O ELITISMO JURÍDICO NA SINTAXE E NA APARÊNCIA DAS LEIS
BRASILEIRAS. Por Álvaro Miranda
Quem redigiu os códigos civil e penal brasileiros criou em
muitos de suas partes instrumentos cifrados para manuseio só de uma elite de
especialistas e para a tortura cognitiva e intelectiva dos comuns mortais. São
verdadeiros paus de arara na sintática e na semântica, quando não choques
horríveis de obscuridade ou urros de ornitorrincos incompreensíveis.
Nada justifica redações tão mal feitas, complicadas,
confusas e ininteligíveis à primeira leitura, a não ser transformar algo de
interesse público em ferramenta de manipulação para usufruto privado nos
conflitos diversos da sociedade. Ao lermos em voz alta o que esses escribas das
leis botaram no papel, ouvidos sensatos talvez nos socorram de tantas
idiossincrasias.
Não à toa o instrumento garantidor em tese da “justiça”
ser transformado em ferramenta de poder e dominação. Não à toa essa procura
pelas faculdades de direito no Brasil. Calma, jovens juristas deslumbrados! O
problema é anterior a vocês, e espera-se que a Vaza-Jato seja uma grande lição
não só de Direito e Justiça, mas de Política, Economia, Estado e Democracia.
Tudo em caixa alta.
Aspectos da linguagem não estão separados da essência do
objeto. Não constituem elementos meramente formais, isto é, veículo
instrumental apartado de sua natureza. Nem estão desconectados das
circunstâncias históricas de sua elaboração. Nem, portanto, também das relações
entre os atores envolvidos na sua construção e entre estes e os demais
indivíduos, grupos ou classes alheios às instituições jurídicas. São elementos
interpenetrados, no caso, da forma mercadoria do Direito em suas determinações
do modo de produção capitalista.
Sem aprofundar esse caráter que, a meu ver, é o principal,
merecedor de abordagem interdisciplinar em outra oportunidade, basta apenas
dizer que a linguagem dos textos jurídicos não é simples instrumental isolado,
isento ou puramente técnico em relação ao seu conteúdo. Constitui, isto sim,
aspecto de sua própria conformação finalística – qual seja, a dominação de classe
– vale dizer, não como imanência de uma natureza inevitável, mas sim como algo
que poderia ser de outra maneira.
Apesar dessa condescendência especulativa, centrífuga da
questão central, sei que especialistas juspositivistas torcem o nariz para este
tipo de crítica. Objetam que as coisas são assim porque devem ser assim, ou
seja, porque a norma e a lei estão postas institucionalmente – e assim devem
ser aceitas e obedecidas. Para os leigos no assunto, resta acreditar que as
coisas não têm outro jeito porque leis e normas da sociedade exigem sisudez,
austeridade, pompa e solenidade, para não falar também de certo ar de
complexidade. Supõe-se que lei é lei e não literatura, nem material para
viagens linguísticas.
Entretanto, sisudez, austeridade, pompa e solenidade não
devem prescindir, obviamente, da correção nem também da clareza sintática, sem
falar da simplicidade e objetividade, que, diga-se de passagem, são atributos
difíceis de serem alcançados não só no Direito, mas também em outros ramos do
conhecimento.
É de se supor também a possibilidade de modelo mental que
se constrói ao longo do tempo naqueles que se dedicam a vida inteira somente à
leitura desses códigos e raramente jogam seu olhar para outros tipos de texto.
Não à toa que muitos conseguem ler e compreender somente leis e normas em
geral. E assim serem manipulados e manipuladores. Outros aliam seu conhecimento
jurídico à especulação financeira, já que se está no sistema capitalista.
Presume-se, reconhecendo aqui o risco da generalização, que estes acabam
pensando e imaginando a vida e o mundo em termos de lei. A lei posta para os
outros e as possibilidades criativas de vida jurídica e financeira para quem
sabe lidar com os instrumentos específicos.
Não só o pessoal do ramo jurídico pode ficar bitolado em
suas zonas de conforto. Jornalistas, assim como pessoas de outras profissões,
que só leem notícias ou textos de suas especialidades – e nunca livros e/ou
outras publicações diversas – correm risco, a meu ver, de estreitamento da
sensibilidade e das ferramentas para a compreensão, por exemplo, dos processos
sociais e políticos, já que estamos falando do Direito, fenômeno exclusivamente
humano.
A hipótese não toda extravagante é no sentido de que
aqueles tendem a compreender somente o normativo e o prescritivo da vida, nunca
outros elementos possíveis a partir de diferentes tipos de literatura. Sempre
estão calcados na suposta realidade das normas e do dever ser, nunca nos
devaneios locomotivos da emoção e da criatividade livre e incontrolável. Quase
nunca no campo de alternativas novas (e mesmo velhas) do imponderável e das
possibilidades da vida.
Já repórteres e editores de noticiários correm o risco de
se condicionar à crença de que a vida pode ser resumida numa grande reportagem,
dependendo de como a enxergamos. Ou então numa denúncia ou mesmo numa bela
história de entretenimento para consumo mercadológico do marketing
jornalístico. Tanto juristas como jornalistas se pretendem à busca da verdade –
mas qual verdade, se esta é constructo diversificado nos processos sociais
conflitivos, revestindo-se em formas diferentes dependendo do contexto, dos
interesses seletivos e suas linguagens visando consequências determinadas?
