“Não há tirania mais cruel que aquela que se exerce à
sombra das leis e com as cores da justiça.”
Montesquieu, em Do espírito das leis.
Uma das formas mais comuns de a tirania se manifestar no
Estado “punitivista” é o encarceramento que desrespeita o princípio da
presunção de inocência do cidadão investigado – sobretudo quando nem foi
condenado e sequer denunciado se acha como autor de um suposto crime ainda em
apuração. Como abundantes jabuticabeiras penais, essa forma de violência
institucional está em permanente expansão na esfera do aparato da persecução
penal do Brasil. Antes de se investigar, prende-se. Antes de se denunciar,
prende-se. Antes de se condenar, prende-se. E a prisão, que deveria ser a
resposta final imposta como punição ao réu induvidosamente culpado, passa a ser
uma aleatória e opressiva antecipação do imprevisível desfecho do que seria o
devido processo legal.
A volúpia, senão sanha, de aprisionamento que empolga
certas autoridades, tradicional e abusivamente lançada no lombo de centenas de
milhares de pessoas do povo, agora deu para estender-se a ex-presidentes da
República cujo crime é figurar de depoimentos de terceiros (delatores
premiados) em inconclusos inquéritos policiais ou outros feitos. Um foi detido
recentemente por breve tempo e um segundo agora teve sua detenção pretendida
pela Polícia Federal com a impenitente e jamais demonstrada alegação de que
poderia obstruir investigações.
O aluvião de prisões cautelares avoluma-se hoje naquilo
que Rui Barbosa chamou em 1920 de “praga pública”. O Brasil contava em agosto
812 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho
Nacional de Justiça. Nada menos que 337 mil desses reclusos são os chamados
provisórios, é dizer, aguardam um julgamento em que, afinal, será decidido se
ao rigor da lei merecem ou não ficar na cadeia. Pela lei, são presumidamente
inocentes. Julgados, muitos serão absolvidos e libertados, ou seja, foram
presos indevidamente, entre eles uma grande parcela de pretos e pobres,
condições que em geral se conjugam na legião de despossuídos humilhados e
ofendidos, vítimas de uma certa polícia que, quando não prende, aleija ou mata
– considerando que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017,
5.159 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais.
Apesar de escandalosos, os oceânicos números parecem não
satisfazer à vontade incontrolável de aprisionamento que tem animado nossas
autoridades. Os holofotes não chegam a eles. Maior repercussão tem essa cruzada
quando lança sua rede de arrasto em figuras proeminentes da República. Foi por
essa modalidade de extração midiática que o ex-presidente Michel Temer acabou
detido em plena rua, em maio, em espetáculo cercado de câmeras, com base em
delação premiada – aquela modalidade de investigação penal que se sustenta em
um castelo de palavras a que falta o alicerce da prova e da verdade.
Talvez animados pelo sucesso dessa ação espetacular, por
ordem de um desses juízes “celebridades”, embora instâncias superiores o tenham
libertado imediatamente por reconhecer a ilegalidade do ato, nossos insaciáveis
carcereiros acabam de dirigir sua sanha de aprisionamento, à ex-presidente
Dilma Rousseff. Ao investigar supostos fatos ilícitos da campanha eleitoral de
2014, e novamente com base na verbiagem das delações premiadas, solicitaram ao
Supremo Tribunal Federal a decretação da sua prisão processual, novamente
recorrendo ao artificioso argumento de que ela, em liberdade, hipoteticamente
poderia obstruir as investigações – já documentadas em um volume de 218
páginas. O sofisma processual é tamanho que, decorridos quase 2 mil dias dos
fatos, que utilidade social ou mesmo investigativa se teria em a Polícia
Federal manter a ex-presidente presa por exíguos cinco dias? A resposta é
simples: a prisão humilha, desprestigia, fragiliza a dignidade do ser humano –
e quanto mais famoso ele o é, mais empoderados se sentem os algozes. O pormenor
esdrúxulo do episódio em si já de todo extravagante é que a ex-presidente
sequer fora intimada a prestar esclarecimentos sobre os fatos em apuração, em
suma, acerca das suspeitas que os policiais consideram tão comprometedoras a
ponto de quererem levá-la odiosa e prematuramente ao cárcere.
Que sentido haveria em se aprisionar uma pessoa por fatos
de cinco anos pretéritos, ainda em investigação, se é precisamente esta que
deve determinar a existência material de crime e apontar seus autores, que
serão devidamente processados e, se culpados e condenados, enfim punidos? O
indisfarçável e único propósito dessa prisão é, sem dúvida, a volúpia de
aprisionamento, que acomete determinados agentes da autoridade do Estado.
Desta vez, porém, falou mais alto o Direito e a
arbitrariedade foi barrada, contando com o raro concurso do Ministério Público,
também afeito às penas antecipadas, mas com sensibilidade para detectar e
repelir a excrescência. Decisiva, no entanto, foi a ausência na cadeia de
arbitrariedades do elemento nuclear desses atentados aos direitos fundamentais
vigentes no Estado Democrático de Direito, ou seja, o juiz-justiceiro, que
manda prender por dá cá essa palha. Relator da matéria no STF, o ministro Edson
Fachin negou o pedido de prisão, com a lúcida observação de que “a pretensão de
restrição da liberdade de locomoção dos investigados não se encontra provida da
indicação de concretas condutas atentatórias às apurações que evidenciem a
necessidade da medida extrema.” Ademais, com a diligência de julgador que deve
zelar pela legalidade do processo, determinou que a ex-presidente fosse, apenas
e enfim, intimada a depor.
Oxalá o sensato decisório deite raízes e iniba de vez a
fúria de encarceramento indevido – espécime maligno da imposição legal da
tirania de que falou o grande Montesquieu.
José Roberto Batochio é
advogado criminalista, foi presidente Nacional da OAB, da AASP (Associação dos
Advogados de São Paulo), da OAB-SP e deputado federal (PDT-SP).
Revista Consultor Jurídico
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