joaoantonio.blog/2020/05/20/edificio-da-constituicao-de-1988-esta-sendo-passo-a-passo-desmontado-opiniao-de-conrado-hubner-mendes/

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