Seu pensamento, ao contrário do ocidental, vê o mundo de
modo não fragmentário. Cultiva e valoriza a reciprocidade. Influencia filósofos
como Edgar Morin. À beira da catástrofe climática, seremos finalmente capazes
de entendê-los?
Há uns dez anos, nos encontros do Conselho Episcopal
Latino-Americano (CELAM), já se falava na emergência do fenômeno indígena na
América Latina. O próprio Vaticano enviava seu observador para essas reuniões,
com foco particular nessa questão. Naquela época o que parecia novo eram as
questões Mapuche no Chile, Guarani entre Brasil e Paraguai e Yanomami nas
fronteiras de Brasil e Venezuela. Já se constatava que o fenômeno indígena
tinha duas alavancas consideradas perigosas por muita gente: a reconquista dos
territórios e a retomada de suas culturas, particularmente as teologias índias.
Nos últimos dez anos a questão deixou de ser um fenômeno
surpreendente para converter-se em realidade. A defesa da bandeira dos povos
originários na Bolívia – a Whiphala – confirma que esses povos sul-americanos
vieram para reconquistar o lugar e o espaço usurpado quando da invasão ibérica
no continente que lhes pertencia, mas também para retomar sua própria identidade.
O fenômeno indígena assusta uma elite branca, que
conquistou esse continente, promoveu um verdadeiro genocídio durante séculos,
escravizou ou marginalizou esses povos, deu-os por extintos em muitos lugares –
como os índios do Nordeste do Brasil –, mas agora os vê reerguendo a cabeça,
suas culturas, suas teologias e lutando pela reconquista de seu espaço.
As lutas repressoras, as tentativas de destruição moral,
cultural e mesmo física desses povos também reemergem com mais violência.
Assistimos à destituição do poder, como na Bolívia; ao avanço sobre seus
territórios, como no Brasil; à tentativa da destruição moral e cultural como
sempre foi durante os séculos; ou simplesmente à política integracionista que
nunca deu resultado, como é o caso mais uma vez do governo brasileiro.
Qual a possibilidade concreta de que, finalmente, os que
se consideram brancos e supremacistas possam realmente eliminar os povos
originários? Praticamente nenhuma, a não ser promover uma enorme chacina nos
tempos atuais. Mas também essas, ao longo da história, são incapazes de
eliminar esses povos. Eles lidam com longos períodos, muitas vezes milenares.
Estes não obedecem à lógica imediatista do capital internacional, que deseja
suas terras e suas riquezas e os vê como inimigos do progresso.
Porém, nos tempos atuais esses povos não estão a sós. No
documento do Sínodo para a Amazônia, a igreja católica faz uma virada
copernicana. Eis um trecho:
“O pensamento dos povos indígenas oferece uma visão
integradora da realidade, capaz de entender as múltiplas conexões entre tudo o
que é criado. Isso contrasta com a corrente dominante do pensamento ocidental,
que tende a se fragmentar para entender a realidade, mas falha em rearticular o
conjunto de relações entre os vários campos do conhecimento. O gerenciamento
tradicional do que a natureza lhes oferece foi feito da maneira que hoje
chamamos de gerenciamento sustentável. Também encontramos outros valores nos
povos nativos, como reciprocidade, solidariedade, senso comunitário, igualdade,
família, organização social e senso de serviço” (Sínodo para a Amazônia, n0
44).
A crítica desse texto ao chamado pensamento ocidental é
funda e de ruptura com sua matriz. O pensamento ocidental é necessariamente
fragmentado, incapaz de rearticular o conjunto das relações. Já os povos
originários têm uma visão integral e integradora da realidade.
Não é uma negação total do pensamento ocidental, mas uma
crítica à sua incapacidade de integrar o todo. Portanto, como tantas vezes
expressa o Papa Francisco, o futuro da humanidade e da Terra passa também pela
epistemologia e pelos saberes desses povos. Sozinho, o pensamento ocidental não
tem como resolver o drama humano, inclusive o da sobrevivência na face da
Terra.
Diante dessa lacuna do pensamento ocidental, muitos
pensadores já propõem, como novo paradigma das ciências, o “pensamento
complexo”. Edgar Morin, um dos expoentes dessa linhagem, chega afirmar
claramente que “a complexidade é uma palavra-problema e não uma
palavra-solução” (MORIN, pg. 06). Portanto, não há respostas prontas, há que se
fazer novos caminhos, e os povos originários das Américas têm muito a
contribuir nessa busca. Provavelmente, há muito que se aprender com os povos
originários de todo o mundo.
O diálogo com as teologias índias me pareceu a mais
surpreendente e revolucionária das propostas advindas do Sínodo para a
Amazônia:
“Teologia índia, teologia voltada para a Amazônia e
piedade popular já são riqueza do mundo indígena, sua cultura e espiritualidade
(n0 54)... Todos somos convidados a abordar os povos da Amazônia da mesma
forma, respeitando sua história, suas culturas, seu estilo de ‘bem viver’ (n0
55)…. Especificamente, propõe-se aos centros de pesquisa e pastoral da igreja
que, em aliança com os povos indígenas, estudem, compilem e sistematizem as
tradições das etnias amazônicas para favorecer um trabalho educacional baseado
em sua identidade e cultura, que ajudem a promoção e defesa de seus direitos,
preservar e disseminar seu valor no cenário cultural latino-americano” (n0 56).
