Marcia Tiburi
Com Rubens Casara
Introdução
Em
recente manifestação popular, alguns simpatizantes da ditadura militar
instaurada em 1964 carregavam uma faixa em que era possível ler o slogan “pelo
direito de não ter direitos”. Também se tornaram conhecidas as manifestações
pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal “em nome da
democracia”. Isso para não mencionar o apoio de parcela da sociedade a pessoas
que, hoje, defendem explicitamente a prática da tortura ou a violação ao
sistema de garantias constitucionais (que tem como única finalidade evitar o
arbítrio e a opressão estatal contra os indivíduos, inclusive aqueles que se
manifestam contra esses direitos e garantias). Mas não é só.
Há
trabalhadores que defendem reformas do Estado que só favorecem os donos do
capital. Há quem defenda o trabalho infantil e o fim do ensino público. Há
dirigentes políticos que criticam o pensamento crítico e têm ódio do
conhecimento. Há afrodescendentes que aplaudem medidas que potencializam o
genocídio da população negra. Há mulheres que acreditam que o feminismo é puro
ressentimento de mulheres feias e/ou lésbicas. E, mais recentemente, ficou
evidente que não faltam aqueles que, em nome do combate ao crime, defendem a
prática de outros crimes.
Em
todas essas manifestações, há algo em comum: a defesa daquilo que deveria ser
indefensável. Em outras palavras, tratam-se de manifestações que atacam
valores, direitos e conquistas que deveriam ser objeto de consenso e de defesa
em uma sociedade civilizada, republicana e democrática.
Esse
fenômeno da “defesa do indefensável” aos olhos de qualquer pessoa que busque
compreender a realidade, torna-se ainda mais interessante à pesquisa se
estivermos atentos para o fato de que, não faz muitos anos, algumas dessas
manifestações seriam imediatamente repudiadas no Brasil ou arrancariam risos
diante do ridículo próprio a espetáculos de programas de auditório que
recorriam a políticos inexpressivos e outras pessoas exóticas, dentre
exorcistas, pessoas que se alimentam de luz ou novos messias. Os políticos que deveriam
ser pessoas responsáveis pelo decoro, ocuparam o lugar desses personagens.
Mas
infelizmente, embora bufões, esses políticos não estão de brincadeira.
Pense-se, por exemplo, na defesa da tortura, que nem mesmo os governos
militares pós-1964 ousaram admitir ou muito menos elogiar publicamente diante
da repugnância que uma prática como essa provoca em qualquer pessoa com o
mínimo apreço à dignidade humana.
Tendo
isso em vista, a pergunta passa a ser: o que explica, no Brasil em 2019, a
“defesa do indefensável”? Nessa primeira aproximação diante desse problema,
estamos levantando a hipótese de que se trata de um problema complexo e, como
tal, possui múltiplas causas, dentre elas destacando-se: a) a ignorância; b) a
burrice; c) a vergonha; d) vantagem; e) o autoritarismo; f) a paranoia; e g) o
cinismo. Não raro, mais de um desses fatores psicossociais se faz presente em
uma mesma pessoa. Assim, por exemplo, a pessoa pode ser ignorante e burra,
paranoica e autoritária, burra e envergonhada ou ainda ignorante, burra,
autoritária e cínica.
Ignorância
A
ignorância é a ausência de informação e conhecimento. Se o indivíduo possuísse
informação de qualidade ou detivesse o conhecimento necessário à compreensão
dos fenômenos, não “defenderia o indefensável”. Se, por exemplo, entendesse que
o sistema de direitos e garantias existe para evitar o arbítrio de que ele
mesmo pode ser vítima, se conhecesse os horrores históricos que levaram à
criação e um sistema internacional de proteção aos direitos humanos, não defenderia
a violação das garantias que derivam da Constituição e dos Tratados
Internacionais. O ignorante tem salvação, mas é constantemente alvo de ações
governamentais que tem por objetivo mantê-lo na ignorância e, portanto, passivo
diante do absurdo.
