Talvez nenhum escritor tenha pressentido, ainda no auge da
modernidade, o significado de uma realidade que tanto se imporia décadas após
sua morte, quanto se cristalizaria de forma dramática no tempo de “realidade
líquida”, a contemporaneidade do século XXI.
Pois tentaremos neste ensaio destacar a partir da
literatura que herdamos de Franz Kafka, aspectos “kafkianos”, absurdos e
irracionais da realidade em que vivemos tempos do irracionalismo, da violência
e intolerância, de heróis apodrecidos como os que se arvoraram líderes da dita
Lava Jato, uma operação que se propunha combater a corrupção mais que
centenária de nosso País e cujo objetivo e resultados principais foram a
destruição das garantias legais de nossa frágil democracia e a condução ao
Poder Político da extrema direita cívico-militar obscurantista, entreguista e
fascista.
Pois um traço importante da literatura kafkiana se faz
sentir: o sentido trágico da vida! O senhor K., personagem sem nome, apenas uma
inicial que ele adota em quase todos seus escritos, simbolizava o seu sentir
só, despersonalizado num universo agressivo e irracional, apenas lógico nos
lucros e no poder que a todos se impõe. Universo do qual emerge a absoluta
ausência de fraternidade, do individualismo extremado, do consumismo absoluto,
que traz apenas conforto imediato e que logo após, se esgota e requer mais e
mais.
Um mundo em ruínas em que as utopias, a religiosidade
autêntica e as ilusões humanistas naufragaram.
Em Kafka já antevemos o ser humano coisificado,
desumanizado, da sociedade líquida do século XXI. As notícias instantâneas das
mídias sociais, a inundação de mentiras que se fazem passar por verdades
provocam o mesmo pavor imediato, o isolamento do homem de sua classe e mesmo de
seu grupo social. Era idêntico o desenraizamento social que o senhor K. sentia
nos anos 1920.
Em decorrência, as personagens kafkianas caminham para a
alienação, para a brutalidade física e psicológica, o conflito e a falta de
compromissos que dinamitam as relações entre pais e filhos; o surgimento de
personagens com missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e
transformações místicas que se aprofundam.
Acontece que o capitalismo tardio e a insegurança
intrínseca a ele acarretam uma angústia dissociativa, que se mantém graças a
permanente oscilação entre o terror e esperança, aliados a um coletivo humano
que atua como rebanho. Com isso tudo, a vida privada dos homens da economia à
cultura, por perfeitamente enquadrados e passivos, torna-se absolutamente
manipulável. E as pessoas ao agirem como turba são obrigadas a consumir o que
interessa aos oligopólios.
Para Kafka a arte não é um meio para recuperar o tempo
perdido (como o fora para Marcel Proust) ou desafiar o destino (no caso de
André Malraux), mas sim, uma descrição objetiva do absurdo. Por isso tudo, no
auge do modernismo ele expressa um humanismo que se revolta, pois antevê um
futuro espírito totalitário no horizonte da humanidade, espírito que se
plasmaria primeiramente nas barbáries do nazi-fascismo e do stalinismo,
tardiamente, no capitalismo globalizante e concentrador de riquezas e
proliferador de pobreza, assim como na destruição por que passam os valores
civilizatórios em praticamente todos os países ocidentais.
Franz Kafka nasceu em Praga em 1883 e faleceu aos 41 anos
de tuberculose. Estudou Direito na Universidade de Praga onde conheceu seu
grande amigo – posterior biógrafo e depositário de sua obra – Max Brod. Depois
da escola, conseguiu emprego em uma companhia de seguros, atividade que odiava.
Começou a escrever contos no tempo livre. E pelo resto da vida, reclamou do
pouco tempo que tinha para o que chegaria a chamar de “seu chamado”.
A relação turbulenta com o pai- opressor e com a mãe, que
não o acolhia, tiveram enorme influência sobre sua escrita. Sofreu por ser
judeu numa família judia, ele que era ateu, e que sentia que nem as crenças e
menos ainda a raça tinham pouco a ver consigo mesmo.
Kafka adolescente e adulto levou uma vida sexual ativa e
complicada. Duas vezes noivo, não conseguiu se casar. Frequentador assíduo de
prostíbulos, a mulher aparece em sua obra como objeto de satisfação imediata,
ou como um meio para obter concessões num mundo sem sentido.
