A história do Hino Nacional Francês e de seu autor (música
e letra) constitui um instante especial no teatro da vida. É toda uma aventura
feita de glória e de esquecimento, de luta e de poder, de despotismo e de
ideais, de sofrimento e conquistas. Nós a contaremos em três atos.
Primeiro ato: Ano de
1792.
A França revolucionária era ameaçada pela coalizão do
absolutismo monárquico da Europa Central, e os exércitos austro- húngaros
estavam a alguns quilômetros das fronteiras alsacianas. Enquanto isso, a Assembleia
Nacional hesitava entre a guerra e a paz. Os Girondinos, em minoria, eram a
favor da guerra por crerem que ela lhes devolveria o poder político, e a
esquerda, os Jacobinos, pela paz. Ao final dessa luta política, o vacilante rei
Luiz XVI assinaria a declaração de guerra.
A última grande cidade francesa a fazer fronteira com o
rio Reno é Strasbourg. No dia 25 de abril de 1792, o prefeito Dietriech, um
aristocrata progressista que esposara a causa da liberdade, recebia das mãos do
emissário da Assembleia a declaração de guerra que, em breve, atravessaria o
Reno e seria entregue às tropas inimigas acantonadas. A seu chamado, todo povo
acorreu á praça principal e a guarnição, ansiosa pela guerra, desfilou seus
regimentos.
As bandas tocavam o primeiro canto de guerra da Revolução,
o “Ça Ira”, que em breve as massas revoltadas poriam de lado. Nas ruas, nos
cafés, nos jornais, ouviam-se e liam-se proclamações de luta como: “Aux armes
cytoyens!”, “L’étandart de la guerre est deployé”, “Marchons, enfants de la
liberté!”
Ao final da tarde, Dietriech reuniu os oficiais para a
despedida do Exército do Reno que deveria partir contra as tropas
austro-húngaras agrupadas do outro lado do rio. Entre os discursos e brindes,
ele voltou-se para o capitão Rouget de Lisle, que escrevera há algum tempo uma
bela “Ode á Liberdade” quando da promulgação da constituição francesa, e
pediu-lhe que compusesse uma nova marcha para as tropas que se dirigiam à
batalha. Perante o entusiasmo geral, Rouget aceitou.
A madrugada do dia 26 de abril foi febril em Strasbourg.
Febril para o povo e para os combatentes que se preparavam para a luta, mas
particularmente para Rouget, que em estado de grande empolgação, sem repousar,
sentia ecoar em si as vozes animadas do povo a clamar pela liberdade, a dos
camponeses que tremiam ao pensar que suas terras poderiam ser invadidas pelo
inimigo, das mães que temiam por seus filhos. Escreveu, então, as duas
primeiras linhas que não passavam de ecos do que seus ouvidos captara:
“Allons, enfants de la patrie,
Le jour de gloire est arrivé!”
Gostou do princípio! Pegou o violino e musicou-a.
Encontrou inspirado um ritmo próprio para a marcha. Escreveu mais versos que, à
medida que brotavam, aumentavam a excitação de seu sentir. No dizer de Zweig,
“cada vez melhor se adaptava a melodia ao compasso martelante, jubiloso, o
palpitar do coração de um povo que desperta, pois nessa noite única, fora
concedido ao Capitão Rouget ingressar na confraria da imortalidade.”
Antes do amanhecer, ao encerrar a quinta estrofe,
completara o canto que duraria para sempre. Rouget não pegou no sono, os sinos
da Catedral chamavam, ao raiar o dia, à concentração cívica. Ao encontrar na
multidão o Capitão, o Prefeito lhe cobrou a composição da marcha e tomando-o
pelo braço, levou-o à casa para aquele que seria um primeiro ensaio. O próprio
Dietrich, com sua voz de tenor puxou pelo solo.
Logo mais à noite, a “Marcha de Guerra do Exército do
Reno”, dedicada ao general- comandante francês Luckner, teve um público maior
que a aprovou delirante. A esposa do prefeito que havia tirado cópias das
partituras emocionou-se ao escrever a seu irmão dizendo que se tratava de um
“Gluck melhorado”!
A verdade é que a futura “Marselhesa” não possuía um
espírito que a identificasse com uma música de câmera. Na verdade, sua
identidade, seus genes eram impregnados daqueles que carregam companheiros em
luta. Sua musicalidade era destinada a ser entoada por milhares de gargantas,
num grito de vida ou de morte, pois seu DNA tinha cromossomas com características
próprias das massas, das multidões! Sua verdadeira orquestração deveria ser
dada pelo retinir das armas, pela fanfarra dos clarins anunciando a batalha,
pelo ressoar da marcha dos regimentos libertários!
Naquele momento, entretanto, nem mesmo o seu autor, Rouget
de Lisle, suspeitou disso! Escreveu cópias, imprimiu-as e as enviou a diversos
corpos do Exército Francês. Meses se passaram e a enorme maioria das partituras
ou se perdeu ou foi esquecida em algumas
gavetas.
Segundo Ato:
Muito longe da Alsácia, num porto da costa mediterrânea, o
“Clube dos Amigos da Constituição” oferecia, no dia 25 de junho, um banquete
aos mais de quinhentos cidadãos voluntários, que marchariam para Paris em
defesa da liberdade e da Pátria. Um desses jovens era Mireur, um estudante de
medicina. De repente ele subiu à mesa onde os copos e garrafas balançaram e com
o punho direito erguido e entoou uma canção que jamais ninguém ouvira. Seu
primeiro verso era: “Allons, enfants de la Patrie”.
