Muitos acreditam, ou são levados a acreditar, que uma
decisão judicial confirmada por vários juízes tende a estar correta. Esse
pensamento, porém, não passa de um sofisma. Trata-se de um argumento, com
estrutura interna inconsistente (quanto não deliberadamente enganosa), que tem
o objetivo de produzir uma ilusão que substitui a verdade, sempre mais
complexa.
Motivos não faltam para diversos juízes errarem ao decidir
sobre uma mesma causa. Desde acordos explicitamente espúrios a fenômenos muito
mais sutis. Da má-fé à ingenuidade. De déficits cognitivos a falsas
compreensões, plenamente justificadas, da realidade. Da ignorância sobre fatos
ou direito à distorções teóricas com finalidade de atender a crenças
compartilhadas pelos julgadores.
O objetivo deste breve texto é expor, ainda que
brevemente, alguns desses fenômenos, que levam a constantes sequências de
erros, deliberados ou não, nos julgamentos.
Da tradição autoritária em que estão inseridos os
intérpretes brasileiros
Há uma explicação hermenêutica para diversas decisões
contrariarem, ainda que inconscientemente, a Constituição da República e o
respectivo projeto de realização dos direitos e garantias fundamentais (aquilo
que o jurista italiano Luigi Ferrajoli chamou de conteúdo material/substancial da
democracia). A aplicação (função que é
sempre criativa) do direito está condicionada pela tradição em que os
intérpretes estão inseridos.
Existe uma diferença ontológica entre o “texto de lei” e a
“norma” produzida pelo intérprete (no Brasil, por todos, Lenio Streck a partir
das lições de Martin Heidegger). A norma é sempre o produto da ação de um
intérprete, por sua vez, condicionado por uma determinada tradição. Em outras
palavras, a compreensão e o modo de atuar no mundo dos atores jurídicos ficam comprometidos
em razão da tradição em que foram lançados. Intérpretes autoritários carregam
uma pré-compreensão inadequada à democracia (em especial, a crença no uso da
força em detrimento do conhecimento e o medo da liberdade) e, com base em seus
preconceitos, suas visões de mundo e nos valores em que acreditam, produzem
ações e normas autoritárias, mesmo diante de textos legais tendencialmente
democráticos. Determinados casos penais, portanto, que deveriam receber
decisões adequadas à democracia, não raro são decididos em desconsideração aos
direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.
No Brasil, os atores jurídicos estão lançados em uma
tradição autoritária que não sofreu solução de continuidade após a
redemocratização formal do país com a Constituição da República de 1988. A
naturalização da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas, um dos
legados da escravidão, por exemplo, continua a ser percebida na sociedade
brasileira e, em consequência, também influencia a atuação dos atores
jurídicos.
Ao contrário da Argentina e do Chile, em que a repressão
subterrânea à oposição política dominou o processo de controle e eliminação da
oposição política, aqui o sistema de justiça foi o locus privilegiado para a
persecução política e a eliminação dos adversários do regime autoritário. Os
atores jurídicos brasileiros, salvo raríssimas exceções, serviram sem
constrangimento ao projeto de repressão da ditadura civil-militar instaurada em
1964, como antes já haviam servido à ditadura do Estado Novo (registre-se, por
oportuno, que o Código de Processo Penal de 1941, ainda em vigor no Brasil, é
praticamente uma cópia do Códice Rocco de orientação fascista). E essas mesmas
pessoas continuaram a exercer poder nas agências do sistema de justiça após a redemocratização.
Ministros do Supremo Tribunal Federal indicados pelos
ditadores brasileiros e juízes que tanto se acostumaram com o arbítrio quanto
relativizaram violações graves de direitos humanos, por exemplo, continuaram a
ditar os rumos da jurisprudência produzida após a Constituição da República,
que pretendia servir de base normativa à democratização do país. Mas não só.
Essas mesmas pessoas ficaram responsáveis pelos processos de seleção e formação
dos novos juízes.
Em apertada síntese: não se pode pensar a atuação do Poder
Judiciário (e entender como decisões flagrantemente contrárias ao projeto
democrático se repetem) desassociada da tradição em que os magistrados estão
inseridos. Há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o processo de
formação da sociedade brasileira (e do próprio Poder Judiciário) e as práticas
observadas na Justiça brasileira. Pode-se apontar que em razão de uma tradição
autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico
e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe
dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade, sem que
existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um Poder
Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista (poder-se-ia
dizer até aristocrática), constituída de um conjunto de valores que se
caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do
outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão
entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e
ao conservadorismo, o que, não raro, leva a decisões em contrariedade à
Constituição de 1988 e, portanto, erradas.