A importância do ambiente de Praga, cidade medieval
gótica, uma mescla de elementos eslavos e alemães, o influencia pelo traço
barroco e sombrio que inspira. À época, a política de Praga era dominada por
Viena, o paraíso dos burocratas. Desse modo, o mundo dos funcionários
burocratas do Império Austro-Húngaro se assemelhará ao dos próprios pais, feito
de degradação, estupidez e imundície.
Franz cedo frequentou os círculos literários e políticos
da pequena comunidade judaica alemã, na qual circulavam ideias e atitudes
críticas e inconformistas, com as quais Kafka se identificava.
Em vida, muito pouco de seu extenso trabalho foi
publicado. Confiou no leito de morte seus calhamaços de escritos ao amigo Brod,
com uma recomendação: “Tudo que eu deixar deverá ser queimado sem ser lido, até
à última página.” Por sorte da humanidade, Brod logo após a morte em 1924, se
apressou a organizar e buscar edição para os trabalhos do amigo, mesmo às
custas de “se apagar” com seus próprios trabalhos. Brod sabia estar resgatando
materiais de um verdadeiro Mestre.
Acontece que Brod não poderia saber, mas os últimos
desejos de Kafka antecipavam uma profecia terrível. Na Alemanha e na Áustria,
primeiro seus livros foram confinados às livrarias judaicas e, posteriormente,
queimados em praça pública pelas SS Nazistas. Quando, ao final da Segunda
Grande Guerra, a Tchecoslováquia foi ocupada pelas tropas soviéticas, os livros
de Kafka foram novamente proibidos! A primeira edição dos mesmos somente viria
a ocorrer no bloco soviético com o advento da Glasnost, sessenta anos após a
morte do autor. Afinal, os regimes tornados totalitários conheciam
perfeitamente o poder da literatura do jovem judeu!
À medida que o mundo real foi se assemelhando ao
imaginário kafkiano, ele foi-se tornando o escritor por excelência de uma idade
de trevas, aquela em que o mal se banaliza.
Em “Carta ao Pai”, diante do predomínio da manipulação do
relacionamento humano, a família perde aquela condição de refúgio contra a
dureza e a desumanidade de um mundo dominado pelos interesses monetários. Ela
se dissolve e delega suas funções a “comunidades” massificadoras e
massificadas. “Éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o
outro, que se alguém quisesse calcular por antecipação como o filho e tu se
comportaríeis um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me
esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.”
A imagem do pai aparece sempre como fonte de repressão da
individualidade. E os pais que esperam gratidão de seus filhos (inclusive os há
que a exigem) “são como agiotas; eles até gostam de arriscar seu capital,
contanto que recebam juros por ele”.
Como o Pai, na visão de Walter Benjamin da sociedade
reificada é sempre a figura que pune, talvez a carta – que foi escrita e
reescrita – não tenha sido nunca enviada, uma vez que o remetente coincidia,
afinal, com o seu destinatário. O pai é outro nome do sintoma-Kafka, “o pai
interno”, tão imundo e sujo em suas roupas íntimas quanto os funcionários e
burocratas do Estado.
“Metamorfose” é uma das poucas obras publicadas em vida do
autor. Gregor Samsa é um homem comum, conformista, sem os anseios de ascensão
social de um Rubempré (de “As Ilusões Perdidas”, de Balzac) ou de um
Roskholnikof (“Crime e Castigo”, de Dostoievski). Samsa está imerso em sua
privacidade, sendo o sustentáculo familiar, ao qual se agarram os parasitas sob
o comando paterno. De repente, é abatido pelo infortúnio, metamorfoseia-se e os
parasitas que dele viviam se revoltam.
Aqui a precariedade da segurança como valor e objetivo de
vida se expõe! Toda esperança de segurança no mundo pós-moderno é tão somente
uma manipulação, mentira! Gregor, parasita metamorfoseado, tenta inutilmente
retornar à forma humana. Mas ele nada mais é que um estranho no meio familiar,
enorme inseto. E quem, mesmo inconscientemente, quebra as regras da manipulação
é punido com a marginalização!
Finalmente, somente com a morte de um Samsa desolado, a
família respira aliviada e se rearranja.
“Amerika” ou “O Desaparecido” é, na definição de J. L.
Borges, a inconclusão fundamental de Kafka! Aqui o “herói” tem nome e sobrenome:
Karl Rossmann. O livro é a descrição de instantâneos com a triste situação do
sujeito e de seu desaparecimento como indivíduo na grande cidade
norte-americana que representa o conglomerado humano caótico da
pós-modernidade.
