A velha classe operária acabou. As lutas típicas dos
séculos passados perderam relevância. Na era do precariado, surgem novas formas
de produzir e distribuir riquezas. A esquerda brasileira precisa superar a
melancolia e se voltar a elas
Resgatar a esquerda social brasileira da maré de
pessimismo em que mergulhou desde 2016 é árduo, mas indispensável. Em textos
anteriores, vimos o avanço de Bernie Sanders, candidato declaradamente
socialista, nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Ao fazê-lo,
mostramos que há espaço para conter o avanço da ultradireita, quando se dialoga
com as angústias da maioria (inclusive o descrédito com a velha política) e se
exploram as novas possibilidades de construir sociedades mais igualitárias e
mais democráticas, nas condições totalmente novas do século XXI. Depois, numa
edição intitulada “Decifrando Bolsonaro”, expusemos como funciona, no governo
brasileiro atual, a aliança entre o ultracapitalismo dos punhos de renda (o de
Paulo Guedes e da aristocracia financeira), e o protofascismo do porrete (o do
próprio Bolsonaro, de seus filhos, dos ministros patéticos). Naquele programa,
demonstramos que a fórmula só funciona porque falta oposição. Perdem-se, todas
as semanas, dezenas de oportunidades, tanto de denunciar os efeitos perversos
das medidas do governo quanto – ainda mais importante – de propor uma agenda de
transformações, de imaginar outro futuro e sua construção, de mostrar que há
vida além do labirinto em que nos perdemos.
Mas é necessário também tratar mais especificamente deste
futuro. É preciso mostrar que a ultradireita atual, assim como o fascismo há
cem anos, é impotente e infértil – no sentido de não expressar um projeto novo,
mas a reação desesperada do capitalismo a uma realidade que surgiu e que o
desafia. Para isso, iremos nos apoiar na ideia do Comum. É um conceito recente,
porém cada vez mais debatido na Sociologia, na Filosofia e em especial na
Política, quando se fala nas alternativas contemporâneas à exploração das
maiorias.
Não se trata mais, como nos séculos passados, de estatizar
as fábricas. Elas já não são, neste século, o centro da geração de valor. Os
trabalhadores deixaram de se concentrar em grandes unidades de produção: uma
parcela cada vez maior entre eles não bate cartão, não tem chefes, sequer
recebe salários. Agora, constituem o grande precariado. Estão dispersos pelas
ruas, carregando mochilas nas costas, obrigados a trabalhar em dois ou três
empregos e principalmente a ser empresários de si mesmos – e a adotar as
atitudes correspondentes a esta condição: trabalhar sem limites, competir entre
si mesmos, saber que nada está garantido, ter medo (muito medo) do futuro.
O Comum representa, para esta nova realidade, o que a luta
salarial significava para os trabalhadores dos séculos anteriores. Ele
materializa as ideias da igualdade e da democracia econômica. Permite tirá-las
do terreno das quimeras e transformá-las em conquistas reais, contra os donos
do mundo. Permite, em especial, transformar um cenário adverso, e aparentemente
sem saída, num terreno de lutas e de possibilidades. Pense nos operários
ingleses, que sofriam como escravos em jornadas de 18 horas, no final do século
XVIII, início da Revolução Industrial. Pense em como, algumas décadas depois, o
Manifesto Comunista lhes oferecia tanto um guia para as lutas mais imediatas
quanto um horizonte histórico, um futuro totalmente distinto do pesadelo que
viviam.
Hoje, o Comum remete às imensas riquezas produzidas pelo
Conhecimento, pela Cultura, pela Comunicação – e capturadas pelas
mega-corporações e pelos bilionários do planeta. O Comum são as florestas, sua
biodiversidade, os saberes ancestrais e contemporâneos que permitem
aproveitá-las sem destruí-las. O Comum é a Água, que as multinacionais querem
controlar em toda parte (neste exato momento, no Brasil), o que gera revoltas
populares como a pioneira, em Cochabamba, na Bolívia, já nos anos 1990. Comuns
são a Saúde igual para todos, a Educação de excelência e inovadora, a Habitação
e o Transporte públicos e gratuitos – como se reivindicava nas ruas do Brasil
em 2013. O Comum é o emprego garantido para todos que o desejem – e voltado,
por exemplo, para a transição energética, a construção de redes de metrôs ou
ferrovias ou a despoluição dos rios. O Comum é a Renda da Cidadania, assegurada
incondicionalmente a todos os cidadãos, independente de contrapartida em
trabalho. Todas estas dimensões não são apenas abstrações teóricas.
