"O mundo
parou. Os humanos estão recolhidos e amedrontados. A economia preocupa e há
quem diga que o day after será mais difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao
invés de convergir, os que defendem a proteção da vida (isolamento social,
redução de atividades) e os que defendem a proteção da economia (continuidade
das atividades econômicas, proteção do emprego e da renda, proteção do
trabalhador informal). Os cientistas buscam a origem da epidemia, vacinas que
evitem e remédios que curem a doença: uma febre, mal-estar, tosse seca que pode
evoluir para uma séria pneumonia, bloqueio dos pulmões e morte por
insuficiência respiratória. A doença é transmitida por contato pessoal, de
pessoa a pessoa; e a rapidez com que se espalhou pelo planeta, país a país, e
com que contaminou em poucos dias boa parte da população surpreende."
Assim começava o meu último artigo, em 28 de março [1],
quando a realidade ainda não se havia mostrado por inteiro. Passados 30 dias do
artigo, 90 dias desde a chegada do coronavírus ao Brasil, 135 mil infectados e
dez mil mortes aqui, vemos que algo diferente está acontecendo. Os bilhões de
dólares gastos anualmente em armas e equipamentos de destruição são incapazes
de destruir esse pequeno, vulnerável vírus que, se não contido por vacinas ou
medicamentos, ou se não criarmos anticorpos, se transformará em uma das maiores
ameaças aos humanos desde a nossa criação.
Em 1972, assisti por acaso no Cine Bijou, um pequeno
cinema de arte situado na Praça Roosevelt, em São Paulo, que há muito deixou de
existir, a um filme denominado "A Crônica de Hellstrom" [2]; o filme
não fez muito sucesso na ocasião e, segundo sei, nunca foi exibido depois,
embora tenha me impressionado tanto que dele me lembro após todos esses anos.
Seu tema, nada romântico e com cenas impressionantes do mundo natural (a vida
depende da morte), cuida da batalha diária pela sobrevivência e conclui que das
milhões de espécies que popularam a Terra apenas duas sobreviveram e aumentaram
a própria população após as diversas hecatombes de nossa história geológica: os
insetos (e aqui incluo, para o efeito deste artigo, os vírus, as bactérias e
quetais) e os humanos. O filme anota que a sobrevivência dos dois decorre de
uma especial adaptação às mudanças que ocorreram na planeta, e que sobreviverá
quem melhor se adaptar às mudanças ainda por vir. Não conto o final da batalha
para não estragar o interesse de quem se animar a ver o filme.
Desmond Morris em "O Macaco Nu" (nós), escrito
por um biólogo, zoólogo e etólogo, escreveu: "Sou zoólogo e o macaco
pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance de minha pena e recuso-me
evitá-lo mais tempo, só porque algumas de suas normas de comportamento são
bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de
ter se tornado tão erudito, o homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado
e, embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das
mais primitivas e comezinhas. Isso causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas
os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais
recentes não têm mais de alguns milhares de anos — e não resta a menor
esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou
durante toda a sua evolução" [3].
Os humanos nasceram e evoluíram na natureza. Mas o que é
"a natureza" de que tratamos? Como se vê em uma busca rápida na
internet, "Latim, natura, comp. pelo tema natus, p.pass. de nascere =
nascer e urus = sufixo do particípio futuro de oritur = surgir, gerar, a força
que gera. Aquilo que surge, que se dá por nascimento. Aquilo que é e faz por nascimento
segundo leis universais aplicadas a um preciso contexto. Ordem ou sistema de
leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres. O conjunto de
todos os seres que compõem o universo" [4]. A natureza é a força que gera
a ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão
dos seres; a natureza não "nasce", mas é nela, segundo suas regras,
que coisas e seres nascem, vivem e morrem.
A natureza contém as regras que regulam a formação das
galáxias, estrelas, planetas e tudo que é contido no Universo; mas é a natureza
na Terra que nos preocupa. Não adentro a discussão da presença de Deus na
criação da natureza, própria a outro momento e local; basta-nos aqui anotar a
existência de regras que precedem a existência das coisas que existem,
inclusive a vida, lembrando a sedutora Hipótese ou Teoria Gaia de James
Lovelock, segundo a qual a Terra é um organismo vivo com suas regras, nas quais
nos movimentamos [5]. Uma dessas regras é o equilíbrio, que sempre retorna após
rompido, ainda que em uma relação diferente da anterior.
Assim são as coisas inanimadas, que após o terremoto
voltam a imobilizar-se em outra posição. Assim são as coisas vivas, que
dependem da conversão de energia e não podem consumir mais do que a energia
disponível: as plantas convertem em energia o sol, o carbono do ar, os
nutrientes do solo; são a fonte de energia de animais, insetos, micróbios que
delas vivem, que são a fonte de energia de outros seres que deles se alimentam,
até o topo final da cadeia alimentar. O desequilíbrio implica na adequação de
toda a cadeia alimentar, com a extinção de alguns, a alteração de outros, a
chegada de seres novos, até que se estabeleça um novo equilíbrio em um
movimento lento, próprio à evolução e aos processos naturais.