Todo
governo que precisa da ignorância para se manter (ou todo governo que deseja o
povo “defendendo o indefensável”) adota medidas concretas para impedir o
pensamento crítico (acabando com cursos de sociologia e filosofia, por
exemplo), para solapar a credibilidade das universidades públicas (diminuindo
os investimentos em pesquisa e educação), desvalorizar a educação, empobrecer a
linguagem, destruir as palavras (ou criar novas como “conje”), suprimir e
reescrever a história (atacar os cursos de história ou divulgar versões
revisionistas que atendam aos objetivos do governo), reforçar a ideologia
disfarçada de “neutralidade” (pense-se no movimento “Escola Sem Partido”),
instrumentalizar a imprensa (perseguir jornalistas que ousam “fazer
jornalismo”, por exemplo), desincentivar as artes (reduzir o investimento em
cultura) e destruir os projetos de leitura etc.
Burrice
Nelson
Rodrigues dizia que se a ignorância é o desconhecimento dos fatos e das
possibilidades, a burrice é uma força da natureza. A burrice é a incapacidade
de articular e usar corretamente a informação que a pessoa possui. Uma pessoa
burra consegue fazer o mal ao outro, mas também a si-mesma sem perceber a
relação de causa e efeito entre a sua ação e o mal que vem a suportar.
Pode-se
dizer que a burrice é, em certo sentido, uma categoria moral, na medida em que
produz efeitos na esfera de terceiros. Mas, não raro, ela caminha junto com a
arrogância e a prepotência que não permitem a alguém desvencilhar-se da própria
burrice. O Burro defende o indefensável porque é incapaz de entender as
consequências dessa defesa, inclusive para ele próprio. Pensem na manifestação
em defesa do “direito de não ter direitos”. Uma vez vitoriosa, a “tese” levaria
à perda do direito de se manifestar. Pensem na “defesa da tortura” que coloca o
manifestante na condição de potencial alvo dessa prática contrária à defesa da
dignidade da pessoa humana. O Burro é vítima da crença, efeito de sua falta de
reflexão, de que ele não possa ser vítima de um erro judicial ou de uma armação
da polícia.
Vergonha
A
vergonha costuma ser apresentada como uma condição psicológica e uma forma de
controle relacionada ao medo ou consciência da desonra, desgraça ou condenação.
Frequentemente, a vergonha relaciona-se com dogmas religiosos, preceitos
jurídicos, valores políticos ou preconceitos sociais.
A
vergonha pode explicar a tentativa do oprimido de se defender da recriminação e
da condenação do opressor através do fenômeno do mimetismo. O oprimido passa a
“defender” o que ele tenderia a considerar indefensável para se misturar com o
opressor. Alguns exemplos podem ajudar a entender: o indivíduo que tem vergonha
de sofrer o estigma de ser “pobre”, “favelado” ou “negro” passa a defender
ações militares desordenadas e abusivas, que colocam em risco concreto a sua
própria vida e a de seus familiares. Para tentar parecer “igual” ao opressor
uma pessoa pode passar a aplaudir o discurso e a prática que a colocam na
condição de vítima em potencial.
A
vergonha também pode justificar a “defesa do indefensável” sempre que ela impedir
o indivíduo de reconhecer que estava errado em um anterior julgamento ou
manifestação. Para fugir da condenação moral diante do erro, o indivíduo
revela-se capaz de se manter no erro e continuar a defender aquilo que, com o
tempo, se revelou indefensável. Pense-se nas pessoas que passaram a adorar e a
enaltecer falsos heróis e que agora, mesmo diante da revelação de que esses
heróis eram de barro, se fecham em uma postura fundamentalista de defesa
daquilo que não mais é defensável.
Vantagem
A
vantagem é o ganho, a diferença a favor, que uma pessoa ou um ente exerce ou
recebe de outra pessoa ou ente. O fato de uma pessoa, uma classe, um grupo
econômico ou uma categoria levar vantagem com o “indefensável” não pode ser
menosprezado ao se estudar manifestações que aos olhos de um indivíduo
desinteressado pareceriam absurdas. Vale imaginar que um grupo econômico
investiu em um projeto de poder e que, mesmo depois de uma série de
ilegalidades de seus comparsas terem sido reveladas, insiste em defender o que se
tornou indefensável.