Correspondem a lutas sociais que estão se dando há anos — e também neste exato
momento — em diversas partes do mundo. Pense, por exemplo, nas propostas da
insurreição que desmascarou, há poucos meses, o neoliberalismo no Chile. O que
falta é uma construção, teórica e política, que converta os Comuns em motivo
geral de luta – mais ou menos como foi com a jornada de 8 horas diárias de
trabalho, há cerca de 150 anos.
Mas há uma outra dimensão menos conhecida e igualmente
crucial para superar o capitalismo. É o Modo de Produção do Comum – ou seja,
novas formas de organizar o trabalho coletivo, de rever as hierarquias, de
repartir o que é produzido, de difundir esta produção pelo mundo. Estas
relações já existem, de modo embrionário porém efetivo, na vida real. Convivem
com as relações capitalistas, que evidentemente são hegemônicas. Buscam ampliar
seu espaço, reproduzir-se. São combatidas ferozmente pelo sistema atual, que
procura a todo custo inviabilizá-las. Para examinar estas relações, um
excelente começo é o ensaio How to Create a Thriving Global Commons Economy, ou
Como criar uma economia florecente de Comuns Globais, do pesquisador belga
Michel Bawens, fundador do Fundação Peer to Peer e um dos grandes estudiosos
dos Comuns contemporâneos. *
A produção segundo a lógica do Comum, explica Bawens no
texto, tem origens pré-capitalistas. O cercamento das terras comuns, na fase
final do feudalismo, impulsionou a Revolução Industrial, e a transição ao
sistema hoje dominante, ao obrigar os camponeses a migrar em massa para as
cidades e aceitar a condição de assalariados nas fábricas nascentes (e totalmente
insalubres0. Mas as raízes são ainda mais remotas. O Comum era a base da
organização produtiva, por exemplo, das sociedades tribais antigas, da maior
parte dos povos americanos, quando da chegada dos europeus, ou de muitas das
nações indígenas do Brasil contemporâneo. Algumas das características destes
processos do passado são resgatadas e ressignificadas na produção do Comum
contemporâneo, mostra o ensaio.
Bawens refere-se a ferramentas que você certamente já
empregou: a Wikipedia, construída colaborativamente por milhões de voluntários.
Mas também coletivos menores, cujos membros vivem do trabalho que realizam.
Entre muitos outros, programa Apache, base de grande maioria dos servidores
onde estão instalados todos os sites da internet. O sistema operacional Linux,
coração do Android, presente na maior parte dos celulares do planeta. O
WordPress, a partir do qual são construídos milhões de publicações — entre
elas, Outras Palavras. O Libre Office, que produz editores de texto, planilhas
e outros produtos de escritório tão potentes e constantemente atualizados
quanto os da Windows. O Firefox, usado por cerca de 10% dos internautas para se
movimentar na internet e mesmo o Chromium, base do Chrome, da Google, o mais
popular de todos os navegadores.
Todos estes projetos, explica o artigo, são construídos
por comunidades que reúnem milhares de pessoas, e funcionam segundo a lógica da
Produção por Pares baseada no Comum (CBPP, no acrônimo em inglês). Algumas de
suas características centrais são claramente pós-capitalistas. As instituições
encarregadas da produção não são empresas de propriedade privada, mas
organizações semelhantes a cooperativas. Não há objetivo de lucro, muito menos
apropriação individual deste (pode haver acumulação de recursos, investidos para
ampliar as ações da comunidade). As hierarquias são fluidas: o trabalho
coletivo é estruturado de forma que cada programador contribua com o
desenvolvimento de partes específicas de um dado projeto, segundo sua aptidão.
Há, é claro, coordenação e controle de qualidade – mas não subordinação. O
assalariamento é residual. Não há alienação: cada um contribui apenas com os
projetos que julga merecerem seu empenho pessoal. Buscam-se formas igualitárias
de distribuir as receitas entre os que trabalham.
Como vivemos sob hegemonia do capitalismo, frisa Bawens,
não é possível evitar de todo as relações mercantis. A Apache oferece seus
programas no mercado. O WordPress, o Firefox, as múltiplas “distribuições”
(versões) do Linux e o Libre Office são gratuitos. As instituições que os
produzem financiam-se vendendo programas e desenvolvimento de nicho, para
clientes empresariais, ou buscando outras formas de captação de recursos. Todas
estas comunidades também compram, no mercado, os insumos para seu trabalho – os
computadores, o aluguel dos escritórios, a eletricidade, o material de consumo
etc etc etc.
