O dia em que meu pai chegou com aquele disco embaixo do
braço naquele longínquo ano de 1961, eu jamais iria imaginar que ele seria
determinante em minha vida futura.
Eu já ensaiava os meus primeiros acordes no violão de um
amigo, e, às ocultas, no violão de minha irmã. Até então, meu sonho de
instrumentista era tentar tocar as músicas de Dilermando Reis, com aquele som
limpo, técnico e envolvente. Aliás, a minha música-solo na formatura no
Conservatório Riograndense, bem mais tarde, em 1968, em um concerto que fizemos
no Theatro Treze de Maio aqui em Santa Maria, RS, foi justamente a música
Abismo de Rosas, que era interpretada pelo referido violonista, e cuja
partitura eu conservo até hoje, quase intacta.
Pois no momento em que meu pai colocou o disco a tocar na
vitrola (aparelho que muitos jovens de hoje talvez desconheçam), foi amor à
primeira vista. Fui atraído desde logo por aquela batida ao violão, que eu e
tantos outros músicos tentaram imitar sem nunca conseguir. Também fui seduzido
pela sequência de acordes cheia de inversões e dissonantes, que me fizeram ver
que eu teria um longo caminho a seguir caso quisesse sonhar em seguir a
carreira de músico.
Mas o que mais me chamou a atenção, foi aquela voz quase
sussurrada, que dava à música uma personalidade que restou reconhecida
internacionalmente. Eu que crescera escutando cantores com vozeirões como
Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Francisco Petrônio, Dalva de Oliveira, Ângela
Maria, nunca havia sequer pensado em abrir a boca para cantar uma cantiga que
fosse. Pois João Gilberto me fez mudar de ideia. Naquele momento eu percebi que
mesmo aqueles que não tinham grande volume ou alcance vocal, poderia cantar,
desde que tivessem um mínimo de afinação. Na verdade, ele abriu as portas para
muita gente se arriscar a cantar.
O disco a que estou me referindo, tem o nome de O Amor, o
Sorriso e a Flor, todo interpretado por João Gilberto no violão e voz. A maior
parte das canções são de autoria de Tom Jobim, algumas em parceria com N.
Mendonça, sendo que algumas delas entraram para a história de nosso
cancioneiro, como Samba de Uma Nota Só, Corcovado, Meditação, Só em Teus Braços,
Discussão e outras. Ah, e temos ainda a música O Pato, que agora está sendo
parodiada por alguns cantores que fazem referência ao marreco de Maringá...”O
pato, vinha cantando alegremente, Glenn, Glenn...” (a canção é de Jayme Silva e
Neusa Teixeira).
Entre outras tantas belas canções, João Gilberto nos
brinda ainda com um solo de violão de sua autoria, denominada Um Abraço no
Bonfá, que talvez quase ninguém conheça, mas que é linda também.
Enfim, naquele dia de 1961, eu com quase dez anos, João Gilberto
entrou em minha vida para nunca mais sair. Aliás, eu só tive três grandes
ídolos que marcaram minha infância e adolescência: João Gilberto, Che Guevara e
John Lennon.
Só mais tarde, tomei contato com os Beatles e com os
Rolling Stones e como todos os jovens de minha geração, apaixonei-me também por
eles, mas sem deixar de amar João Gilberto. Mesmo tendo me tornado um roqueiro,
suas canções jamais foram esquecidas por mim.
Hoje, um advogado desiludido com o poder judiciário após
trinta anos de atividade, tenho orgulho de dizer que fui músico durante trinta
e três anos e que durante este tempo, em meu repertório sempre carregava as
músicas deste ícone que é João Gilberto, mesmo nos anos setenta e oitenta,
época em que ninguém mais se lembrava dele. Acho mesmo que se perguntarmos aos
mais jovens, perceberemos que maioria não o conhece, ou aqueles que já o
escutaram, não entendem a importância que ele teve para que a música brasileira
neste estilo Bossa Nova, fosse projetada para o mundo inteiro.
Pois bem. Para comprovar minhas assertivas, devo dizer que
eu ainda conservo o disco (vejam a foto) a que me referi e que ele ainda toca
perfeitamente, sem nenhum arranhão, em uma velha vitrola que nós conseguimos à
duras penas, já que suas peças não são mais fabricadas. Infelizmente, ela só
tem 33 e 45 rotações, faltando as 78 rpm, pois senão eu iria falar dos discos
que eu tenho que só tocam nesta velocidade. Mas isto é tema para outra
história...
Para finalizar, devo dizer que fiquei bastante triste com
a notícia da morte daquele que era o meu último ídolo ainda vivo. Ele para mim,
sempre foi um bálsamo em meio a tanto lixo musical que está sendo criado por
aí.
Descanse em paz, meu velho e inimitável mestre. Posso
dizer com toda a certeza, que antes de ter sido um garoto que amava os Beatles
e os Rolling Stones, eu já amava João Gilberto.
Jorge André Irion Jobim
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