Na
vultosa obra Psicologia da religião ocidental e oriental, o psicanalista Jung
explicou que toda religião é “uma existência ou efeito dinâmico não causado por
um ato arbitrário”. Em outros termos,
por ser uma experiência também inconsciente da condição humana, a religião,
qual seja ela, é uma atitude livre do espírito humano.
Daí
a riqueza e a beleza das expressões religiosas. Cada uma emanaria a centelha
inexplicável de ligação com a própria vida. Eis a necessidade também de se
respeitar cada dimensão religiosa em sua plena liberdade, pois a fé singular é
um encontro livre com a sua própria crença, com a expressão múltipla da força
simbólica e dos desejos envolvidos naquilo que se crê e se pratica.
A
religião se reduz, contudo, a ato arbitrário ao ultrapassar o limite espontâneo
da experiência humana ligada ao simbólico. Assim, quando o cristianismo se
transformou em religião oficial de Roma, com Constantino, também se fixou como
forma de poder dominante de governamento, distanciando-se da experiência
autêntica dos fiéis. O mesmo pode ser dito quando a Inquisição começou
deliberadamente a perseguir, a julgar e a matar quem fosse pretensa ameaça à
religião oficial.
Não
foi diferente com Calvino expulsando de Genebra quem não aderisse ao
presbiterianismo no século XVI. De igual modo ocorreu com a matança dos povos
autóctones nos processos de colonização – povos destituídos de alma, como se
dogmatizava – necessitados de conversão à marra; o mesmo diapasão valeu para os
povos africanos escravizados com suas crenças e experiências religiosas
idiossincrásicas, quase sempre consideradas diabólicas no caldo dos preconceitos
dominantes.
No
Brasil atual, vemos um presidente impondo o jejum e a oração como formas de
combate à pandemia do Cov-Sars-2. Seria nobre, se não fosse um ato de cretinice
covarde. Cretinice porque fez de tal convocação uma imposição ignorante contra
o que é real: a ameaça concreta à vida de milhares de brasileiros, destituídos
de amparo social e cuidados básicos de saúde.
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onde isolamento deverá ser mais duro
Cretinice,
pois ao necessitar de exames clínicos, cuidados médicos e intervenções
cirúrgicas, o Presidente se dirige aos melhores hospitais e profissionais do
Brasil, e não jejua e ora apenas, como deveria fazer. Nesse caso, aliás, a sua
fé é faca cega. Cretinice porque manipula a possível fé autêntica de alguns em
nome de sua incompetência e de seu delírio face às obrigações elementares que
ele deveria executar como chefe de Estado.
O
pior, no entanto, é que tal cretinice é covarde. Covarde porque coloca na linha
de frente os mais humildes e desprotegidos de recursos quaisquer. Covarde
porque faz do aparelho do Estado não uma engrenagem para ações concretas, mas
simbólicas. É preciso lembrar que aos famintos Cristo multiplicou os pães e os
peixes, não os mandou embora dizendo: “orem e tudo se resolverá”.
Covarde
pois o Brasil é um país com pobreza estrutural, cujas pessoas não comem
fartamente, ainda mais agora na precarização imposta como modo normal de vida.
Covarde porque faz da religião um escudo contra o atestado de seu fracasso
absoluto em governar, sem saber o que fazer, quando fazer e por que fazer.
Manipulada
dessa forma, a religião se reduz a uma milícia, já que defende exclusivamente
os interesses de alguns de modo impositivo, passando por cima de infindas
necessidades de outros.
No
tema do jejum e da oração, no entanto, uma coisa, o presidente ignorou. “Sabeis
qual é o jejum que eu aprecio? – diz o Senhor Deus: é romper as cadeias
injustas, desatar as cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, e
quebrar toda espécie de jugo. É repartir seu alimento com o faminto, dar abrigo
aos infelizes sem asilo, vestir os maltrapilhos, em lugar de desviar-se de seu
semelhante.” Podem conferir: está na Bíblia, no livro do profeta Isaías,
capítulo 58, versículos 6 e 7.

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