Com
a pandemia da Covid-19, a maior parte das pessoas já se acostumou com as
principais recomendações para evitar a disseminação da doença: lavar bem as
mãos com água e sabão, higienizá-las com álcool em gel e, principalmente,
isolar-se em casa, caso seja possível.
Se
essa não é uma tarefa fácil de ser seguida em tempo integral, nem garante
integral efetividade no combate ao novo coronavírus, a contenção do surto
dentro das penitenciárias levanta dificuldades ainda maiores.
Segundo
o escritório europeu da Organização Mundial da Saúde, as pessoas privadas de
liberdade são as mais vulneráveis à disseminação da doença, dadas as condições
sanitárias e a superlotação dos presídios.
"A
experiência demonstra que prisões, cadeias e similares, onde as pessoas ficam
aglomeradas e em proximidade umas das outras, tendem a atuar como fontes de
infecção e ampliação do contágio por doenças infecciosas, dentro e para além
das prisões", registrou a organização em um guia publicado em março.
No
Brasil, iniciativas para combater o avanço do surto dentro das penitenciárias
estão sendo tomadas. Dentre elas, destaca-se a Recomendação 62, do Conselho
Nacional de Justiça, que indica a tribunais e magistrados a adoção de medidas
preventivas no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.
O
documento foca, principalmente, nos presos que fazem parte do chamado grupo de
risco e, por isso, estão mais suscetíveis a complicações caso padeçam da
Covid-19. O CNJ também recomenda a reavaliação de prisões preventivas com prazo
maior que 90 dias, regime domiciliar a devedores de pensão, entre outras.
É
possível ver um esforço por parte de alguns magistrados — mas não de todos —
para se adequarem à recomendação. Tribunais e instituições, como a Defensoria
Pública, também adotaram práticas para conter o surto.
Fato
é que a recomendação do CNJ abriu as portas para uma série de pedidos de
liberdade provisória e conversão de prisões preventivas para o regime
domiciliar.
Para
além das medidas vindas de cima, todo o trabalho feito para tentar reverter
detenções enquadradas no rol da Recomendação 62 partem também de baixo, de
advogados e defensores. A ConJur separou duas histórias sobre isso.
Defensoria
Em
18 de março, a Defensoria Pública da União publicou uma orientação interna pedindo
para que os defensores promovessem inventário de todos os seus procedimentos
criminais e avaliassem, caso a caso, a possibilidade de apresentar pedidos
liberatórios com base na recomendação do CNJ.
Foi
o que a defensora Fabiana Severo, baseada em São Paulo, começou a fazer desde
então. De lá para cá, ela inspecionou 276 processos para saber quais deles
poderiam render pedidos de liberdade provisória ou domiciliar.
"O
nosso foco é verificar os casos que contam com prisão provisória há mais de 90
dias e preventivas de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça. Também
verificamos acusados que se enquadram no grupo de risco", conta.
A
defensora explica que muitos dos casos mereceriam reavaliação por parte do
Judiciário mesmo fora do contexto de pandemia. Isso porque algumas pessoas são
mantidas presas provisoriamente, apesar de, ao final do processo, quase não
haver possibilidade de pena privativa de liberdade. Ou seja, com ou sem surto
de coronavírus, muita gente já não deveria estar detida, mas está.
Ela
cita dois exemplos de crimes comuns: passar moeda falsa e dano a patrimônio. Em
ambos os casos, o réu é geralmente sentenciado a penas restritivas de direito,
como prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Ainda assim,
especialmente em casos de reincidência, são mantidas presas até que haja uma
sentença, que, ao fim e ao cabo, tende a colocá-las em liberdade.
Dos
276 processos inspecionados por Severo, em quatro ela poderá pedir cautelares
alternativas com base na recomendação do CNJ. Em um desses quatro, a defensora
já prepara Habeas Corpus. O processo envolve um réu primário que engoliu
cápsulas de cocaína. Trata-se de um portador de doença de chagas que, apesar de
ter sido condenado em regime inicial semiaberto, foi mantido preso
preventivamente.
