Em
2 de outubro de 2017, o país foi surpreendido com a chocante notícia da morte
do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos
Cancellier, que se suicidara em um shopping de Florianópolis. Dezessete dias
antes, Cancellier havia sido afastado da função pública que exercia e preso
preventivamente por 30 horas no âmbito de uma operação da Polícia Federal que
investigava supostos desvios em cursos de Educação à Distância oferecidos pela
universidade.
No
dia de sua prisão, a PF veiculou a notícia de que a operação desbaratara um
suposto esquema de desvios de mais de R$ 80 milhões. A repercussão foi
determinante para a decisão de Cancellier de tirar sua própria vida. Tempos
depois, a própria Polícia Federal desmentiu a informação, já que tal valor se
referia ao total dos repasses para o programa. Não havia qualquer elemento
indiciário que envolvesse Cancellier no inquérito.
Os
equívocos só foram admitidos extemporaneamente. Em um bilhete encontrado no
bolso do suicida, um recado: "minha morte foi decretada no dia do meu
afastamento da universidade"[1].
A
família do reitor apresentou representação junto ao Ministério da Justiça para
que a divulgação errônea dos fatos fosse apurada. O irmão da vítima narra que,
dois meses depois, a Polícia Federal respondeu que a publicação da notícia
falsa seria indiferente já que “ninguém lê”[2]. A sindicância aberta contra a
delegada responsável pelo caso foi estranhamente arquivada sem qualquer
punição[3].
A
emblemática história de Cancellier deve ser rememorada na data de hoje (3/1),
que marca o início da vigência da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei
13.869/2019). A legislação representa um avanço civilizatório ímpar para o
Direito Penal brasileiro, não apenas por ter conferido aprimoramento técnico
significativo em relação ao diploma anterior (Lei 4.898/65), mas sobretudo por
sacralizar o compromisso de autorreflexão de uma sociedade democrática sobre os
limites do sistema punitivo.
A
concepção de um regime de responsabilização dos representantes do Estado por
excessos funcionais remota à Constituição Republicana de 1891[4]. Textos
constitucionais subsequentes conservaram como garantia individual o direito de
petição voltado à denúncia de práticas abusivas de agentes públicos[5]. A
despeito dessa longa tradição, os atos de abusos de autoridade só vieram a ser
criminalizados, curiosamente, durante a Ditadura Militar, com o advento da Lei
4.898 de 9 de dezembro 1965, cuja vigência também vem a termo na presente data.
A
legislação revogada deriva do Projeto de Lei 952 de 1956, de autoria do então
deputado Bilac Pinto, da União Democrática Nacional de Minas Gerais (UDN-MG),
apresentado durante o governo de Juscelino Kubitschek. A justificativa da
propositura legislativa não escondia sua intenção de firmar um contraponto à
escalada de violência policial ainda no período democrático.
Nas
palavras de Bilac Pinto, o objetivo da norma seria “o de complementar a
Constituição para que os direitos e garantias nela assegurados deixem de
constituir letra morta em numerosíssimos municípios brasileiros”[6]. O texto
aprovado no Congresso Nacional foi sancionado pelo presidente Castello Branco
com um único veto parcial (modalidade admitida à época) aposto ao artigo 10 da
lei, o qual estabelecia a independência entre as ações penais e as ações cíveis
reparatórias.
Em
muitos pontos, porém, o caráter atécnico da Lei 4.898/65 comprometeu a sua
efetividade. As tentativas de definição dos excessos na ação dos agentes
públicos insculpidas no diploma careciam de uma taxatividade que conferisse
segurança mínima à aplicação da norma penal. A conceituação dos atos de abuso
foi remetida a um rol demasiadamente amplo de condutas atentatórias à liberdade
de locomoção e a outros direitos individuais descritos nos artigos 3º e 4º.
Para além da deficiência legística, as manchas históricas do autoritarismo do
regime militar deixaram claro que a lei em questão “não pegou”.
Após
o restabelecimento da ordem democrática em 1988, as discussões sobre o regime
criminal de abuso de autoridade só vieram a ser reanimadas no final dos anos
2000. Por ocasião do 2º Pacto Republicano firmado entre os representantes dos
Poderes da República em 2009, foi posta como meta prioritária da agenda de
proteção de direitos humanos “a revisão da legislação relativa ao abuso de
autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção
e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em
eventuais violações aos direitos fundamentais”[7].
No
âmbito do Comitê Gestor do Pacto Republicano, instituiu-se uma comissão de
notáveis dedicada a aprimorar a antiga legislação de abuso de autoridade. O
grupo era composto por juristas que foram e são verdadeiros símbolos do
comprometimento do Poder Judiciário com os princípios estruturantes do Estado
de Direito. A comissão era liderada por ninguém menos que Teori Zavascki, à
época ministro do Superior Tribunal de Justiça, figura ímpar da história recente
da magistratura brasileira. Integravam ainda o grupo nomes ilustres como Rui
Stocco, Vladmir de Passos Freitas, Antônio Umberto de Souza Júnior, Everardo
Maciel e Luciano Fuck.