Nem incluo agora nessa reflexão os cientistas que também
buscam verdades, procurando formular novos problemas de conhecimento. Em vez de
somente respostas, formulam sempre novas perguntas. Diferentemente de juristas
e jornalistas atentos, supostamente, ao “preto no branco” dos fatos, cientistas
vivem atrás de formas para se construir pontos de interrogação a fim de se
chegar a diferentes lugares possíveis de verdades. A possibilidade de verdade é
a tal hipótese com a qual muitos cientistas iniciantes se incomodam, pois,
frequentemente, ela pode não existir no princípio de uma pesquisa a partir de
uma indagação.
Grosseiramente parafraseando Mikhail Bakhtin, o enunciado
é algo previsível entre quem fala e quem ouve. Ou seja, sempre quem ouve já
espera mais ou menos o que outro fala – e quem fala sabe mais ou menos o que o
outro espera de sua fala. Enunciado seria um constructo recíproco entre quem
fala e quem ouve. Enfim, forma e conteúdo se interpenetram em sua dinâmica. As
palavras falam, mas também calam. Além disso, como dizia Montaigne, no século
XVI, a verdade não é o que é, mas o que os outros são levados a acreditar que
seja. A Lava-Jato desmascarada pela Vaza-Jato é o nosso exemplo eloquente a
entrar para a história.
O real do ser e do dever ser é o que sempre interessa a
determinados especialistas, principalmente, os do ramo jurídico. Para muitos
destes, ficções não serviriam para nada, a não ser para passar o tempo nas
horas vagas, como espécie de hobby – isso, claro, para aqueles que têm educação
letrada e cultivam o hábito da leitura. Para determinadas posturas de vida,
porém, ficções não serviriam, enfim, para qualquer outra coisa a não ser para a
fuga do real nas férias que se tiram para se distanciar da vida concreta e
cotidiana.
Entretanto, mal sabem como a prosa de ficção, por exemplo,
e a poesia, podem fornecer elementos fecundos para a compreensão do ser humano,
mais até do que diferentes tratados da psicologia, da sociologia ou do direito.
Quer maior poder e força elucidativa e descritiva da sociedade brasileira da
segunda metade do século XIX do que um romance de Machado de Assis, só para
citar um dentre inúmeros exemplos?
Quer potência maior do que um poema ou uma crônica de
Drummond para sintetizar o drama social provocado por uma mineradora? A tal
mineradora que, ao alterar a paisagem de uma cidade mineira no passado,
provocaria desastres no presente, este como futuro anunciado silenciosamente na
época pelo poeta? Ele, Drummond, que, por isso, acabou sendo objeto da ironia
dos capitalistas de que havia um poeta no caminho do progresso? Sempre os
poetas excomungados pela ração instrumental!
Voltando aos nossos pálidos, cinzentos e sisudos códigos
civil e penal, não seria o caso de uma boa prosa simplificada torná-los mais
esclarecedores e, por conseguinte, mais populares e menos elitistas? Não seria
nada problemático demonstrar o que se argumenta aqui, com sobejos exemplos em
transcrição literal. Os códigos são para lá de pródigos em excrescências bizarras.
Em outro texto, poderíamos listar muitos, mas basta aqui um exemplo de cada
código.
Veja-se essa pérola sintática do Código Penal sobre a
relação de causalidade, artigo 13: “O resultado, de que depende a existência do
crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou
omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.” Parágrafo 1º: “A
superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando,
por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a
quem os praticou.”
Um parêntese, saindo do artigo do Código Penal e entrando
na vida, poderíamos indagar: o que dizer de legislação que dá causa à
possibilidade de cometer crimes a exemplo das normas envolvendo doação de
campanha, tempo eleitoral de televisão e fundo partidário? Se palavras falam,
mas também calam, leis também podem incentivar o crime. E podem ser
interpretadas ao sabor da dominação capitalista e à moda da “mutação
constitucional”, dependendo dos interesses em jogo. E isso com textos
grandiloquentes que pouquíssima gente compreende. Sem falar das leis que podem
criar culpados por antecipação na base apenas da potencialidade de ser o que se
é ou poder vir a ser.
Ao ruído sintático, muito pior do que aqueles das ondas
curtas sintonizadas num rádio antigo, some-se a peculiaridade de o principal do
referido preceito do Código Penal estar em seu parágrafo 2º, que trata da
relevância da omissão de socorro nas três situações previstas no texto. Em
suma, a sintática aqui pede socorro, mas certa unanimidade do positivismo
jurídico sempre comete o crime de omissão, sendo absolvida sumariamente sem
processo ou julgamento.
No caso do Código Civil, são muitas as pérolas. Veja-se
esta do artigo 940 como crime hediondo porque, afinal, convenhamos, é uma
verdadeira tortura contra a sintática: “Aquele que demandar por dívida já paga,
no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que
for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do
que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se
houver prescrição.” Nada errado, mas horrível aos ouvidos, que, uma vez não
treinados, podem ser manipulados pelos especialistas.
Outro exemplo, artigo 204: “A interrupção da prescrição
por um credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a interrupção operada
contra o codevedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados.”
Enfim: escusas! É como se o texto assim áspero e antipático, com sua
intercalação de orações coordenadas e subordinadas, apostos, pleonasmos,
inversões de sujeitos e predicados, dentre outros elementos que seriam
verdadeiros escândalos na fala corrente, constituíssem parte da natureza do
fazer jurídico. Mas, a pergunta é: qual deveria ser o objeto do Direito, a não
ser o próprio ser humano e a clareza de normas em suas relações com os demais
seres humanos?
Álvaro Miranda –
Jornalista, mestre e doutor em Ciências, Políticas Públicas, Estratégias e
Desenvolvimento pela UFRJ

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