Alguns
de seus colegas já conseguiram reverter provisórias. Em um dos casos, o réu
estava preso preventivamente por roubar fios de cobre de um prédio abandonado
dos correios.
Barril de pólvora
Impulsionada
principalmente pela Recomendação 62, a criminalista Maira Machado Frota
Pinheiro resolveu agir para o benefício de seus clientes, assim como para o de
seus colegas advogados.
Ela,
que também atua em São Paulo, elaborou dois modelos de Habeas Corpus, um sobre
cumprimento de pena, outro em caso de prisão provisória, que podem ser usados
livremente por outros profissionais.
Os
documentos foram são fundamentados por medidas adotadas em outros países, dados
de estudos sobre disseminação de doenças em ambiente carcerário e recomendações
internas.
"A
partir do momento que saiu a Recomendação 62 e que eu vi que a gente tinha uma
base legal mais consistente para adotar medidas de desencarceramento caso a
caso, eu percebi que os pedidos que faria para os meus clientes poderiam ser
parcialmente aproveitados por outras pessoas”, explica.
A
advogada conta que sempre teve interesse por saúde e que cursou algumas
matérias na Faculdade de Saúde Pública durante a graduação. "Então eu
estava afim de compreender um pouco melhor o que era a Covid-19, quais eram as
formas de disseminação, e quais eram os riscos com relação ao sistema
carcerário, por meio de referências científicas".
A
iniciativa partiu de uma angústia. "Os presídios são um barril de pólvora
para a disseminação desse vírus. O Estado de coisas inconstitucional, que a
ADPF 347 fala, irá ajudar a pandemia a se espalhar e a produzir mortes em
massa. Estamos em um momento de isolamento social com cooperação, porque existe
uma compreensão de que essa pandemia tem efeitos coletivos às vezes muito mais
pesados do que os efeitos que as pessoas vão sustentar individualmente".
Machado
diz que, com o seu modelo, tentou mostrar que há uma percepção mundial de que o
encarceramento em massa terá consequências terríveis dentro e fora dos
presídios.
"O
nosso Judiciário, assim como o senso comum, está em um momento bem avesso a
qualquer tipo de reflexão sobre a urgência de medidas para combater o número
alto de prisões. Ao mesmo tempo, por causa da forma que essa pandemia se
dissemina, a sociedade será cobrada pelo encarceramento em massa e por ser
conivente com ele", afirma.
E o futuro?
Tanto
a advogada como a defensora pública acreditam que o modo como o país está
tratando a questão carcerária em tempos de pandemia pode gerar efeitos que vão
perdurar mesmo depois que o surto passar.
Um
dos motivos para isso, dizem, é que os problemas do encarceramento em massa
estão ficando mais claros. Além disso, também é evidente que medidas poderiam
ter sido tomadas antes, e não apenas durante o surto.
"Eu
espero que esse espírito humanitário mais generalizado, que parece estar sendo
um pouco a tônica de algumas pessoas, de alguns setores, contribua para uma
reflexão mais profunda sobre os efeitos do encarceramento em massa. Em um plano
mais subjetivo, a população está sentindo o quanto a experiência do isolamento
social é dura e difícil. Espero que olhem com mais empatia para quem está vivendo
o cárcere", afirma Machado.
Já
para Severo, toda a situação catastrófica que o mundo está experimentando
talvez gere uma evolução no sistema de justiça. "Eu nunca mais vou ser a
mesma defensora nos processos criminais depois da pandemia. O olhar é diferente.
A gente precisa ficar mais atento, sair de uma posição de inércia para assumir
uma posição proativa, intransigente contra o encarceramento em massa".
Tiago Angelo é
repórter da revista Consultor Jurídico.
André Boselli é
editor da revista Consultor Jurídico.
Revista
Consultor Jurídico

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