Estimativas sobre o impacto de uma possível mudança de
entendimento do STF sobre a prisão em segunda instância noticiadas desde esta
segunda-feira (14/10) têm apresentado inconsistências significativas. Numéricas
e conceituais.
As numéricas derivam da completa ausência de dados
disponíveis sobre o número de presos que seriam beneficiados por uma possível
mudança de entendimento do STF, que julga a partir desta quinta-feira (17/10)
as ações declaratórias de constitucionalidade sobre a execução provisória da
pena.
Já as conceituais partem da confusão de termos jurídicos
ou, no limite, de interesses corporativistas. Fato é que se corre o risco de
dar a impressão para a população que uma multidão de presos que cometeram
crimes violentos e hediondos estará nas ruas dependendo do entendimento dos
ministros do Supremo.
A confusão em torno do termo "prisão provisória"
é, talvez, o aspecto mais problemático dessas estimativas. Na legislação penal,
a "prisão provisória" designa modalidades cautelares que são impostas
sem que exista decisão condenatória de primeira ou segunda instância.
Conforme dados do CNJ, 40% da população carcerária do
sistema prisional brasileiro é composta por presos provisórios. Isso significa
que nenhum deles tem sequer uma condenação penal — no mérito —, seja na
primeira ou na segunda instância.
Essas prisões — justificadas ou não — têm fundamentos como
"a garantia da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da
instrução criminal ou a asseguração da aplicação da lei penal” (art. 312 do
Código de Processo Penal).
Ordem pública será
preservada
Para o criminalista Fernando Castelo Branco, existe uma
confusão entre a prisão preventiva e a execução provisória da pena. "Se
houver alguma justificativa em que a liberdade do preso coloque em risco a
ordem pública, pode ser decretada a prisão preventiva, que não se confunde com
a execução provisória. O Estado tem meios para manter preso quem representa
perigo a ordem pública", pontua.
É o mesmo entendimento do advogado e professor Welington
Arruda. "Me parece que o alcance dessa decisão será infinitamente menor
que o que se ventila. Isso porque, na maioria dos casos, as pessoas estão
presas cautelarmente nos termos do artigo 312, do Código de Processo Penal, que
permite ao Juízo a determinação da prisão cautelar sempre que houver
necessidade de garantir a ordem pública, a ordem econômica ou, em alguns casos,
por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei
penal", explica.
Segundo ele, uma possível mudança de entendimento do
Supremo afetará apenas as prisões que foram determinadas em prisão de segunda
instância. "Isso diminui significativamente o alcance da decisão."
Mas a pressão corporativa contra a possibilidade de
mudança não é das menores. "Dados levantados pelo CNJ apontam que um total
de 169 mil [número em destaque na mensagem publicado no Twitter] estavam
encarcerados por conta da execução provisória de suas ações criminais até o
final de 2018. A depender da decisão do STF, eles podem ir para as ruas nesta
sexta", publicou o procurador da República Roberto Pozzobon, um dos
integrantes do consórcio formado a partir da 13ª Vara Criminal de Curitiba.
Histórico
A atual Constituição foi promulgada em 1988 e até 2009 o
STF não tinha sido convocado para analisar o artigo 5º em que diz: “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”.
Até então as penas eram executadas conforme o entendimento
dos juízes. A mudança aconteceu quando os ministros, ao discutirem um pedido de
Habeas Corpus de um fazendeiro, decidiram que a execução da pena só deveria
ocorrer após o julgamento do último recurso possível. Na ocasião, esse
entendimento venceu por sete votos a quatro.
Votaram contra a prisão os ministros Marco Aurélio Mello,
Celso de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Gilmar
Mendes e o ministro relator, Eros Grau. Os votos contrários foram de Cármen
Lúcia, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Menezes Direito.
Tal entendimento vigorou até 2016, quando, ao discutir o
HC 126.292, o colegiado negou provimento ao recurso da defesa e determinou o
início da execução da pena.
O atual entendimento venceu por sete votos a quatro e
determinou que era possível executar a pena depois de condenação em segunda
instância. A tese desse julgamento, agora, é questionada nos ADCs 43, 44 e 54.
Um dos redatores do ADC 44 do Conselho Federal da OAB é o
jurista Lenio Streck. “Em 2016, logo que estourou o HC 126.292, pelo qual
ocorreu a guinada da jurisprudência do STF, fui o primeiro a escrever, na
próprio ConJur, que cabia um ADC do artigo 283 do Código de Processo Penal”,
disse.
Números
Dados do Departamento Penitenciário Nacional e do Conselho
Nacional de Justiça, por exemplo, apresentam números distintos. Reportagem do
G1 informou que segundo levantamento do Depen, o Brasil tinha 726.700 presos em
junho de 2016, ou seja, antes da decisão do Supremo de novembro daquele ano que
autorizou a prisão em segunda instância.
O mesmo texto também apresenta dados do CNJ, que apontam
que a população carcerária no país seria de 812 mil presos.
Os dados contrastam com aqueles apresentados pelo World
Prision Brief, uma das entidades mais respeitadas de estatística dos sistemas
carcerário no mundo, que apontam a existência de 746.532 presos no Brasil em
2019.
Mesmo tomando como base os dados do CNJ de que hoje temos
812 mil presos no país, é difícil chegar a uma estimativa tão elevada de
beneficiados por uma possível mudança de jurisprudência do Supremo.
O cálculo é simples. Mesmo levando em conta que todo o
acréscimo de encarcerados entre 2016 e 2019 é fruto direto da decisão de três
anos atrás, ainda assim teríamos um total de, no máximo, 85.300 presos que
seriam beneficiados.
Algumas estimativas como, a da reportagem do Poder 360
desta segunda (14/10), apresentam imprecisões conceituais que prejudicam a real
dimensão do impacto da mudança de jurisprudência.
O site afirma, por exemplo, que, “no Brasil, 23,9% do
total de presos estão detidos provisoriamente". "Com isso, 169,7 mil
pessoas podem ser beneficiadas caso o plenário do STF decida que réus só devem
começar a cumprir pena após o esgotamento de todas as vias recursais." Não
é o caso.
ADCs 43, 44 e 54
Rafa Santos é repórter da
revista Consultor Jurídico.
Emerson Voltare é editor da
revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-out-15/queda-execucao-provisoria-nao-beneficia-quem-poe-ordem-risco
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