Tenho refletido com mais frequência sobre meu trabalho
neste ano de 2019. Sou um juiz da execução penal, mas não apenas isso, sou um
juiz da execução penal na era do ódio.
São tempos marcados pela fragilização da democracia diante
da intolerância, uma intolerância que alimenta cargos de poder usados para a
eliminação do outro. As vítimas dessa era se multiplicam por todos os lugares,
nos navios negreiros, nas aldeias indígenas, nos canaviais. E nos porões do
cárcere.
Diante da falência do sistema prisional brasileiro e das
injustiças que ele produz intensamente, ser um juiz que executa penas é
exaustivo, quase frustrante. Agir de maneira a tentar reduzir os danos do
encarceramento tornou-se utópico, meu trabalho se tornou utópico. Ainda que
seja notória minha preocupação em fazer respeitar as garantias fundamentais
insculpidas na Constituição, mesmo com uma atuação que leva muitos a me
adjetivarem simpaticamente como o “juiz que solta”, sinto que o futuro poderá
não me reservar uma boa nota sobre a participação que tive na trajetória de
nossa espécie.
Sou humano, extremamente humano. Sei de minhas limitações
e não nutro a arrogância de assumir uma responsabilidade que pertence ao todo,
à coletividade, às nações. Como teria dito Rui Barbosa, “salvação sim,
salvadores não”. Entretanto, a inexorável realidade que me cerca já me disse
mais de uma vez que os registros futuros a meu respeito, se existirem, tão
somente mostrarão minha participação como juiz da era do holocausto prisional,
um juiz que foi incapaz de contribuir para a superação da violência.
Ainda assim, sigo adiante. Não saberia ser ou fazer
diferente. Continuo acreditando no meu trabalho, porque mesmo perante desafios
que parecem invencíveis, as vezes, por breves momentos, percebo sinais a
indicar que talvez a história me poupe e quiçá me perdoe. Recentemente
aconteceram duas situações que eu quero aqui compartilhar, pois assim eu me
fortaleço e afasto o desalento que ronda minha morada.
Modifiquei alguns fatos e detalhes, a fim de preservar
identidades.
Num dia comum de expediente, ao chegar pela manhã no
gabinete deparei-me com um bilhete clipado em meia dúzia de cartas manuscritas,
tudo sobre minha mesa. Dizia a mensagem: “O vigilante encontrou essas cartas na
cela e achou importante trazer para o senhor. Grata! …, da limpeza. ” As
missivas continham pedidos de detentos dirigidos a mim, que provavelmente
haviam sido perdidos ou esquecidos na carceragem do Fórum de Justiça durante as
audiências criminais do dia anterior. Repassei o material para a assessoria, de
modo que assim que anexados aos processos respectivos eu despacharia. Durante o
almoço fiquei a pensar sobre a cena do bilhete com as cartas na minha mesa.
Essa cena por si só era um tratado sociológico.
Pessoas que compreendem o nível de dificuldades e até
mesmo de opressão a que várias outras estão submetidas sabem reconhecer os
pontos de apoio nessa vida. A forma e por quem os pedidos haviam sido levados
até mim foi peculiar. As cartas tinham que chegar nas mãos do juiz, simples
assim. Uma rede de solidariedade foi então criada. Os envolvidos tinham
consciência da importância do material e aquilo que a partir do meu
conhecimento poderia resultar, assim como resultou. Progressões de regime se
efetivaram em alguns casos, questões de saúde foram monitoradas em outros e
informações processuais foram encaminhadas em todos. Além disso ficou muito
patente que os detentos subscritores ainda acreditavam que o juiz poderia fazer
algo por eles, poderia lhes aproximar mais da lei de execução penal e lhes
conferir mínima dignidade no cumprimento de suas penas.
Depois, nesse mesmo dia das cartas, durante a tarde fui
até o complexo prisional para as inspeções permanentes e para o enfrentamento
do caos a esta altura iniquamente naturalizado nas prisões do país. Ao passar
pelos corredores das galerias e entregar aos detentos formulários e canetas
para que pudessem preencher com seus pedidos e me devolver em seguida,
detive-me mais numa cela, a mais precária e superlotada do pavilhão. Num espaço
para apenas 8 viviam 23 pessoas. Não havia sequer colchão para todos, pois não
havia lugar para os colocar. Então os detentos ou se revezavam para dormir ou
se dividiam nos colchões em valetes (um com a cabeça virada para os pés do
outro). Na conversa pela portinhola resolveram todos eles me dizer que eu
deveria passar 24h naquela cela, como um deles. Os detentos afiançaram que eu
estaria seguro e que não devia me preocupar com nada. Eles queriam que eu
vivesse o que eles viviam! Esclareci sobre a impossibilidade disso acontecer.
Essa não era uma função típica de minha função. Mas lhes falei que entendia o
sentido do convite, admitindo que o juiz, ao não saber das dificuldades e não
ter noção plena da tragédia que permeia o cotidiano do cárcere – aqui incluído
o trabalho dos agentes penitenciários, invisíveis que são à sociedade e não
reconhecidos pelo governo em sua função – pode parecer um extraterrestre livre
a julgar terrestres presos. E lhes confessei que realmente nada sabia sobre o
que era estar trancafiado 24 horas por dia, num ambiente superlotado, com 23
pessoas onde cabiam no máximo 8. Mas ao menos eu tentava saber, era o mínimo
que me cabeia, motivo pelo qual lá estava, no chão da prisão. Os detentos
compreenderam e para minha admiração, nada obstante cientes de que
permaneceriam vivendo naquelas graves condições, ainda me agradeceram.
Nós, humanos, seremos julgados pelas próximas gerações.
Talvez eu esteja entre os que serão perdoados, talvez não. Para mim o que
importa é que apesar das frustrações, apesar da exaustão, ainda consigo sentir
a confiança depositada no meu trabalho. Com a Constituição na ponta da língua,
as cartas do cárcere nas mãos e o sentimento de que os encarcerados confiam em
mim, o juiz que executa suas penas, eu resistirei, pelo tempo que for
necessário!
João Marcos Buch é
juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro
da AJD
http://www.justificando.com/2019/07/31/sou-um-juiz-da-execucao-penal-na-era-do-odio/

Nenhum comentário:
Postar um comentário