O ponto principal do ensaio é demonstrar que o Comum,
visto principalmente como um conceito útil para pensar a distribuição de
riquezas, pode ser também um modo de produção. Para isso, destaca Bawens, são
necessárias mudanças sociais muito mais profundas – e, é claro, exteriores às
comunidades que hoje produzem segundo a nova lógica. A instituição de uma Renda
da Cidadania suficiente para assegurar a todos uma vida digna, por exemplo, é
crucial, porque livra a população do trabalho obrigatório e alienado e libera
cada pessoa a empregar uma parcela muito maior de seu tempo nas tarefas que
julgar mais relevantes para si mesma, a sociedade e o planeta. A garantia de serviços
públicos de excelência gratuitos – começando por Saúde, Educação, Habitação e
Transportes –, também, porque acaba com o tormento de ter de comprar,
incessantemente, a própria vida.
Bawens destaca, no artigo, dois aspectos que reforçam a
potência do Comum como alternativa pós-capitalista. Uma parcela cada vez mais
importante da produção de riquezas está concentrada no imaterial – ou seja, nos
chamados bens não rivais, que podem ser distribuídos infinitamente com custo
quase zero. Pense nos livros, na música, nas obras de arte, mas também no
design de uma roupa, uma bolsa, uma bicicleta ou um relógio. O imaterial é hoje
o terreno em que as grandes corporações mais geram valor, lançando produtos
distintivos, que segregam os indivíduos e, ao fim das contas, definem o status
que a sociedade dará a eles. Este mesmo imaterial pode ser o espaço da
igualdade e, num certo sentido, do que Caetano Veloso uma vez chamou de “luxo
para todos”.
Outro aspecto é a automação crescente e cada vez mais
intensa. Hoje, ela gera desconforto, insegurança e pavor. Ao fazê-lo funciona
como arma poderosa de domesticação das maiorias. Porém, numa sociedade
articulada em torno do Comum, permitirá reduzir drasticamente o tempo do
trabalho humano necessário, gerar uma abundância positiva de força de trabalho
e tornar obsoletas as relações de produção hierarquizadas e alienadas. Se minha
contrapartida social, pelo direito a viver dignamente, for trabalhar quinze
horas por semana, como previu Keynes, posso empregá-las escrevendo reportagens,
oferecendo aulas de jornalismo ou contando histórias para crianças, em praças
públicas. Meu trabalho deixará de ser uma obrigação forçada pela necessidade do
salário e pela pressão de um chefe autoritário, para se converter numa
contribuição prazerosa à sociedade – e por isso realizada com preparação,
cuidado, responsabilidade e capricho.
E aqui voltamos ao caráter e papel do protofascismo
contemporâneo, dos Trump, Boris Johnson, Salvini, Duterte e Bolsonaro. Todas as
novas relações sociais elencadas há pouco são materialmente possíveis. O que as
bloqueia é um sistema que sucumbiria diante delas – porque não há capitalismo
sem que as maiorias sejam obrigadas ao trabalho submisso; nem em condições de
abundância, que tornem sem sentido a competição entre os seres humanos.
As últimas hipóteses desta análise, portanto, são: a) O
que chamamos de ofensiva da ultradireita é, na verdade, uma tentativa
desesperada de defesa. O capitalismo já não é capaz de oferecer vida digna –
como mostram, por exemplo, a concentração indecente de riquezas ou a redução da
expectativa de vida mesmo nos Estados Unidos, centro do sistema. Além disso,
está acossado pela emergência de novas relações – inclusive de produção – que
ameaçam as bases em que se assenta. Para assegurar sua sobrevivência recorre,
com frequência cada vez maior, à vigilância obsessiva, aos golpes, às guerras,
aos assassinatos de inimigos, a políticos grotescos.
Estes políticos são, de fato, muito perigosos.
Enfrentá-los exigirá enorme esforço. Mas é importantíssimo saber que eles só
existem porque surgiram condições reais para superar o capitalismo. Descobrir
os caminhos para isso é algo que já começa a ser feito, em diversas pares do
mundo. O Brasil pode e precisa fazê-lo também. A única condição para tanto é
uma esquerda que olhe para frente, ao invés de se voltar, melancólica, para um
passado que não voltará.
—
Nota: Este texto foi alterado. No início do terceiro
parágrafo, onde se afirma agora que “não se trata mais, como nos séculos
passados, de estatizar as fábricas”, dizia-se antes que já não cabe “socializar
os meios de produção”. Ora, estabelecer os Comuns, a proposta central do texto,
nada mais é que “socializar os meios de produção”, nas condições
contemporâneas. A velha fórmula de Marx é mais atual que nunca, embora com nova
aparência. Um leitor atento, o professor Jair Pinheiro (Unesp-Marília), notou o
descuido, pelo que muito lhe agradeço (A.M.)
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