Há
uma grita nacional em torno do projeto aprovado sobre abuso de poder.
Não
vou discutir item por item o projeto e nem vou entrar no Fla-Flu “contra” ou “a
favor”. E por quê? Simples. Porque farei uma análise diferente.
Quero,
de forma “poliana”, fazer desse limão uma limonada epistêmica. Poderia
demonstrar, facilmente, que limitar o poder não tem nada a ver com “acabar com
a lava jato”, mantra que está ficando chato, tipo sofrência neosertaneja.
Penso
que devemos ir mais fundo. E minha inspiração vem de uma antiga coluna de Élio
Gaspari — que não é jurista e não me consta ter escrito algum livro sobre
hermenêutica. Ele foi na jugular do problema:
Antes de concordar com o fim do mundo, fica
uma pergunta: quem poderá condenar o policial, procurador ou o juiz? Um
magistrado, só um magistrado. Se os procuradores da 'lava jato', o juiz Moro...
[acrescento: e todos os que criticam o projeto não confiam na justiça], por que
alguém haverá de fazê-lo?
Perfeito.
O que Gaspari quer dizer? Simples. Que, pela vez primeira, os juízes e membros
do MP estão com medo de uma lei, no caso, a do abuso de autoridade, lei que
eles mesmos aplicarão.[1]
Gaspari
repergunta: por qual razão os juízes deveriam temer a nova lei, se esta será
aplicada pelos juízes e fiscalizada pelo MP?
O
judiciário e o MP não são confiáveis? Responde Gaspari: Os juízes não confiam
neles mesmos.
Vejamos:
Examinando o estado da arte da justiça brasileira, constatamos que,
cotidianamente, as leis são descumpridas e aplicadas segundo a opinião pessoal
de cada juiz (aqui está o ponto de estofo entre mim e Gaspari, embora ele não
tenha desenvolvido isso — mas deixou “implicitamente explicitado”).
Vamos,
então, finalmente, tratar esse assunto a sério? Se sim, então vamos tirar
alguns esqueletos do armário. Agora estamos diante de uma lei que — mesmo que
votada na Câmara por voto de liderança — assusta de Dallagnol à Polícia
Federal, passando pelas Associações de Classe da magistratura e Ministério
Público.
Assusta
por quê? Simples: Porque, ao contrário de outros países avançados, aqui cada
juiz interpreta a lei ao seu modo. E nisso é que mora o perigo. Isto é, os
juízes sabem do que são capazes interpretando as leis. Os membros do ministério
público também sabem. E isso lhes causa medo.
Por
isso, registro o texto inspirador do Élio Gaspari, que confirma o que venho
falando todas as semanas de forma chata nesta ConJur. Defendo a lei e a
Constituição. Há décadas luto contra abusos da lei. Luto pela jurisdição
constitucional.
Como
espelho retrovisor, basta ler o que escrevo há 20 anos. Sou talvez o
constitucionalista mais “conservador”. Um jurássico. Logo, estou resguardando o
produto que deve ser usado todos os dias pelos juízes e membros do MP: a lei e
a CF.
Tento
fazer uma limonada disso tudo. O lado bom é que foi aberta a caixa de pandora
do decisionismo brasileiro.
Ou
seja, estamos assumindo que o primeiro abuso vem do modo como interpretamos as
leis. Exatamente isso. Denuncio isso há décadas.
Do
modo como fomos deixando isso acontecer — e a doutrina é coautora disso tudo,
admitindo todo o tipo de invencionices hermenêuticas — parece evidente que isso
é apenas a ponta do iceberg.
Cartas
na mesa, portanto!
Deixemos
o parlamento fazer leis. E julguemo-las inconstitucionais, se for o caso.
Façamos interpretações conforme. São seis as hipóteses pelas quais o juiz pode
resistir a aplicação da lei. E isso é bastante coisa.
Leis
e Constituição? O que há é um conjunto de decisões que substituíram a lei e a
CF. Por isso, o nosso preclaro Gaspari foi na pleura: os juízes têm medo do
modo como os juízes interpretam e aplicam as leis. Simples assim.
Qual
é o busílis, então? O busílis está dentro da caixa de pandora, que, aberta,
mostra que, pelos protestos que estamos vendo e pedidos de “veta, Bolsonaro”,
parece claro que juízes e promotores não confiam neles mesmos porque, com tanta
“liberdade” para denunciar e julgar, eles mesmos podem ser as próximas vítimas.
Ou, não é assim?
Por
isso a minha proposta: vamos cumprir as leis direitinho, colocar as algemas só
quando pode, decretar prisão somente conforme o CPP e a CF, fazer tudo conforme
o “livrinho” (como diz meu personagem favorito, do filme The Bridge Of Spies, o
Dr. Sandoval – que me inspirou para criar o Fator Stoic Mujic) e todos
estaremos seguros.
Numa
palavra final, de minha parte, quero dizer que no contexto do projeto e da lei
sobre abuso de autoridade (e do projeto anticrime), sigo uma tese esgrimida
pelo juiz Mauricio Ramires e pelo promotor Francisco Motta: temos que tomar
cuidado para que não saltemos da panela da moral para o fogo da política.
Por
isso, de novo, isso só tem saída pelo direito. Por uma boa lei. Na qual as
questões morais e políticas sejam discutidas antes. E que não possa — a lei —
ser corrigida, na hora da aplicação, justamente pela moral e pela política. Eis
o início de um bom debate.
[1]
Despiciendo ressalvar que nem todos os magistrados e membros do MP são
contrários à lei; assim como é desnecessário lembrar que parcela considerável
de Ministros de Tribunais Superiores são a favor da lei – o presente texto é
reflexivo).
Lenio
Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em
Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associado
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