O país que andou se vendo no espelho nesses meses é
inclassificável. O furo da bolha provocado pelo jornalismo investigativo do
site Intercept Brasil demonstrou que vivemos tempos sombrios e que, por isso,
não se deve jamais se deixar levar pela ideia de diminuição da presunção de
inocência.
Ocorre que o mês de junho “não passou”. As publicações que
estão no Intercept Brasil, referentes à força-tarefa da "lava jato",
nos anos que vão de 2015 a 2018, foram uma das coisas mais impactantes que já
ocorreram no jornalismo brasileiro. O vazamento, divulgado em várias levas de
reportagens, revelou (e ainda indica) o que de mais autoritário pode acontecer
no interior do Judiciário. É dizer: ao se buscar condenação sem julgamento
imparcial, o que se tem é arbítrio. É como jogar no lixo a ideia de Estado
Democrático de Direito.
No meio de tudo isso, perto das férias de inverno, alunos
e alunas geraram avalanches de reflexões em sala de aula sobre o modelo
processual penal brasileiro. E, no encerramento do semestre letivo, temas como
“inquisitoriedade” e “instrumentalização do processo” tomaram mais espaço que
outras questões.
Vejamos...
Em Sobre o Autoritarismo, Lilia Schwarcz relata que o
discurso autoritário sempre esteve presente ao longo destes mais de 500 anos no
Brasil[1]. Convenhamos: somos frutos da arrogância dos bacharéis, da empáfia do
Judiciário e ainda apresentamos graves dificuldades para implementar o Estado
Democrático de Direito.
Peguemos a questão de que a história do Direito Processual
Penal está ligada à Inquisição. Nessas horas, Jacinto Coutinho volta ao passado
e relembra o ano de 1215 — e grifa o IV Concílio de Latrão[2]. Se seguirmos o
fio que liga o raciocínio de Jacinto, veremos que o modelo procedimental de
Justiça criminal foi moldado na inclemência dos inquisidores, nos poderes
concentrados, no horror ao contraditório[3]. E aí se tem a matriz retratada em
filmes como Sombras de Goya.
Pois bem! No decurso histórico, com a substituição da
igreja pelo aparelho de Estado, deu-se uma viragem, mas a herança inquisitorial
permaneceu intrínseca aos gabinetes mais sórdidos do poder. É aí que entra a
“mentalidade (inquisitória) de outrora”, como diz, por todos, Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho (leia aqui).
Explico:
As condutas têm nomes, não vieram do nada. O imperador
francês Napoleão Bonaparte, com o seu Code d’ Instruncion Criminelle (1808),
engendrou um sistema bifásico. Isto é: uma fase investigativa; outra
jurisdicional. E a isso se chamou de processo penal misto. É claro que não é
uma questão de somenos. E Jacinto Coutinho tratou logo de esclarecer o porém. A
questão — diz Jacinto — é que a estrutura continuou inquisitória[4]. Eis o
ponto crucial: mesmo havendo a fase jurisdicional, a “mentalidade inquisitória”
sobrevém. Essa é uma boa chave a ligar (e refletir) o modelo processual penal
brasileiro, também de duas fases, com o inquérito policial e a fase
jurisdicional, que tem parte de sua força na imparcialidade do juiz. E não
adianta fazer de conta que a fase jurisdicional estará imune a problemas. A
análise de Aury Lopes Júnior é muito clara: se a condenação está calcada nos
atos de investigação, a estrutura acusatória fica contaminada por aquilo que
foi feito na primeira fase[5]. Esse é o xis do problema.
O que se sabe já explica o porquê. A questão, em
determinados casos, é a decisão como ato de vontade. É o juiz que toma lado e
vira o gestor da prova. Enfim, como tantas vezes já advertiu Lenio Streck em
colunas desta ConJur, é o caso do juiz que primeiro decide e depois apenas
motiva aquilo que já escolheu, fazendo parecer legalidade (leia aqui).
Aqui exatamente chegamos ao ponto. O fato de o réu estar
no sistema acusatório, sob a regência de órgão julgador, não significa que
direitos fundamentais processuais sejam assegurados. Eis onde é preciso tomar
cuidado com a expressão “o juiz é o garantidor dos direitos”, assunto que já
foi muito bem explicado por Lenio Streck e Gilberto Morbach na ConJur (leia
aqui).
O que se viu nos conluios vazados pelo site The Intercept
Brasil quanto ao procedimento da operação "lava jato" é que há
agentes de Estado que estão (re)criando formas autoritárias no século XXI, indo
ao absurdo de um “faz de conta” processual, com “jurisdição” via aplicativo
mensageiro, em grupo de chat, um neoinquisitorialismo cabalístico.
