As expectativas sobre a retomada ou não da vigência do
inc. LVII do art. 5º da CF, objeto de deliberação do Plenário do Supremo
Tribunal Federal, têm ricocheteado no problema sobre a eficácia do direito
fundamental à presunção de não culpabilidade e alcançam também questões de
ordem estatística. Afinal, caso o Supremo Tribunal Federal declare novamente
como eficaz a presunção de não culpabilidade, proscrevendo novamente a execução
provisória da pena a partir do julgamento da causa pelas instâncias ordinárias,
quantas pessoas serão soltas?
O Estado de Minas fez um levantamento (em abril de 2018),
a partir do Painel do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, do Conselho
Nacional de Justiça, alegando que esse número seria de 22 mil presos.[1] O site
O Antagonista[2], em postagem recente, fala em 169 mil, a partir do mesmo banco
de dados do CNJ que teria sido acessado pela publicação mineira. O número
postado pelo Antagonista não destoa do retratado pela Veja (os mesmos 169 mil),
em reportagem publicada em dezembro de 2018.[3]
Temos dois levantamentos considerados “precisos” sobre
população carcerária: o primeiro é o banco de dados do Infopen, ligado ao
Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, que teve o seu
último relatório divulgado em junho de 2017.
O segundo é decorrente de atividade do Conselho Nacional
de Justiça, a partir do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, sistema que
é alimentado pelos órgãos do poder judiciário em todo o Brasil como instrumento
de organização e gestão dos mandados de prisão expedidos por qualquer razão
(prisão preventiva, temporária, execução provisória, execução definitiva etc).
Cada forma de “contagem” tem seus percalços. Enquanto o
Infopen recebe informações diretamente vinculadas ao que é repassado pelas
próprias unidades prisionais (que, em tese, estão contando os presos de forma
presencial), o BNMP é um sistema que não tem acesso direto ao preso, mas ao
mandado de prisão (cumprido ou não cumprido) alusivo a quem ingressa ou sai do
sistema.
O primeiro teria, em tese, a garantia de uma imagem real
do cenário; o segundo tem a suposta vantagem da integração informatizada entre
documento e estatística.
O primeiro depende da eficácia da contagem em
estabelecimentos precários e muitas vezes arruinados e o segundo depende da
eficácia do treinamento dado aos funcionários do Poder Judiciário em todo o
país, além de fatores como a exata correspondência entre a existência de um
mandado cumprido e um ser humano preso pelas exatas razões descritas no
mandado.
O primeiro sistema tem uma história e a sua idade trouxe
experiência e problemas. O segundo ainda é muito recente e sua implantação
ainda vai enfrentar desafios previstos e imprevistos.
Ocorre que, num e noutro, o preso que ingressa no sistema
prisional porque foi atingido pela execução provisória causada pelo esgotamento
da instância ordinária não é objeto de contagem específica.
A divisão feita nos relatórios do Ministério da Justiça fala
em presos provisórios sem condenação e presos sentenciados, sem indicação se a
execução da pena é a definitiva ou provisória.
No CNJ, a novidade é a indicação de presos em “execução
provisória” da pena, que em 6 de agosto de 2018 (data do encerramento do
levantamento, que não contava com números do Rio Grande do Sul) seriam 148 mil.
Ocorre que, mesmo falando em presos condenados em
“Execução Provisória”, o universo de pessoas que podem ser atingidas pela
eventual alteração do posicionamento do STF precisaria ser definido de forma
particularmente precisa. Para que o número correto ou estimado de pessoas
sujeitas atingidas com o fim da execução da pena em segunda instância seja
definido seria necessário que:
(a) fossem retratados presos fora das hipóteses de prisão
preventiva;
(b) contabilizados apenas os presos que não estão
cumprindo pena que tenha transitado em julgado e
(c) não consideradas as execuções provisórias de presos
que tiveram sua situação convertida para fins de facilitar o acesso aos direitos
de progressão, remição etc.
Enfim: a conta teria que ser feita sobre as prisões
exclusivamente executadas porque o acusado estava solto até o recurso de
apelação e passou a ficar preso porque, mantida a condenação, recorreu ao STJ
e/ou ao STF. Não há nenhum levantamento, entretanto, com esse nível de
filtragem.
Fora isso, a contagem de presos cumprindo pena em
“execução provisória” dá margem a erros.
Muito antes do STF suspender o direito de recorrer em
liberdade até o trânsito em julgado dos recursos aos tribunais superiores,
milhares de presos optavam por requerer a expedição de guia de execução
provisória para que fossem desde logo garantidos os direitos relativos, por
exemplo, à remição de pena pelo trabalho (pois é comum o estabelecimento para presos
provisórios não ter condições de assegurar atividades laborais) ou à mudança de
regime prisional (situação que ocorre comumente em presos provisórios que
passam presos preventivamente tanto tempo que, quando são sentenciados, tem
direito à mudança de regime).
Essas peculiaridades compõem um fator de elevada
complexidade para a aferição correta do impacto do posicionamento do STF tomado
a partir de 2016 e, provavelmente, a fonte do grande alarme produzido sobre o
número de presos “que seriam soltos” a partir da eventual mudança de
posicionamento do STF se deve ao fato de que as execuções provisórias de pena
decorrerem, em sua esmagadora maioria, da conversão, em favor do réu, de
prisões preventivas que não eram revogadas quando o processo chegasse na fase
de sentença.
Por fim, caso o número apocalíptico de 169 mil pessoas
fosse objeto de soltura em caso de mudança na jurisprudência do Supremo, seria
de se imaginar que, só em virtude do cenário decisório de 2016, o mesmo número
de presos teria ingressado no sistema prisional brasileiro entre fins de 2016 e
fins de 2019, algo como um aumento de 56 mil prisões em três anos.
Um implemento dessa monta, só nesse tipo de prisão,
representaria um fator de colapso do sistema a um ponto ainda mais insuportável
do que o atual. Afinal, segundo estatísticas do próprio Infopen, nem mesmo a
explosão de 2014 para 2015 (622 mil presos para 698 mil) chegaria aos pés de um
incremento de presos levando em conta todo o tipo de prisão, somada a essa em
decorrência do esgotamento dos recursos ordinários.
O estardalhaço que se formou, portanto, sobre o cenário de
“prisões abertas” de forma generalizada não se firma em nenhum dado disponível
e, assim como outras especulações baseadas no repúdio às liberdades públicas,
representa a tentativa de usar a irracionalidade para prestigiar uma política
de encarceramento contrária ao projeto democrático plasmado na Constituição de
1988.
[1]
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/04/16/interna_politica,951891/fim-da-prisao-apos-segunda-instancia-pode-tirar-22-mil-da-cadeia.shtml
[2]
https://www.oantagonista.com/brasil/fim-da-prisao-em-segunda-instancia-vai-libertar-ao-menos-169-mil-presos/
[3]
https://veja.abril.com.br/politica/decisao-de-marco-aurelio-atinge-quase-1-4-dos-presos-no-brasil/
Fabrício de Oliveira Campos
é sócio do Oliveira Campos & Giori Advogados.
Revista Consultor Jurídico
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