Parece que nos dias atuais os criminalistas só falam em
"lava jato". Sim, é verdade. Chega a ser maçante. Entretanto, também
é verdade que na aludida operação houve imensuráveis prejuízos aos institutos
jurídicos, que, em alguns casos, foram deturpados pelo poder público e
utilizados em verazes perseguições de indivíduos processados, tornando-os
inimigos da opinião pública em verdadeira — e menosprezável — espetacularização
midiática do processo penal.
Faz-se importante, após tal declaração, afirmar que não
critico o combate à criminalidade, o combate à corrupção, mas, sim, os meios
pelos quais este combate é feito, uma vez que, se operarmos tecnicamente pela
lógica de que “os fins justificam os meios”, colocamos em risco o Estado
Democrático de Direito.
Não faz muito tempo que o termo lawfare ficou popular em nosso Direito Penal. Mas o que isso
significa? Em uma tradução livre, seria “guerra jurídica”[1]. Significa,
entretanto, a utilização das leis ou recursos jurídicos, deturpando-os, para
atingir determinada pessoa ou grupo de pessoas, eleito ou eleitos como inimigos
públicos, geralmente com a finalidade de perseguição política.
A teoria do domínio do fato, criada pelo pai do finalismo,
Hans Welzel[2], e desenvolvida principalmente em estudo monográfico por Claus
Roxin, na Alemanha, em 1963, tem sido deturpada e utilizada pelo poder público,
no bojo da operação "lava jato", para prática do lawfare.
De acordo com o citado Roxin[3], o elemento diferenciador
entre autor e partícipe está no domínio da ação, sendo, pois, autor quem assume
o protagonismo da empreitada criminosa, possuindo o domínio da conduta, seja
ele executor ou não.
Partícipe, na dicção da teoria, é quem contribuiu para a
prática da empreitada criminosa, embora não tenha poder de direção sobre a
conduta delituosa[4].
De forma sintetizada, o controle — ou domínio — do fato
pode se dar pelo domínio da ação (o agente pratica ele mesmo o verbo nuclear do
tipo penal); domínio da vontade (o agente, embora não pratique diretamente o
verbo nuclear do tipo penal, tem o controle da vontade de quem executa, onde,
neste caso, o executor é tido como mero instrumento do delito. Trata-se da
autoria mediata); e, por fim, o domínio funcional do fato (o agente desempenha
função indispensável ao sucesso do delito, onde cada função é dividida entre os
comparsas)[5].
Deve perceber que, tratando-se de autoria mediata, há de
ser ter a prova — e quando digo prova refiro-me àquela produzida sob o crivo do
contraditório, nos termos do artigo 155 do Código de Processo Penal — de que o
mandante possui consciência da empreitada criminosa, agindo ativamente na
consecução do delito.
O que está ocorrendo, na prática, é a confusão —
intencional, talvez —, pelo Poder Judiciário brasileiro, da teoria do domínio
do fato com a teoria do domínio da organização, utilizando, de maneira
deturpada, a teoria de Roxin como argumento de autoridade para embasar decisões
típicas de lawfare.
A importante teoria do domínio do fato não se presta para
responsabilizar determinada pessoa pela mera posição de destaque no interior de
uma estrutura hierárquica, tal pensamento é ofensivo ao trabalho de Roxin. Além
de ocupar certo cargo, tem que se provar que o acusado emitiu a ordem, quis o resultado.
Exemplo claríssimo da aplicação do lawfare, utilizando a
teoria do domínio do fato indevidamente, é o caso da apelação criminal[6]
impetrada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no TRF-4, pelo caso do
triplex em Guarujá, onde os desembargadores, nos votos, deturparam o conceito
da teoria, visando justificar uma sentença condenatória carente de provas.
Para se ter noção da péssima aplicação da teoria do
domínio do fato pelo Judiciário brasileiro, o próprio Claus Roxin, em
entrevista, em 2012, para a Folha de S.Paulo[7], relatou:
Folha — É possível usar a teoria para fundamentar a
condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua
posição hierárquica?
Roxin — Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no
topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma
ordem. Isso seria um mau uso. (...) A posição hierárquica não fundamenta, sob
nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa
construção ["dever de saber"] é do Direito anglo-saxão e não a
considero correta. (grifei)
Cada vez mais a jurisprudência pátria relativiza garantias
constitucionais em prol da incompetência ministerial em se desincumbir do ônus
de provar a autoria do acusado durante sumário da culpa. É absurdo. Algo
odioso, que não podemos corroborar.
Ora, parece que ser processado criminalmente, sob os
incansáveis holofotes midiáticos, com informações vazadas para mídia pelo
próprio órgão acusador[8], gerando forte anseio social pela condenação, não basta
para o Judiciário brasileiro, tem-se, ainda, que relativizar o dever do
representante ministerial de provar a culpa do acusado, sob o crivo do
contraditório, deturpando teorias e debitando a incompetência estatal na conta
do acusado. É época de inversão de valores e conceitos.