Os
resultados dos trabalhos do grupo corporificaram o Projeto de Lei 6.418, de
autoria do então Deputado Raul Jungmann, apresentado ao Plenário da Câmara dos
Deputados em 11 de novembro de 2009 [8]. A propositura legislativa foi
intensamente discutida com integrantes do Ministério da Justiça, juízes,
parlamentares, representantes do Ministério Público, auditores fiscais e
membros das forças policiais. Trata-se, em essência, de uma fórmula de
compromisso institucional que já chegou madura à deliberação do Parlamento.
A
legislação de abuso de autoridade que entra em vigência na data de hoje é
resultado da aprovação dos Projetos de Lei do Senado 280/2016 e 85/2017. Ambos
os projetos incorporaram o texto original do Projeto de Lei 6.418/2009. Ou
seja, Lei 13.869/2019 é, no seu DNA, um constructo de juristas como Zavaski,
Stocco, Freitas e Maciel. Como cediço, após a aprovação do texto da lei no
Congresso Nacional, houve ainda 36 vetos presidenciais, dos quais apenas 18
foram mantidos pelo Parlamento, os quais não desfiguraram o núcleo da proposta
pensada no 2º Pacto Republicano.
É
indiscutível que nenhuma legislação nasce perfeita, muito menos as que
amadurecem em um caminho histórico tão labiríntico. É possível, e mesmo
necessário, que alguns dispositivos da lei tenham que ser submetidos a um teste
de batimento à luz do texto constitucional. Todavia, a qualidade técnica da
proposição aprovada é digna de destaque. A latitude da incidência da norma
sujeita qualquer agente público ao seu escrutínio, do Presidente da República
ao guarda de trânsito da esquina.
Para
além, a ampla conquista de uma nova Lei de Abuso de Autoridade transcende o
exame da sua tecnicidade. O ganho democrático da legislação está em reinserir
na pauta institucional um debate que nunca deveria ter sido relegado a segundo
plano.
Longe
de ser uma jabuticaba, diversos países da tradição romano-germânica em
democracias consolidadas conservam leis penais efetivas voltadas à coibição de
excessos dos agentes públicos. Na França, os artigos 332-4 a 332-9 do Código
Penal trazem previsões específicas para o abuso de autoridade, tipificando como
crime “ordenar ou praticar arbitrariamente ato prejudicial à liberdade
pessoal”.
Na
Alemanha, a legislação criminaliza a “violação ou torsão do Direito”, a
Rechtsbeugung do §339 StGB, e ainda o delito de “persecução de inocente”, a
Verfolgung Unschuldiger do §344 StGB. Na Espanha, o artigo 446 do Código Penal
prevê a punição do "juiz ou magistrado que, intencionalmente, ditar
sentença ou resolução injusta”. Este foi, inclusive, o dispositivo que
fundamentou a condenação do juiz Espanhol Baltasar Garzón, por violação ao
direito de defesa dos réus na ordenação de interceptações telefônicas ilegais.
Se
é inegável que toda norma recebe a incontornável marca da sua temporalidade, a
Lei 13.869/2019 embalsama-se em uma quadra única da nossa história recente: o
momento de reconciliação do sistema punitivo com os pilares essenciais do
constitucionalismo democrático. Seja por nos advertir dos profundos riscos do
autoritarismo, seja por sagrar a virtude da prudência na realização da justiça,
a Lei 13.869/2019 merece ser cunhada de Lei Cancellier-Zavaski.
1
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1923630-reitor-da-ufsc-encontrado-morto-deixou-um-bilhete-no-bolso-da-calca.shtml
2
https://veja.abril.com.br/brasil/ele-se-sentiu-humilhado-e-impotente-diz-irmao-de-reitor-que-se-suicidou/
3
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/1954885-assessor-produziu-parecer-para-eximir-delegada-da-pf-em-sindicancia.shtml
4
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no
paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança
individual e á propriedade, nos termos seguintes: § 9º É permittido a quem quer
que seja representar, mediante petição, aos poderes publicos, denunciar abusos
das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados.
5
Disposições semelhantes se fazem presentes: no art. 113, inciso 10, da
Constituição de 1934 e no art. 141, § 37, da Constituição de 1946.
6
Discurso de apresentação do Projeto de Lei nº 952 proferido pelo Deputado Bilac
Pinto em10 de janeiro de 1956. Disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD17JAN1956SUP.pdf#page=3.
7
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Outros/IIpacto.htm.
8
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=713795&filename=PL+6418/2009
Gilmar Ferreira Mendes é
ministro do Supremo Tribunal Federal, Doutor e Mestre em Direito pela
University of Münster (Alemanha). Mestre e Bacharel em Direito (UnB). Docente
permanente nos cursos de Graduação, Pós-graduação lato sensu, Mestrado e
Doutorado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Victor Oliveira Fernandes é
assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal. Doutorando pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito
Econômico nos cursos de Graduação e Pós-graduação lato sensu do Instituto
Brasiliense de Direito Público (IDP).
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/opiniao-lei-cancellier-zavaski-lei-abuso-autoridade
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