O personagem central é próximo de um anti-herói clássico
por ser um burro-de-carga, o alienado perfeito, o Rossmann! Rossmann homem, era
também ross (cavalo), um animal. Vive um inferno que a cada dia se recompõe,
numa atividade incessante para o nada. Embarcara com um destino: América do
Norte. E lá se torna uma pessoa sem história e sem caráter.
Embora tanto Nova York quanto Green, o capitalista, possua
uma dimensão atordoante, o romance possui um “happy end”! Aliás, o único final
“feliz” numa obra kafkiana. É quando surge o “Teatro de Oklahoma”, no qual o
talento de qualquer ator não conta: cada um deve apenas interpretar-se a si
mesmo, sem imitações! Representando seus papéis os atores procuram um abrigo no
teatro ao ar livre sem um diretor de espetáculo, tais quais os de Pirandello
(“Seis atores em busca de um diretor”).
Atenção: no Teatro de Oklahoma existem vagas para todos!
Lá os atores são servidos em enorme mesa, “alegres e excitados”. Para celebrar,
desempenham o papel de anjos em altos pedestais. “Sem as asas postiças talvez
fossem anjos de verdade”. O romance termina nas cerimônias campestres de
Oklahoma. No mesmo local em que, coincidentemente, principiarão, décadas após,
as “Vinhas da Ira” de J. Steinbeck.
“O Processo” talvez simbolize o conjunto da obra do
absurdo de Kafka e a ele deve-se primeiramente a utilização do termo “kafkano”.
Walter Benjamin associa K. e os acusados à Scherazade nas “Mil e uma Noites”:
adiar o que estava por vir, com a quase certeza absoluta de que virá. Sempre,
entretanto, no mundo kafkiano persiste uma esperança dos acusados, desde que o
procedimento judicial não seja a própria sentença que se arrastará por toda a
vida!
“Alguém certamente andava espalhando mentiras sobre Joseph
K., pois, sem que ele fizesse nada de errado, foi detido em certa manhã.” O
quanto lembra esta frase que principia “O Processo” as sociedades totalitárias
do passado e as tiranias que se impõem em nosso mundo de hoje!
O mundo de Kafka é um universo primitivo, onde a culpa é
como um pecado original. Ora, toda acusação é sempre uma falsidade, embora o
personagem acusado jamais diga que a acusação seja injusta, mas que ele
necessita se defender!
Os processos, a que as pessoas comuns como K. são
submetidas, permanecem sempre pendentes. A causa jamais é explicitada. Na verdade,
nenhuma causa torna-se mais suspeita do que aquela para a qual o pai de Joseph
K. pretende obter a solidariedade dos funcionários e empregados da Justiça! Ou
seja, a tentativa de defesa já constitui uma suspeita que recai sobre o réu!
Empregados, funcionários e juízes são infinitamente
corruptos e, no mundo kafkiano, assim como na pós-modernidade, é em sua
venalidade que repousa a única esperança que um acusado pode manter de
manter-se vivo, subornando e submetendo-se, embora eternamente sob judice.
Os Tribunais de “O Processo” possuem códigos e leis, mas
que não podem ser vistos. Talvez jamais tenham sido escritos, porque “faz parte
desses tribunais condenarem não apenas réus inocentes, mas também réus
ignorantes”. Deste modo, como num mundo primitivo, todos podem transgredir as
regras sem o saber, e é no retorno à pré-história que a burocracia e a escória
pós-moderna mantêm seu domínio.
Na busca por livrar-se do processo, embora sem saber
daquilo que o acusam, o jovem K. encontrará sempre jovens tímidas, jamais
belas, sempre ligadas a advogados e juízes e que se revelam devassas. Acontece
que a imagem feminina de Kafka liga-se a um sexo que sempre “é sujo”, do qual
ele tenta tirar vantagens. E a beleza estética nunca se encarna nas mulheres!
Somente a encontramos entre os acusados, pois “o processo que adere a seus
corpos os torna mais belos.”
Para o amigo Max Brod, neste livro “Kafka dizia que somos
nós próprios pensamentos niilistas, pensamentos suicidas que surgem na cabeça
de Deus”.
Resta uma pergunta ao final da leitura de “O Processo”:
existiria esperança fora do mundo de aparência que conhecemos? Kafka mesmo
responde: “Sim, infinita esperança, mas não para nós”. A esperança num mundo do
absurdo, somente existe para os “ajudantes”, para a massa amorfa, os inábeis e
inacabados, os manipuláveis.