Do comodismo crônico
No Brasil, motivos não faltam para os juízes brasileiros
extrapolarem o dever-poder previsto na Constituição, ultrapassarem as suas
funções constitucionalmente delimitadas, naquilo que hoje se conhece por
“judicialização da vida”. Fenômeno que se torna ainda mais grave sempre que, na
vida judicializada, os direitos e garantias fundamentais são violados sem
maiores constrangimentos. Do conservadorismo exacerbado de alguns ao
vanguardismo capenga de outros, do pedantismo distanciador de muitos ao
mau-caratismo de poucos, sem excluir a responsabilidade das faculdades de
direito e a baixa qualidade do ensino jurídico, não faltam explicações para o
fato de juízes, de norte a sul do país, abandonarem os limites de atuação
impostos pelo Estado Democrático de Direito.
Um desses motivos é ligado à burocratização da carreira: o
comodismo crônico, identificado por Raul Zaffaroni. Esse fenômeno está
relacionado ao desejo de ascensão e estabilidade funcional. O juiz, para não
criar dificuldades em sua carreira, procura não contrariar o sistema, decidindo
mesmo em contrariedade à lei ou reproduzindo teses ainda que equivocadas para
evitar a colisão direta com a opinião de outros juízes, de lideranças políticas
ou de grupos econômicos que detêm os meios de comunicação de massa que podem
criar obstáculos à vida funcional do mesmo.
O comodismo crônico é, então, uma espécie de “reação
preventiva” contra a ameaça de sanções, afastamentos, pressões policiais ou
políticas, bloqueio de ascensões/ promoções, campanhas difamatórias e outros
instrumentos de pressão e controle ideológico das decisões. Para evitar
problemas, alguns juízes dispensam a tarefa de pensar (há nesses juízes um
pouco de Eichmann), reproduzem teses e decisões (ainda que equivocadas) e
sempre buscam não contrariam o sistema.
Tentação populista
A esperança depositada no Poder Judiciário, que a
Constituição de 1988 prometeu transformar em guardião da democracia, cede
rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça em
satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação
entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário no
ambiente democrático. Não raro, para dar respostas (ainda que meramente
formais) às crescentes demandas, o Poder Judiciário recorre a uma concepção
política pragmática que faz com que ora se utilize de expedientes técnicos para
descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora recorra ao patrimônio
gestado nos períodos autoritários da história do Brasil para manutenção da
ordem.
Não obstante, na medida em que cresce a atuação do Poder
Judiciário (ainda que essa atuação não atenda às expectativas geradas), diminui
a ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial. Esse
quadro está a indicar um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos
da vida brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade de todas as
agências estatais e ao crescimento do sentimento de desconfiança em relação à
Justiça.
Percebe-se claramente que o Sistema de Justiça tornou-se
um locus privilegiado da luta política, o que torna a escolha dos ministros dos
tribunais superiores (ou seja, dos tribunais com competência em todo território
nacional e que produzem as decisões que servem de diretrizes/modelos para todos
os órgãos do Poder Judiciário) um ponto sensível (embora, constantemente
negligenciado) no processo de construção da democracia brasileira (democracia
aqui entendida em seu sentido material, como efetiva participação popular na
produção das decisões fundamentais à República somada ao respeito incondicional
aos direitos fundamentais).
A burocratização, marcada por decisões conservadoras em um
contexto de desigualdade e insatisfação, e o distanciamento da população fazem
com que o Judiciário seja visto como uma agência seletiva a serviço daqueles
capazes de deter poder e riqueza. Se por um lado, pessoas dotadas de
sensibilidade democrática são incapazes de identificar no Poder Judiciário um
instrumento de construção da democracia; por outro, pessoas que acreditam em
posturas fascistas (na crença da força em detrimento do conhecimento, na
negação da diferença, etc.) aplaudem juízes que atuam a partir de uma
epistemologia autoritária. Não causa surpresa, portanto, que considerável
parcela dos meios de comunicação de massa, a mesma que propaga discursos de
ódio e ressentimento, procure construir a representação do “bom juiz” a partir
dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia.
Não se pode esquecer que “o sistema midiático tem a
capacidade de fixar sentidos e ideologias, o que interfere na formação da
opinião pública e na construção do imaginário social”, como afirma Dênis de
Moraes. Assim, o “bom juiz”, construído/vendido por essas empresas de
comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele
que considera os direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado (ou
do mercado). Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático,
outros por compromisso com posturas autoritárias, o “bom juiz” é justamente
aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a concepção material de
democracia.
Note-se que o distanciamento em relação à população gerou
em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles que acreditam na
democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais
que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados através dos
meios de comunicação de massa). Tem-se o chamado “populista judicial”, isto é,
o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões
judiciais (ou, mais simplesmente, a opinião pública construída pelos meios de
comunicação de massa), como forma de democratizar a Justiça aos olhos da
população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias
previstos no ordenamento. Assim, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a
hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que
podem ser reconstruídos através do processo.
