Em 1933, os nazistas chegam ao poder na Alemanha através
do voto democrático. Imediatamente, devotam-se à destruição da democracia e à
implantação do regime totalitário mais odioso da História da humanidade.
No mesmo ano, as claques de “choque” de Hitler, atearam
fogo ao Parlamento Alemão, já que eram lá mais que minoritários. Thomas Mann, o
maior dos escritores alemães do século XX, decidiu se exilar de seu País, onde
foi o primeiro autor a ter seus livros queimados em praça pública.
Uma das mais importantes obras primas do grande mestre
foi, sem dúvida, o romance “Dr. Fausto”. Escrito no exílio e publicado apenas
em 1956, espelha uma visão amadurecida de todo o processo em que as liberdades
e instituições da democracia foram sendo demolidas. Primeiramente pelas forças
reacionárias em confronto com o crescimento do movimento operário e,
posteriormente, totalmente destruídas pelas forças do lumpenzinato
nazifascista, sob a bandeira do patriotismo, com apoio financeiro dos grandes
monopólios econômicos, bancos, a indústria química e a armamentista.
“Os estrangeiros verdadeiros, contra os quais os bens
sagrados da civilização devem ser protegidos, são eles, os nazistas! Apenas uma
parte pequena e corrupta da classe superior, uma corja de traidores para quem
nada é mais sagrado que o dinheiro e as vantagens, trabalham com e para eles”.
As peripécias do grande livro se desenvolvem num período
histórico de aproximadamente vinte e cinco anos, entre 1920 e 1945, cobrindo
desde a desagregação da República Democrática de Weimar até o esmagamento da
Alemanha nazista.
O narrador, professor Serenius, anotará: “A supremacia das
classes inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal
quando a comparo com o domínio da escória (nazista). Ao contrário que eu saiba
jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução russa emocionou-me
profundamente e a superioridade histórica de seus princípios em confronto com
os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era evidente... A
verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo
de denominar de domínio da escória, pois a ela se misturam, a fim de
conservarem por mais tempo seus privilégios”.
Um patriotismo degenerado firmou-se em um Estado
sanguinário, que para citar uma expressão de Lutero, “pendurou em seu pescoço”
o peso de crimes incomensuráveis com seus apelos berrados, com suas
proclamações aniquiladoras dos Direitos do Homem, o que provocou nas multidões arroubos
de imensa felicidade.
Ainda nos alerta: “Certa gente não deveria falar em
liberdade, razão e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de
decência.”
Para Thomas Mann, o adepto das luzes, o termo e o conceito
“povo” sempre conserva qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões e
ele sabe que basta apostrofar a multidão de povo para induzi-la à maldade
reacionária. “Falo do povo, porém daqueles impulsos populares de natureza
arcaica, que existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como
penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com
segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da
ciência humanística, do ideal do homem livre e belo.”
No nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um
abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a
coletividade. Um grito de horror surge em “Dr. Fausto” sob a forma de uma
composição musical do maestro dodecafônico Leverkun: “nesse momento só uma
única música pode servir-nos, somente ela corresponderá a nossas almas: a
lamentação do filho do Inferno, a lamentação humana e divina, que, partindo do
indivíduo, mas ampliando-se cada vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se
do Cosmo, há de ser a mais horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma
lamentação, um ‘De produndis’!”
Acontece que o tipo de mundo criado pelo nazi fascismo era
ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores
ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficaram
inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente
diferente do que tiveram nos séculos precedentes. “Desarraigados da pálida
teoria, seriam relativizados, abastecidos de sangue e em seguida submetidos a
uma instância muito superior à da força, da autoridade, da ditadura da fé, de
uma forma que igualaria uma regressão muito inovadora da Humanidade em direção
a estados e condições teocráticos- medievais.”
O dogmatismo é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde
quer que haja Teologia, o Diabo também deva entrar no quadro, preservando sua
autenticidade complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu. O
povo seguramente nunca fez isso. Sempre sentiu maior intimidade com a imagem
brutal, obscenamente humorística, do Diabo do que com a Majestade Suprema.
A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de
representarem o progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro
tornar-se-iam a mesma coisa. Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia
ao pensamento a licença de legitimar a força, “assim como uns seiscentos anos
antes, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma”, numa
referência à Reforma Luterana.
Mitos populares, ou melhor, mitos adaptados à consciência
das massas, tornar-se-iam, doravante, veículos do pensamento político: fábulas,
quimeras, visões fantasmagóricas que não necessitem de base alguma de verdade,
na razão, mas que se mostrassem criativas determinando o rumo da vida e da
História.
A violência opunha-se à verdade! Entendia-se que através
dela que o destino da verdade muito se assemelhava ao do indivíduo e até se
identificava com ele, pois ambos enfrentavam a desvalorização. Abria-se ironicamente
um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a verdade e a
coletividade. Esta com primazia sobre aquela, que a meta deveria ser esta, e os
que quisessem se integrar à coletividade alemã teriam que despojar-se de boa
parte da verdade e da ciência, preparando-se para o sacrifício do intelecto.
O pedagogo, por exemplo, sabia que, sob o nazi fascismo já
existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender letras e
soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras inteiras e de
ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava, em certo
sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a nenhuma
língua e, de alguma forma, um retorno à ideografia dos povos primitivos. A
disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em
pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o
exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à
barbárie.
O professor Serenus, que se abstivera de combater o
nazismo quando ele surgira, ao final do romance realizará um "mea
culpa" de sua omissão, retroagindo à Advertência de 1937: “Será que
voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a ideia de uma cultura na qual a
reverência às divindades das profundezas se une ao culto ético de olímpica
razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de mim, receio que nessa
década selvagem se haja criado uma geração que entenda a minha linguagem tão
pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou por demais estranha
para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria Alemanha, esse país
desventurado, tornou-se estranho, justamente em virtude do fato de eu ter-me
abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na
solidão.”
Serenus ainda prevê, no início da ação dos nazistas no
poder, que “chegaria o dia em que se legitimasse, por razão de higiene nacional
e racial, a não conservação dos elementos mórbidos, a eliminação em grande
escala dos ineptos para a vida e dos débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção
da rejeição de qualquer efeminação humana, produto da era burguesa, um esforço
intensivo por tornar a Humanidade capaz de enfrentar tempos sombrios,
desdenhosa de sentimentos humanitários, mais próximos daquela fase obscura que
precede a origem da Idade Média”.
“Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola
do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada,
apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de
teorias!”
Finalmente, parecendo prever os tempos que vivemos no
século XXI, questionará: “Será compunção mórbida perguntar como, no futuro, a
Alemanha, sob qualquer aspecto, poderá atrever-se a abrir a boca em assuntos
concernentes à Humanidade?”

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