E note-se. É indispensável combater a corrupção. Isso não
está em causa. A questão é saber como esse combate deve ser feito, uma vez que
o que se viu no deslinde do processo penal foram agressões à ordem legal, algo
bestial, bruto. O problema se apresentou como um pêndulo a oscilar, indo do
juiz do caso aos então procuradores da República, indo e voltando, numa
oscilação nada harmônica, como um gradiente (sobe e desce!).
E atordoa. Instruir a acusação da força-tarefa — como fez
o ex-juiz federal Sergio Moro — sobre qual seria a nova etapa da operação
(Intercept, 9 de junho), com recomendações para melhorar o desempenho de
procuradores para inquirição em audiência (Intercept, 20 de junho), lembrando o
acusador de prazo processual vincendo e juntada de documento (Intercept/Veja, 5
de julho) é expediente terrivelmente ilegal, sabotador da defesa. É o mesmo que
dizer que a evolução do Direito é inócua. Convenham que, nesse caso, jamais se
poderá dizer “isso tudo é normal”! Alfabetizados que somos, basta a leitura do
IV do artigo 254 do Código de Processo Penal para saber que “o juiz dar-se-á
por suspeito [...] se tiver aconselhado qualquer das partes”.
E que se note: agindo fora dos autos, em chat privado,
acerca de questões públicas, o Estado-Judiciário ganha ares de tribunal de
exceção. Ora, por qual motivo o assunto não podia ser levado a público? Na
lição atualíssima de Franco Cordero, trata-se mesmo de um “quadro mental
paranoico”[6].
Ainda a esse respeito, juiz que sugere uma “nota” para
desqualificar o “showzinho da defesa” (Intercept, 14 de junho) e indica uma
“fonte séria” para gerar prova contra o réu (Intercept, 9 de junho) é
arbitrariedade em enxurrio! Note-se: a Constituição não assegura ampla
acusação, mas, sim, ampla defesa (!). Diante de tantos escoiceamentos à ordem
legal, prestem atenção a uma hipótese: e se estivéssemos falando em prisão que
rendesse pena de morte? Pronto! Muitos nem mesmo saberiam dizer como seria.
Não me alongo. A questão é: qual a concepção de Direito
para o ex-juiz do caso, hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e membros do
Ministério Público responsáveis pela operação "lava jato"? Por que se
deve seguir os ditames jurídicos em sociedades com pretensão democrática? Ao
contrário da visão de senso comum sobre o tema, direitos fundamentais
processuais decorrem de conquistas constitucionais. E, claro!, há que se fazer
valer a Constituição, sob pena de nulidade de atos decisórios.
Se instituições se perdem no Estado Democrático de
Direito, necessário se faz resgatar a ordem legal, dado que no processo de
produção das leis a voz de amplos setores da sociedade foi ouvida. É por isso
que se deve cumprir a lei, sob pena de colocar em xeque toda a ordem pública.
Vamos falar claro: depois da “vaza jato”, ou os estudantes
de Direito entendem que processo como instrumento do juiz (justiçamento) é sinônimo
de truculência, de manejo deformador da ordem legal, ou, acho, nunca mais vão
entender.
[1] SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Sobre o autoritarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[2] COUTINHO,
Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar
constitucionalmente demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 46
n. 183 julho./set. 2009, p. 103-115.
[3] Nota. Vale
resgatar a literatura secular do Directorium Inquisitorum, de 1376, traduzido
como Manual dos Inquisidores. A respeito deste ponto, cf. EYMERICH, Nicolau.
Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação
Universidade de Brasília, 1993.
[4] COUTINHO,
Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: interlocução a partir da
literatura. 2ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 62-77.
[5] LOPES JÚNIOR,
Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, vol. 1, p. 71.
[6] CORDERO, Franco.
Guida ala procedura penal. Tourino: UETT, 1986, p. 51.
Referências
CORDERO, Franco.
Guida ala procedura penal. Tourino: UETT, 1986.
COUTINHO, Jacinto
Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente
demarcado. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 46 n. 183 julho./set.
2009, p. 103-115.
COUTINHO, Jacinto
Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise. 2ª ed. Florianópolis: Tirant lo
Blanch, 2018.
EYMERICH, Nicolau.
Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação
Universidade de Brasília, 1993.
LOPES JÚNIOR, Aury.
Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, vol. 1.
SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Sobre o autoritarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
STRECK, Lenio;
MORBACH, Gilberto. Lavajatogate: juiz das garantias? Uma resposta a Merval
Pereira. Revista Consultor Jurídico – Conjur. 15 jun. 2019.
STRECK, Lenio O
Direito no Brasil por seus predadores. GGN – O jornal de todos os Brasis. São
Paulo, 12 out. 2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/justica. Acesso em
17 jun. 2019.
André Del Negri é
pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito
Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do
Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Revista Consultor
Jurídico

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