Da racionalidade neoliberal
Também a compreensão do funcionamento da racionalidade
neoliberal, entendida como “nova razão de mundo” (Laval e Dardot), pode servir
para explicar porque tantos juízes decidem do mesmo modo: todos contrários à
Constituição. Com o empobrecimento subjetivo e a mutação do simbólico
produzidos pela razão neoliberal (os únicos objetivos são o enriquecimento dos
que já são ricos e a realização dos desejos do mercado, isso ao mesmo tempo em
que o egoísmo foi elevado a virtude), que leva tudo e todos a serem tratados
como objetos negociáveis, os valores da jurisdição penal democrática
(“liberdade” e “verdade”) sofrerem profunda alteração na subjetividade de
muitos juízes. Basta pensar, por exemplo, no alto número de prisões contrárias
à legislação (como nos casos de prisões decretadas com o objetivo de forçar
“delações”), nas negociações entre acusadores e acusados em que “informações”
(por evidente, apenas aquelas “eficazes”, ou seja, que confirmam a hipótese
acusatória) são trocadas pela liberdade dos imputados, dentre outras distorções
que levam a reiteradas decisões judiciais materialmente inconstitucionais.
A racionalidade neoliberal altera também as expectativas
acerca do próprio Poder Judiciário. Desaparece a crença em um poder
comprometido com a realização dos direitos e garantias fundamentais. O Poder
Judiciário, à luz da razão neoliberal, passa a ser procurado como um mero
homologador das expectativas do mercado (em especial, do mercado financeiro) ou
como um instrumento de controle dos indesejáveis, sejam os pobres, que não
dispõem de poder de consumo, sejam aquelas pessoas identificadas como inimigos
políticos do projeto neoliberal.
Conclusão
Na democracia, porém, os direitos fundamentais de todos
(culpados ou inocentes, desejáveis ou odiáveis) devem ser respeitados. A
atuação dos magistrados não pode ser pautada pelos desejos do mercado ou mesmo
das maiorias, sob pena de inviabilizar o direito das minorias e o conteúdo
substancial da democracia. O Poder Judiciário deve voltar a atuar como uma
garantia contra a opressão, inclusive contra abusos promovidos pela maioria.
Deve voltar a ser, portanto, contramajoritário.
Mais do que isso: para assegurar o direito de um, o Poder
Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário à vontade de todos os
demais. Dito de outra forma: os direitos fundamentais funcionam (ou deveriam)
como trunfos tanto contra as maiorias de ocasião quanto contra projetos
autoritários, e cabe (ou deveria caber) ao Poder Judiciário assegurar não só
esses direitos como também a própria democracia.
Em suma, a tradição em que os atores jurídicos estão
inseridos, as práticas autoritárias e conservadoras, a burocratização e a
adesão à racionalidade neoliberal são fatores que fazem com que vários juízes
constantemente produzam decisões equivocadas e não contem com a confiança da
sociedade brasileira. Percebido como uma agência estatal seletiva, voltada
somente aos interesses da elite (os detentores do poder político e do poder
econômico, certo que na atual quadra história o poder político e poder
econômico são exercidos pelas mesmas pessoas), incapaz de concretizar os
direitos da grande maioria da população, o Poder Judiciário passa por uma séria
crise de legitimidade. Crise agravada pelo fato de que as tentativas de
satisfazer a opinião pública, com a adoção de medidas judiciais que contam com
o apoio dos meios de comunicação de massa, tem resultado em violações aos
direitos fundamentais, que deixam de funcionar como limites à opressão do
Estado e das maiorias, colocando em risco a própria democracia.
Diante desse quadro, para evitar frustrações, é importante
reconhecer que o Poder Judiciário é incapaz de substituir a luta política. Os
membros desse poder, na condição de agentes políticos, devem reconhecer essa
luta. Para tanto, precisam se interpretar, compreender o contexto em que atuam,
seus preconceitos e suas limitações, como forma de romper com a tradição em que
estão inseridos e reconquistar a legitimidade perdida (quiçá construir uma
legitimidade que nunca existiu). Impõe-se, pois, trabalhar pelo resgate da
política como meio de satisfação das potencialidades humanas e, ao mesmo tempo,
atuar sempre voltados à concretização do projeto constitucional e ao respeito
aos limites legais e éticos impostos pelo Estado Democrático de Direito. Isso,
por sua vez, significa assumir a função do Poder Judiciário no jogo
democrático, de assegurar o respeito aos direitos fundamentais e acomodar os
conflitos, e zelar pela divisão das responsabilidades nesse processo de
reconstrução da democracia brasileira.
RUBENS R.R. CASARA é
juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências
Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz.
Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano
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