O Judiciário brasileiro não deve, nunca, se curvar a
pressões populares como forma de emitir provimentos jurisdicionais. O
Judiciário brasileiro não deve, nunca, mormente em tempos de crise,
preocupar-se com a imagem midiática da instituição. Alguns cidadãos que assim
pensam devem expurgar de suas mentes tais delírios.
Já disse muito e continuo reafirmando, em minhas
sustentações, que magistrado é escravo da lei e da Constituição, magistrado não
é combatente da criminalidade ou símbolo nacional de combate à corrupção,
magistrado tem o dever de aplicar o Direito ao caso concreto, motivando todos
os seus provimentos jurisdicionais em letra expressa de lei, máxime em processo
penal, curvando-se ao da legalidade.
Acontece que, atualmente, para prática de lawfare, tem-se
distorcido a letra da lei para praticar arbitrariedades, objetivando, talvez,
suprir anseios populistas e pressões midiáticas, o que prefiro não acreditar,
porque, se assim for, atestar-se-ia a incompetência institucional.
Objetivando a demonstração prática do lawfare em nosso
processo penal atual, cito alguns exemplos da tenebrosa prática no aludido
processo do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva[9], a começar
pelo espetacularização midiática em rede nacional da (i) condução coercitiva de
Lula, para prestar depoimento, no dia 4 de março de 2016[10], ordem emitida
pelo atual ministro da Justiça, Sergio Moro, sem qualquer previsão legal no
ordenamento jurídico pátrio; (ii) apresentação em rede nacional, por Deltan
Dallagnol, da denúncia contra o ex-presidente, utilizando, inclusive,
apresentação de PowerPoint[11]; (iii) o vazamento intencional pelo atual
ministro da Justiça de interceptação telefônica entre Lula e a ex-presidente
Dilma Rousseff[12]; (iv) interceptação telefônica entre advogado e cliente,
autorizada pelo atual ministro da Justiça[13], que, posteriormente, teve
ordenada a destruição das gravações pelo TRF-4[14], além de inúmeros outros
exemplo ínsitos na operação.
A instabilidade das instituições jurídicas nacionais nos
dias atuais é um fato notório e inegável[15] e, indubitavelmente, reflexo de
decisões judiciais tomadas sem supedâneo legal, de maneira populista e
cosmética para a ansiosa e depravada mídia brasileira.
Vivemos um momento sombrio, em que garantias são
relativizadas — por pura incompetência estatal em cumprir o devido processo
legal — em prol de uma cega busca pela exposição de delitos.
Existe, conforme demonstrado, grande perigo na utilização
da teoria do domínio do fato, assim como de outros institutos jurídicos, de
forma absolutamente deturpada, algo que nós, operadores do Direito, não podemos
permitir, sob pena de ruir o que tanto lutamos para conquistar.
As coisas não vão bem na atual conjuntura do processo
penal brasileiro e ouso dizer que, se o futuro da advocacia criminal seguir
este lado obscurantista que estamos atualmente inseridos, temo preferir não
conhecê-lo.
[1] DUNLAP JR,
Charles. Lawfare, in NATIONAL SECURITY LAW 823 (John Norton Moore and Robert F.
Turner, eds., 3rd ed. 2015). Does Lawfare Need an Apologia? 43 CASE WES. RES.
J. INT’L L. 121 (2010). Ver mais detalhes em:
https://law.duke.edu/sites/default/files/cv/c_dunlap_cv_2016current.pdf.
[2] WELZEL, Hans.
Derecho Penal, parte general. Ed. Roque Depalma. Buenos Aires, 1956, p. 105.
[3] ROXIN. Claus.
Autoría y dominio del hecho em derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2000, p.
151.
[4] WELZEL, Hans.
Derecho Penal, parte general. Ed. Roque Depalma. Buenos Aires, 1956, p. 119.
[5] BITENCOURT,
Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. Ed. Saraiva, São Paulo,
2015, p. 558
[6] Autos nº
5046512-94.2016.4.04.7000
[7]
https://www.conjur.com.br/2012-nov-11/claus-roxin-teoria-dominio-fato-usada-forma-errada-stf
[8]
https://www.conjur.com.br/2019-mar-23/procurador-divulga-fotos-provas-colhidas-casa-investigado
[9] Autos nº
5046512-94.2016.4.04.7000
[10]
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1746437-conducao-coercitiva-de-lula-foi-decidida-para-evitar-tumulto-diz-moro.shtml
[11]
https://www.conjur.com.br/2017-dez-20/power-point-dallagnol-nao-ofendeu-honra-lula-afirma-juiz
[12]
http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/03/pf-libera-documento-que-mostra-ligacao-entre-lula-e-dilma.html
[13]
https://www.conjur.com.br/2016-mar-17/25-advogados-escritorio-defende-lula-foram-grampeados
[14]
https://www.conjur.com.br/2018-mar-14/trf-ordena-destruicao-grampos-ramal-advogados-lula
[15]
https://epoca.globo.com/em-brasilia-manifestantes-pro-governo-se-vestem-de-lagosta-para-protestar-contra-stf-23695075
Mathaus Agacci é
advogado criminalista, sócio do Agacci & Almeida Advocacia.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-mai-30/mathaus-agacci-uso-distorcido-teoria-dominio-fato
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