Prender
para averiguar. Uma anomalia jurídica[1] no sistema moderno de processo penal.
Uma estupidez[2], um flagrante arbítrio, uma discrepância na ordem democrática.
Nem mesmo os regimes de exceção a admitiriam — como não admitiram no passado
recente da história brasileira.
A
prisão temporária, ou “prisão para averiguação”, rejeitada no governo dos
militares, que a considerou flagrantemente antidemocrática, ironicamente foi
assimilada pelo novo governo civil após a promulgação da Constituição de 1988.
Com
efeito, a Medida Provisória 111, de 24 de novembro de 1989, convertida na Lei
7.960, de 21 de dezembro do mesmo ano, pariu uma modalidade de prisão piorada
mesmo em comparação ao embrião idealizado no período do regime militar. Certo é
que, desde a concepção, a norma comporta críticas veementes acerca da sua
constitucionalidade em sentido formal e material.
Na
acepção formal, embora não houvesse vedação antes do advento da Emenda Constitucional
33/2001, está-se diante de uma norma processual penal oriunda de ato
governamental exclusivo do chefe do Poder Executivo, o que hoje não se admite
em especial por força das cláusulas constitucionais da separação de Poderes e
da reserva legal (CF, artigos 2º e 22, inciso I).
Já
em uma análise acerca da constitucionalidade material, mais evidente se mostra
a incompatibilidade entre a Lei Maior e a Lei 7.960/89. A título de
exemplificação:
(i)
a prisão temporária se proclama aplicável sempre “quando imprescindível para as
investigações do inquérito policial” (artigo 1º, inciso I). Lacunosa, genérica
e indeterminada, a redação confere à persecução penal demasiado poder
discricionário em dissonância com as aspirações cultivadas pela civilização
ocidental desde o iluminismo;
(ii)
o suspeito com identidade não esclarecida deve permanecer preso e à disposição
das autoridades por cinco a dez dias (artigo 1º, inciso II c/c artigo 2º,
caput), ou 30 a 60 dias em caso de crime hediondo (Lei 8.072/90, artigo 2º, parágrafo
4º), enquanto na prisão preventiva, independentemente da natureza e gravidade
do delito, a medida extrema e excepcional deve perdurar somente até a correta
identificação do encarcerado (CPP, artigo 313, parágrafo único);
(iii)
a incidência do permissivo legal se ancora na gravidade abstrata dos tipos
penais enumerados como crimes mais graves, como homicídio doloso, roubo e
estupro (artigo 1º, inciso III). É dizer, a norma denota um fim preponderante
de satisfação do clamor social, sem a exigência da concretude do periculum
libertatis e da excepcionalidade como ultima ratio, requisitos previstos para
qualquer prisão provisória, como ocorre na prisão preventiva por expressa
disposição veiculada pela reforma processual penal de 2011 (CPP, artigos 312
c/c 282, parágrafo 4º).
Aliás,
a seletividade da prisão temporária segundo a gravidade abstrata do tipo penal
já reflete, per si, não uma técnica científica e processual, mas o anseio de um
sistema repressivo ainda imoderado e suscetível ao clamor público ávido por
justiçamento instantâneo — paixão típica de povos obcecados por experiências e
distrações sanguinárias.
Ou
seja, o instituto viola flagrantemente o princípio da presunção de inocência,
dada a sua finalidade desprovida de efetiva cautelaridade, por não se destinar
a assegurar, no processo penal, o procedimento do devido processo legal[3].
Valiosa
se faz uma consulta aos cadernos do tempo. Enquanto na Antiguidade se prendia
para assegurar a execução penal, o pagamento de dívida, ou para garantir a
incolumidade física do acusado[4], na Idade Média, marcada pelo terrível
sistema inquisitorial, a prisão perdeu o caráter de cautelaridade e o seu fim
passou a ser a disponibilidade, com aflição e penitência, do corpo do
acusado ao inquisidor, como meio de obtenção da confissão per
tormenta[5].
Se
a prisão temporária pode, com amparo infraconstitucional, dar-se na ausência de
flagrante delito e antes mesmo da existência de elementos autorizadores da
prisão preventiva[6], apenas respaldada em um juízo discricionário e
excessivamente subjetivo de uma intitulada “necessidade da investigação”, então
o processo penal brasileiro regrediu exatamente sob a égide da Constituição
Cidadã.
Com
efeito, prender para apurar destoa do justo processo legal e da sua ínsita
garantia de que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” (CF, artigo 5º,
inciso LXI).
No
desempenho da elevada missão de proteger os direitos fundamentais e de garantir
a ordem constitucional, o Supremo Tribunal Federal dirá sobre a
(in)constitucionalidade da Lei 7.960/89 no julgamento das ações diretas de
inconstitucionalidade 4.109 e 3.360, no próximo 15 de agosto.
O
que está em debate, vale destacar, não é apenas um conjunto de regras formais,
mas “a definição sobre a extensão dos poderes do Estado em face dos direitos e
garantias que a Constituição da República outorgou às pessoas sujeitas, por
suposta prática delituosa, a atos de investigação criminal ou de persecução
penal em juízo”[7].
Não
se deve hesitar. Eis o momento histórico para a corte máxima do país
reconhecer, na prisão temporária instituída pela Lei 7.960/89, que “a
exageração sempre é inconveniente e má, ainda mesmo quando se emprega para um
fim bom e moral” (Joaquim Manuel de Macedo).
[1] Para Paulo Rangel, “em um
Estado de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para
investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o
indiciado, efetivamente, é o autor do delito” (Direito processual penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 643).
[2] TOURINHO FILHO, Fernando
da Costa. Processo Penal. vol. III. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 535.
[3] KATO, Maria Ignez Baldez
Lanzellotti. A (des)razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005. p. 126.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto.
Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
28.
[5] CRUZ, Rogerio Schietti
Machado. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas. São Paulo: Lumen
Juris, 2011. p. 8.
[6] Para Rogério Leão Zagallo,
“esse tipo de prisão visa permitir que a autoridade policial, diante da prática
de um crime que esteja disposto na Lei n. 7.960/1989, não possuindo ainda
elementos de prova que permitiram a prisão preventiva e na ausência de
flagrante permaneça com o investigado sob sua proteção e disposição, com o fim
de proceder à coleta de demonstrativos de autoria e materialidade” (Prisão
Provisória: Razoabilidade e Prazo de Duração. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2005, p. 83).
[7] Voto proferido pelo
ministro Celso de Mello no recente julgamento, em 14 de março, do AgReg no Inq
4.435/DF, em que o Plenário da suprema corte firmou a competência penal da
Justiça Eleitoral nos delitos comuns conexos com crimes eleitorais.
Willer Tomaz é sócio
do Willer Tomaz Advogados.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-jul-11/willer-tomaz-prisao-temporaria-euma-exageracao-inconstitucional
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