Tese
(vinculante): Impossível sair de um paradoxo!
Não
se fala de outra coisa. Oito horas de depoimento — uma montanha de palavras —
produziram um ratinho (parafraseando Moro quando confrontado com os vazamentos
do site The Intercept).
Moro,
na verdade, caiu em um paradoxo. O que é um paradoxo? É algo sobre o qual não
podemos decidir. O mais famoso é o “Paradoxo de Epimênides”: “Um cretense
disse: ‘todos os cretenses são mentirosos’”. O Apóstolo Paulo (Atos, 17),
usando-o, disse: se este enunciado é verdadeiro, é falso, já que um cretense
mentiroso o fez.
O
famoso Liar Paradox explica o ratinho produzido pela montanha de palavras.
Afinal, como eu já havia profetizado em entrevista ao Estadão, se Moro prova o
que denunciou de Bolsonaro, auto incrimina-se. Portanto, se vence, perde. Se
Bolsonaro fez tudo o que Moro disse que fez, então Moro sabia. Se sabia,
prevaricou, no mínimo. Consequência:
desdisse-se. Tergiversou. Eis o ratinho que se esgueirou por entre
milhares de palavras.
Portanto,
Bolsonaro pode ficar tranquilo: Rabbit does not come out of this bush (na minha
terra se diz “desse mato não sai coelho”). Mas no meio de tanta letrinha,
exsurgem algumas coisas. Apenas duas, porque, em termos de incriminação stricto
sensu do presidente, parece unanimidade na comunidade jurídica que Moro disse
nada (e eu insisto: não podia dizer, mesmo, justamente por causa do “fator
Epimênedes").
E
quais são as duas questões? A primeira: ficou feio para a delegada da PF e para
os procuradores da República, sempre tão ciosos com depoimentos, permitirem que
o ex-juiz desse uma de “ainda juiz” durante o longuíssimo depoimento (em 28
anos de Ministério Público, nunca tive um depoimento de mais de duas horas).
Por
exemplo, Moro disse que destruiu mensagens trocadas com Bolsonaro, dizendo-as
desimportantes. Como lembrou Pedro Serrano, se algum depoente da Lava Jato
falasse isso seria preso cautelarmente por obstruir a investigação. Afinal,
trata-se de um telefone oficial e de trocas de mensagens com nada mais, na
menos, do que o presidente da República, o que não é pouca coisa, pois não? E a
delegada e os procuradores aceitaram tudo isso passivamente, reverenciando o
depoente. Digam-me: é o depoente quem diz o que é importante para uma
investigação? Criaram — ativisticamente — um inciso novo para artigo do CPP que
trata do interrogatório? Algo como “o juiz pedirá ao réu que diga aquilo que,
no seu entendimento, considera importante para o processo”.
E
Moro complementou: "Que o Declarante esclarece que tem só algumas
mensagens trocadas com o Presidente, e mesmo com outras pessoas, já que teve,
em 2019, suas mensagens interceptadas ilegalmente por HACKERS, motivo pelo qual
passou a apagá-las periodicamente (sic)". Pronto. Então as mensagens
interceptadas existiram? Ele então tinha no seu celular (ou era o celular do
Estado?) mensagens dos tempos de juiz, certo? Em 2019 foram haqueadas. Sem
querer fazer exercício de lógica, se isso, então aquilo...
O
que se lê é que, passando por cima dos seus interrogadores e assumindo o
comando da audiência, o depoente diz que não disponibilizaria mais mensagens de
seu telefone porque (i) tem caráter privado (inclusive as eventualmente
apagadas) ou (ii) se trata de mensagens trocadas com autoridades públicas, mas
sem qualquer relevância para o caso, “no seu entendimento”.
“No
seu entendimento?” Vamos tentar entender isso: Moro é o juiz do inquérito ou o
depoente? E os Procuradores deixaram por isso mesmo?
Outra
de cabo de esquadra foi a constante resposta “perguntem a ele, o Presidente”.
Se Moro interrogasse Moro, imaginem o que aconteceria com um réu se assim
falasse...
Se
o Brasil não existisse, teria que ser inventado. Catilina patientia nostra, até
quando os fins justificarão os meios?
O
que dizer para os nossos alunos de processo penal e direito constitucional e de
deontologia jurídica?
E
pensar que Moro saiu do Ministério recitando o conceito de rule of law. Vejamos
então o conceito de rule of law e comparar com os atos do Moro, como juiz e
ministro. O rule of law, segundo o conceito clássico, é o que chamamos no mundo
continental de Estado de Direito, o mecanismo, processo, instituição, prática
ou norma que apoia (sustenta) a igualdade de todos os cidadãos perante a lei,
assegura uma forma não arbitrária de governo e impede o uso arbitrário do poder
pelos órgãos estatais. Que tal?
Comecei
com Paulo e termino com Paulo. Em Coríntios 15.33, Paulo cita a comédia de
Menandro: “as más conversações corrompem os bons costumes”.
Lenio Luiz
Streck é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS)
da Unesa (RJ).
Revista
Consultor Jurídico
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