Como um raio que vindo dos deuses eletrizasse a todos ao
mesmo tempo. Os sentimentos de uns exaltam os dos outros, os voluntários que
partiam para vencer ou morrer encontraram naquela marcha os motivos que seus
corações entrelaçados queriam expressar. Mireur teve que cantar uma segunda e,
já sem voz, uma terceira vez. Ao final, todos cantavam com o punho erguido:
“Aux armes citoyens! Formez vos bataillons!”
No dia seguinte a marcha era entoada por mil, depois dez
mil, após por dezenas de milhares de bocas. Em todo o trajeto que os
marselheses percorreram a canção ganhava o coro dos camponeses e, quando em 30
de junho, o batalhão chegou a Paris a “Marcha do Reno” ganhou o seu nome
definitivo: “A Marselhesa”, a música trazida pelos bravos de Marseille.
Em menos de dois meses seu curso como o hino da França
libertária tornou-se irresistível: cantavam-na nas ruas, nos teatros, nos
clubes e até nas igrejas. O governo deu ordem para que fossem impressos cem mil
exemplares e distribuídos em todos os quartéis do Exército, e ao avanço das
tropas francesas tremiam os inimigos pelos sons de vozes até mesmo mais altas e
agressivas que o rugido dos canhões. Um hino que lançava os franceses ao
combate apavorava os monarquistas e varria da França os invasores.
No entanto, em nenhuma das cópias das letras era citado o
nome de seu inventor e único compositor: o capitão Rouget.
Vivia ele isolado numa guarnição fronteiriça, um
desconhecido de todo o povo que idolatrava sua canção de luta e de libertação.
Acontece que a fama da música tornada revolucionária não se estendia ao seu
próprio criador, porque ele não era um revolucionário, tão somente um patriota
e humanista, que odiava todo tipo de despotismo. E fora seu espírito que mais
qualquer outro incentivara as massas à revolução!
Quando a Convenção em 1793, com seus novos déspotas,
mandou à guilhotina seu amigo o prefeito Dietrich, padrinho da Marselhesa e o
general Luckner ao qual ela fora pela primeira vez dedicada, Rouget expressou
seu desgosto publicamente à Comissão de Salvação Pública. Isto bastou para que
fosse detido como contrarrevolucionário e acusado de traição.
Somente lhe salvou o pescoço os acontecimentos do Nove de
Termidor, em 1794, com a queda em desgraça tanto de Robespierre quanto de
Saint-Just.
Terceiro ato:
Libertado, Rouget viu-se privado da patente do exército,
do uniforme e da pensão. Nem mesmo suas composições musicais eram ao menos
aceitas para serem analisadas. É bem verdade que Carnot e Napoleão lhe acenaram
com alguma ajuda. Mas Rouget, aquele homem tão sofrido e de forte opinião, nada
aceitaria das autoridades que um dia o haviam espezinhado. Rouget escrevia
atacando os representantes do poder, principalmente Bonaparte. Detestava os
déspotas, quer fossem os jacobinos, os girondinos ou os gestores de um novo Império!
Sem amigos, vigiado pela polícia, perseguido pelos
credores, até mesmo cumpriu prisão por não pagamento de promissórias.
Recolheu-se por fim a um canto de província e de lá
primeiro ouviu “A Marselhesa” ressoar à frente dos exércitos vitoriosos na
Europa; depois soube que Napoleão, em 1805, coroado Imperador, havia banido a
marcha “por ser demais revolucionária”. E que com a sua queda, em 1815, os
Bourbons da Restauração a haviam absolutamente proibido, sob a pena de
trabalhos forçados para quem a entoasse.
Já ancião, surpreendeu-se quando na Revolução de 1830, sua
música e letra ressurgiram nas barricadas de Paris e o monarca
burguês-constitucionalista, Luiz Felipe, lhe concedeu pequena pensão vitalícia.
Provavelmente nunca soube que, em Paris, Berlioz orquestrava, com toda a sua
genialidade, “A Marselhesa” a mil vozes.
Ao falecer em 1836, com 76 anos de idade, ninguém mais se
lembrava de seu nome. O final da vida também lhe poupou o fato de saber que o
hino “A Marselhesa” voltaria a ser proibido por Napoleão III, em 1852, tendo
somente retornado como hino libertário com as barricadas da Comuna de Paris, em
1871.
Cena Final
Muitos anos transcorreriam até a Primeira Grande Guerra,
quando “A Marselhesa”, de longa data transformada em Hino Nacional, foi
vitoriosamente cantada em todas as frentes de batalha.
Ao mesmo tempo, o governo francês decretou que os restos
mortais do capitão Rouget de Lisle fossem exumados e transferidos para “Los
Invalides”. Por ironia da história ou arte dos homens, seus restos mortais
descansam lado a lado daqueles que um dia pertenceram a Napoleão Bonaparte, a
quem tanto desprezara em vida.
Em 1938, a história que contamos foi transportada para as
telas do cinema pelo gênio do segundo filho do grande pintor Pierre Auguste
Renoir, o também genial Jean Renoir.

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