Em
uma sociedade em que o egoísmo passou a ser tratado como uma virtude, no qual
os valores da utilidade e do interesse tornaram-se fundamentais e
condicionantes da ação da maioria das pessoas, em uma sociedade em que muitas
pessoas acham “normal” violar regras constitucionais para conseguir uma
vantagem ou ter maior lucro, não é de se estranhar que também se “defenda o
indefensável” para conseguir uma vantagem.
Autoritarismo
Se
a personalidade democrática convive com a existência de limites tanto aos seus
desejos quanto ao exercício do poder, a personalidade autoritária se
caracteriza pela desconsideração de qualquer limite aos seus desejos e aos seus
projetos. O autoritarismo leva ao culto da violência, ao ódio aos direitos humanos
e ao conhecimento, ao medo da liberdade, à criação de inimigos imaginários, à
confusão entre o julgador e o acusador, ao pensamento etiquetador (ao discurso
empobrecido que recorre à chavões, slogans e frases feitas), à naturalização de
preconceitos, à aceitação acrítica de fake news (em especial aquelas que
confirmam os piores preconceitos do indivíduo autoritário) e, principalmente, à
intolerância com qualquer limite ao poder e aos desejos do detentor da
personalidade autoritária.
A
razão, os direitos, os valores, as regras, os princípios e as práticas
civilizatórias que impõem limites aos desejos forjados no autoritarismo passam
a ser odiados e afastados. Nesse movimento, não raro, o autoritário passa a
“defender o indefensável”, desde a “prática de crimes para combater a
criminalidade” à solução final administrada pelos nazistas no século passado.
Paranoia
A
paranoia costuma ser definida como uma espécie de psicose que se caracteriza
por uma certeza delirante que se funda na ausência da inscrição do “não” (e,
portanto, de limites) no psiquismo do sujeito. Há uma perda do simbólico e o
sujeito passa a recusar limites externos e a substituí-los por uma espécie de
“lei imaginária’, ou seja, a fazer aquilo que na cabeça dele é o certo e o
legal.
O
caso do juiz Daniel Paul Schreber, cuja biografia foi objeto da atenção de
Freud, e que passou a acreditar que era destinado a ser a “mulher de Deus”, do
ponto de vista dos quadros clínicos propostos pela psicanálise, não difere
muitos daqueles que aderem a uma certeza delirante que precisa ser confirmada
e, para tanto, precisam abandonar os fatos, as provas, as leis, a ética etc.
O
paranoico, como se percebe, “defende o indefensável” para confirmar a sua
certeza delirante, as hipóteses a que aderiu em razão de um quadro mental
paranoico.
Cinismo
Para
além de designar uma doutrina filosófica grega, por extensão, o significante
“cinismo” busca dar conta da atitude ou caráter de uma pessoa que revela
desconsideração pela moral vigente, pelas normas jurídicas e pelas convenções
sociais. O cínico vive um pacto com a inverdade como se ela fosse verdade,
porque nada que seja verdadeiro lhe importa. O cínico “defende o indefensável”
por caradurismo ou desfaçatez. A inverdade lhe convém e a verdade não vem ao
caso. Para que o cínico alcance sucesso ele precisa ser muito forte, muito
vazio ou frio, emocionalmente falando. Além de suas características pessoais, é
necessário um grupo de ignorantes (ver acima) e de burros (ver acima) que
sirvam de audiência e forneçam apoio em um verdadeiro arranjo, um círculo cínico.
Tais
categorias dispostas aqui para, humildemente, nos ajudar a pensar, nos colocam
diante da tarefa cada vez mais urgente do pensamento crítico. E isso não é
pouca coisa diante do cenário atual, fruto da ausência de pensamento que se
expande em escala nacional. A luta é mais uma vez contra o obscurantismo sempre
útil ao poder.
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