Não
é culpa das mães ver os filhos uma hora por dia quando estão trabalhando e
tampouco não é lindo e romântico e nem é amor que toda carga de cuidados com as
crianças na quarentena seja das mulheres
Como
diria Simone de Beauvoir, basta uma crise política, econômica e religiosa para
que os direitos das mulheres sejam questionados. Estamos no meio de uma crise
sanitária e a Folha, na véspera do dia das mães, me faz uma matéria “Crianças
ganham mais tempo com as mães na quarentena”.
A
matéria discorre sobre as maravilhas de ficar em casa pela perspectiva das
crianças e das mães que ensinam os filhos a ajudarem nas tarefas domésticas, e
os entretém com pipoca, filmes, cabaninha e se conectam ainda mais através
fazendo os deveres de casa. A matéria em nenhum momento cita os pais. A palavra
pai não aparece. Em algum momento achei que estava em delírio lendo um texto
sobre como mulheres começaram a se reproduzir por geração espontânea na
quarentena.
Estamos
no meio de uma crise de saúde sem precedentes na história recente. Mães e
filhos estão confinados em suas casas tentando sobreviver, não adoecer, não
enlouquecer. As mães que não estão desempregadas, com sérios riscos para o
sustento de sua família estão trabalhando remotamente, sendo cobradas
normalmente por produtividade e tendo que manter a jornada tripla agora em
poucos metros quadrados, sem privacidade, sem separação entre sua vida pública
e sua vida privada.
A
matéria da folha me lembrou o filme A Vida é Bela, onde um pai judeu num campo
de concentração inventa uma realidade paralela para que o filho não perceba os
horrores que eles passam. As mães como Roberto Benignis, jogando jogos de
tabuleiro enquanto dez mil mortos caem lá fora e o estado lava as mãos. A
diferença é que no filme a situação é inevitável e trágica, no caso das mães
brasileiras a situação é fruto do machismo cotidiano e da negligência do
estado.
A
Vida é Bela é ficção, a quarentena por conta de uma epidemia mortal é
realidade. Ah, mas não é bom ficar com os filhos? Para algumas mães é, para
outras, não. Individualizar o problema nos afasta no ponto central da questão.
Gostando ou não da pipoca e cabaninha, a matéria não faz perguntas fundamentais
sobre a situação das mulheres que trabalham.
Se
estávamos vendo os filhos poucas horas por dia antes da pandemia a culpa era de
quem? Provavelmente a maioria das mulheres gostaria de uma jornada menos
exaustiva e um equilíbrio saudável entre a vida pessoal e o trabalho. Mas os
homens na maioria dos casos não dividem as tarefas domésticas, as empresas na
maioria dos casos não têm nenhum benefício ou programa para pessoas com filhos
e o estado brasileiro aniquila cada vez mais leis trabalhistas que poderiam dar
alguma garantia para mães trabalhadoras.
Não
é culpa das mães ver os filhos uma hora por dia quando estão trabalhando e
tampouco não é lindo e romântico e nem é amor que toda carga de cuidados com as
crianças na quarentena seja das mulheres.
Num
contexto onde as pesquisas mostram que o o homem jovem é o grupo social que
mais desrespeita as normas de saúde pública furando a quarentena, é
interessante observar como a maternidade está sendo documentada durante a
pandemia: a quarentena como um sonho realizado para mães e crianças, as
mulheres confinadas de volta ao lar, ao seu lugar de origem, a domesticidade e
a maternidade como a mais nobre, importante e mais que isso, única função que a
mulher deve cumprir na sociedade. Gilead está ali, virando a esquina.
*Renata
Corrêa é roteirista e escritora
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