Um evento preparatório do Sínodo, em Macapá (AP), um
indígena nos colocava sua teologia diante da proposta da Ecologia Integral.
Tomando a palavra, sempre de forma muito educada e respeitosa, em outras
palavras, ele nos disse:
“Essa proposta da Ecologia Integral é muito interessante,
mas é para vocês que são brancos. Nós já vivemos assim. É que para a teologia
de vocês, cada pessoa tem uma alma (espírito) individual. Para nós, não. Existe
só um grande Espírito, que está em mim, está em cada um de vocês, está na onça,
nas árvores, em cada ser vivo. Por isso, a onça é minha irmã, a árvore é minha
irmã, cada um de vocês é meu irmão e minha irmã. Portanto, eu não posso matar uma
onça, porque mato a minha irmã. Eu não posso derrubar uma árvore, porque estou
derrubando a minha irmã. Quando é necessário, pedimos perdão e nos
comprometemos a replantar essa árvore em algum lugar”.
Essa teologia será facilmente acusada de animista, de
panteísta por nossas teologias cristãs. O problema não está aí – mas em nos nos
recusamos a dialogar sobre a beleza e a profundidade nela escondidas, no que
diz respeito ao cuidado, ao respeito por cada ser vivo, por cada criatura. Se
formos capazes de ouvir o que essa teologia tem a nos dizer, já será um grande
passo na compreensão do outro e na busca de caminhos fundamentais para uma
verdadeira Ecologia Integral.
Ouvir esses povos, escutar suas teologias, aprender com
eles, desaprender nossa hegemonia e nossos colonialismos, recusar o
proselitismo, são todos elementos de uma nova postura, já tardia, mas ainda em
tempo de acolher a contribuição desses povos para o bem da Amazônia, da
humanidade e de toda a Terra.
Embora a tendência clara da humanidade atual seja na
direção de um armagedon, pela agressão a Terra, pela ascensão da
extrema-direita, pelo desprezo ao ser humano empobrecido e migrante, pela
destruição em massa da vida na Terra, Leonardo Boff nos oferece um outro viés,
talvez mais sutil e escondido, mas que reflete o mais profundo dos humanos
solidários e conscientes da beleza e grandeza da vida. Escreve ele:
“Para ganhar alguma luz, convém pensar estas questões em
termos da física quântica e da nova cosmologia. A evolução não é linear; ela acumula
energias e dá saltos. Assim também nos sugere a visão elaborada por Niels Bohr
e por Werner Heisenberg: virtualidades escondidas, vindas do Vácuo Quântico,
daquele Oceano indecifrável de Emergia de Fundo, O Abismo Gerador de todos os
seres que subjaz e pervade o universo, podem irromper e modificar a seta da
evolução” (BOFF, pg. 159).
A Antropologia Cristã não alimenta ilusões a respeito do
ser humano. Por uma questão de origem, cada ser humano carrega dentro de si as
sementes do bem e do mal. Por isso, a verdadeira compreensão do ser humano não
está entre os do “bem” e os do “mal”, como ficou vulgarmente divulgado nos
últimos tempos, como se esse maniqueísmo existisse de fato entre seres humano.
Na verdade, a guerra entre o bem e o mal – a pessoa humana velha e a pessoa
humana nova – se trava dentro de cada um de nós, mas também se transforma em
coletividade, em leis, em modelos políticos e econômicos, em tipos de
civilização. Portanto, é preciso escolher também o que cada um quer ser e onde
quer estar.
É dessa forma que podemos compreender o que se passa na
América Latina. A tentativa de eliminar os povos originários, de extinguir seus
territórios, suas culturas, assim como em relação aos negros insubmissos, às
populações LGBTs, etc, soa apenas como um grito de agonia do supremacismo
branco, europeu, norte-americanizado, colonizado e colonialista. Pessoas
facilmente identificáveis, que agora ocupam o poder, não representam o futuro,
mas o passado. Podem ser o suspiro final de um modo de civilização que vem do
passado, mas não tem futuro, mesmo que o caos se aprofunde, porque o caos é
criativo. O levante dos povos originários pode ser um sinal do futuro. A
irmanação universal, de todas as formas de culturas e de vidas, será o
contraponto ao processo destrutivo que se impõe nesse momento da história.
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Reflexões de um Velho Teólogo e Pensador.
Petrópolis, RJ : Vozes, 2018.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Editora
Meredional/Sulina, 2005.
VATICANO. #SinodoAmazonico – Documento finale del Sinodo
dei Vescovi al Santo Padre Francesco. In
Acesso em 20/11/19
https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-emergencia-do-fenomeno-indigena-na-america-latina/
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