O equilíbrio foi rompido pelos humanos ao desenvolver uma
forma de vida fora desse tempo e dessas regras, como anota Jared Diamond (em
tradução livre): "Na maior parte dos seis milhões de anos da evolução
humana, todos os humanos e proto-humanos viveram como um tipo diferenciado de
chimpanzés, em uma população de baixa densidade espalhada pela paisagem como
famílias ou pequenos bandos. Apenas nos últimos seis mil anos, uma pequena
fração da história humana, alguns de nossos antepassados se juntaram em cidades.
Mas hoje mais da metade da população do mundo vive nesses novos locais, alguns
com dezenas de milhões de habitantes" [6].
Esse crescimento da população humana implicou na
apropriação de parte cada vez maior do mundo natural através do desenvolvimento
de novas formas, ou técnicas, de conversão de energia: a caça e a extinção das
espécies desde a pré-história, a agricultura e a pecuária, a conversão de matas
para a produção de alimentos, de bens e para a criação de cidades. Esse
desequilíbrio terá um fim, pois como visto acima a natureza caminha sempre para
o equilíbrio, com uma ordem diferente desta que conhecemos.
Curiosamente, a parte mais antiga da vida no planeta é
pouco conhecida por nós e está em nosso entorno, inclusive no ar que
respiramos, como anota Nathan Wolfe depois de 15 anos de pesquisa sobre
micróbios (em tradução livre): "Como resultado, comecei a pensar no ar
como o meio para a próxima pandemia, mais que um modo de sustento da vida. Mas
respire sem medo: a maioria dos micróbios no ar nos causa pouco ou nenhum mal,
e alguns certamente nos faz bem. A verdade é, nós ainda sabemos muito pouco
sobre eles" [7]. Esse pouco conhecimento é manifesto no caso da Covid-19,
como informa Nísia Trindade, presidente da Fiocruz: "Nossos estudos já
apontam mutações — que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos
estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestações
clínicas relacionada. Não quero causar pânico, mas esse vírus é um grande
desconhecido, um estrangeiro" [8].
Sabemos que as pandemias têm origem na transmissão de
vírus por animais e pássaros, as chamadas zoonoses, e que essa transmissão vem
ocorrendo com mais facilidade por causa da redução dos habitats, pelo contato
de espécies que antes pouco ou não se encontravam e pelo contato dessas
espécies com os humanos, como decorre do tráfico de animais, dos mercados de
animais vivos, da proximidade dos humanos com a natureza de que se separou;
decorrem das intervenções mal pensadas e do simples crescimento exponencial dos
humanos, de uma forma de vida perdulária e da perda de respeito pela natureza.
Não basta aprender mais sobre os micróbios, pois eles e os
insetos continuarão sua rápida mutação e a transmissão de doenças; a simples
multiplicação da nossa população, somada às mudanças climáticas, à destruição
dos habitats e das espécies, trará novas pandemias e novas crises. A tecnologia
e a ciência têm limites e — lembro — se desenvolvem na natureza, dentro da
natureza, cujas regras não prevalecem contra as regras da natureza. É preciso
que os humanos vejam o que está à sua volta e repensem a estrutura maior em que
estão inseridos, deixem de lado a arrogância do nosso aparente sucesso e
lembrem que essa nossa forma de vida não apaga, como disse Desmond Morris, que
"o macaco pelado é um animal" que não submete a natureza, mas a ela
está submetido.
Retorno à crônica de Hellstrom. A dimensão da pandemia
causada por um pequeníssimo vírus nos força a enfrentar perguntas que evitamos
no dia a dia e a pensar em nossa espécie e em nosso planeta, decidindo agora o
que vai moldar a vida dos humanos que ainda não nasceram. Difícil? Sim, mas
necessário, pois a natureza não reclama, ela se vinga.
[1]
https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/ambiente-juridico-relacao-entre-meio-ambiente-pandemia-coronavirus
[2] É um filme de 1971, premiado com o Academy Award for
Best Documentary Feature e com o BAFTA Award na mesma categoria em 1972, que
mistura documentário, ficção científica e cenas típicas de um filme de
suspense. O filme desenvolve uma batalha entre humanos e insetos. Veja em
https://www.youtube.com/watch?v=lVZpzLUoGU0.
[3] DESMOND MORRIS, "O Macaco Nu" ou, no
original, "The Naked Ape", Ed. Record, Rio de Janeiro, 1975, pág.
7/8.
[4]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Natureza#cite_note-natureza-5, verbete
"natureza", acesso em 7-5-2020.
[5] EDIS MILARÉ, "Direito do Ambiente", 10ª Ed.
RT, São Paulo, pág. 59.
[6] JARED DIAMOND, "What We Gain or Lose in
Cities", National Geographic Magazine, abril de 2009, pág. 17. No
original: "For most of the six million years of human evolution, all
humans and protohumans lived like somewhat glorified chimpanzees, at low
population densities, scattered over the landscape as families or small bands.
Only within the past 6,000 years, a small fraction of human history, did some
of our ancestors come together in cities. But today more than half the world’s
people live in these new settings, some of which have tens of millions of
inhabitants".
[7] NATHAN WOLFE, "O Mundo Secreto dos
Micróbios", National Geographic Magazine, janeiro de 2013, pág. 138.
[8] NÍSIA TRINDADE, Presidente da Fiocruz, entrevista ao
jornal O Estado de São Paulo, 8-5-2020, pág. A-13.
Ricardo Cintra Torres de
Carvalho é desembargador do TJ-SP.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2020-mai-09/ambiente-juridico-pandemia-humanos-natureza

Nenhum comentário:
Postar um comentário