No livro inacabado, o senhor K. terminará sendo executado
num beco escuro, por agentes sem identificação. O sr. K. seria “morto como um
cachorro- era como se a vergonha fosse sobreviver.”
Em “A Colônia Penal” encontraremos o surgimento das
câmaras de tortura nos processos persecutórios! Um Explorador, durante a visita
a uma colônia penal francesa, presencia o sistema empregado na execução de um
soldado acusado de insubordinação. Ele constata que o sistema que havia
condenado à morte um soldado não permitia que o acusado tivesse direito à
defesa!
A “justiça maquinal” é o instrumento de tortura. Ela
escreve lentamente sobre a pele com agulhas de ferro, a sentença do crime que,
muitas vezes, o criminoso nem sabe que cometeu. O Oficial, que comanda a
execução, fala da máquina como se falasse de um “deus”: a máquina requer
cuidados e perícia para ser manejada, tanto para torturar quanto para matar
aquele condenado pela burocracia estatal.
Quando um condenado estava para receber o suplício, o
Visitante diz ao Oficial que o método não o convenceu: “O condenado não
apresentava sinal algum da redenção prometida. O que outros teriam encontrado
na máquina acabara por lhe ser negado. Os lábios se achavam apertados com
firmeza, os olhos abertos, com a mesma expressão que tinham quando vivos, o
olhar seguro de si, convencido. Apenas a testa se achava perfurada pela grande
agulha de ferro”.
Finalmente temos o romance “O Castelo” onde uma das
questões centrais é: “Pode um funcionário perdoar? No máximo a administração,
como um todo, poderia fazê-lo, mas provavelmente ela não pode perdoar, somente,
julgar”.
Um Agrimensor chamado K. é chamado por um Conde (nunca
especificado) para prestar serviços. Contudo, por mais que tente ele não
consegue entrar no Castelo para onde fora chamado, e não se conforma em não
prestar os serviços contratados.
Acontece que o Castelo do Poder está repleto de
funcionários imprevisíveis, mesquinhos e gananciosos; o próprio Prédio, como
construção, está conformado contra um estranho céu. O passatempo preferido
daqueles burocratas estatais consiste em brincar com homens, sendo que estes
existem para servi-los, e como serviçais, sob nenhuma hipótese, têm razão! A
que se nos assemelha em tempos de Bolsonaro?
O protagonista, o Agrimensor, é um inconformado que quer
trabalhar, para o que fora chamado. Ele tenta mudar as regras de um mundo
submetido na alienação. “Não quero favores do Castelo, mas trabalhar para o que
fui chamado.”
O Castelo é mais um romance inacabado de Kafka; nele
encontramos enormes recursos satíricos sobre um mundo dominado por burocratas,
pessoas que são delegados- promotores- juízes e que, também, carrascos! E,
neste mundo irracional, as coisas se complicam. O destino dos homens parece
estar sempre subordinado a regras vazias!
As principais personagens além do Agrimensor são algumas
mulheres, como Frieda, amante do grande burocrata Klamm. Ela se aproxima de K.
que a atrai fisicamente. Transam, mas a cópula entre eles se dá em meio à
sujeira, embaixo do balcão, por onde escorre vinho e até mesmo sangue.
Prezado leitor, buscamos nesse rápido ensaio chamar à
atenção para o fato de que ler Kafka é de se perder o fôlego! E que seguir
lendo-o corre-se o risco de se enredar num mundo sem sentido, do qual será
difícil se desenredar, e, mesmo assim, continuaremos lendo… absorvendo cada
palavra sem poder degluti-la, mas seguiremos absorvendo!
É sentir-se num mundo opressor e sem objetivos, onde nada
é o que parece ser, podendo, até mesmo, ser. Um mundo absolutamente sem amor e
sem a intenção do amor! É estar num universo social em que se busca sobreviver
a todo custo; é a sobrevivência daquele que rasteja como uma forma de não
revoltar-se.
Um universo de medo e desamparo! Da autoridade desprovida
de justiça, essencialmente imoral! Um viver sem lógica, sem encanto, sem
esperança.
Este é o mundo kafkiano. Quantos dos personagens dos dias
de hoje, quantos chefes de Estado, Ministros, Juízes, Promotores, Policiais não
se inserem num mundo kafkiano? Concluo relembrando Albert Camus, outro autor do
absurdo, para quem de todos os modos a revolta dos homens, sob qualquer tipo de
tirania, se mantém, busca passagens e sempre encontra frestas para a liberdade.

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