Guerras, catástrofes e crises são cada vez mais
necessárias ao capitalismo. A capacidade de produzir, acumular e circular
valores a partir da desgraça e do infortúnio explica, em muito, o sucesso de um
modelo que muitos acreditavam estar fadado a desaparecer a partir de suas contradições.
O ato de destruir, para em seguida reconstruir, torna-se natural e, ao mesmo
tempo, pode ser tido como fundamental à manutenção de uma estrutura em que até
a dor e o sofrimento acabam transformados em mercadorias.
Não por acaso, hoje, vários retrocessos são percebidos em
todo o mundo (não se pode, porém, descartar que o Brasil ocupe uma posição de
destaque na dinâmica mundial como um laboratório em que se testa a mistura
entre conservadorismo, ultra-autoritarismo e neoliberalismo). Voltar para evitar
o fim, repetir e reconstruir para lucrar a qualquer custo, isso em um espiral
infinito.
Para compensar o caos social, produzidos em razão da
adoção de medidas neoliberais, os detentores do poder econômico estimulam
promessas e discursos que satisfazem um imaginário que projeta o retorno a um
passado idealizado de segurança (um passado que, na realidade, nunca existiu e
que constitui o que Zygmunt Bauman chamou de retrotopia). Um passado que pode
ser identificado com a ditadura empresarial-militar brasileira instaurada em
1964, transformada em mais uma mercadoria que promete segurança contra os
inimigos, ainda que imaginários (como o comunismo em 1964 e, novamente, em
2018).
Retrocessos, como o retorno de práticas inquisitoriais e a
substituição da política pela religião, ou mesmo o abandono tanto do projeto da
modernidade (sintetizado nos valores “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”)
quanto dos limites democráticos (e o principal desses limites era a necessidade
de respeitar os direitos e garantias fundamentais), tornam-se oportunidades de
negócios cada vez mais lucrativos.
No grande supermercado da pós-democracia, nessa imagem do
Deus-Mercado que revela a agonia de uma civilização, são encontrados (e
vendidos) antídotos para o fundamentalismo religioso ao lado de produtos para
fanáticos religiosos, armas ao lado de bíblias, feminismos domesticados,
marxismos conformistas, obras de religiosos “cristãos” que defendem a tortura e
a violência ou de “intelectuais” que ainda contestam o heliocentrismo e a
teoria da relatividade.
Para Marx, as forças produtivas (meios de produção, força
de trabalho, modo de trabalho etc.), que se desenvolveriam continuamente,
tenderiam a entrar em contradição com as relações de produção dominante
(propriedade e dominação), o que acabaria por provocar mudanças nas relações de
produção e, em dado momento, o fim do capitalismo. Não contava o velho Marx com
o fato de que a mudança acabaria por se dar no campo das forças produtivas, em
especial na dimensão humana da equação. O trabalhador tornou-se cada vez mais
dispensável, mas a principal mudança, fruto de uma racionalidade que transforma
tudo em mercadorias e busca o lucro ilimitado, foi a transformação do sujeito
potencialmente transformador em um completo idiota.
Trata-se de um movimento que ameaça os pilares da
civilização e que tende a levar ao progressivo desaparecimento do Homo sapiens
sapiens e ao colapso civilizatório, com o concomitante surgimento de uma nova
espécie a que Vittorino Andreoli, por simetria, sugere chamar de Homo stupidus
stupidus.
A hipótese que gostaria de levantar aqui é simples: para a
manutenção do capitalismo é necessário que as pessoas pensem cada vez menos. O
empobrecimento da linguagem, a dessimbolização e a correlata transformação de
tudo e todos em objetos negociáveis são fenômenos que funcionam como verdadeira
condição de possibilidade para naturalizar diversas opressões (classe, gênero,
raça, plasticidade, etc.), conviver com as guerras e outras formas de
destruição planejadas no interesse de grandes corporações, aceitar mortes
evitáveis, remédios caríssimos e prisões desnecessárias (daqueles que não
interessam ao projeto neoliberal), enquanto lucros obscenos passam a justificar
a pobreza extrema.
Não faltam “causas” para a emergência do Homo stupidus,
desde a produção da indústria cultural até os algoritmos, passando por próteses
de pensamento (basta pensar na importância da televisão na formação cultural
brasileira) e instituições como as igrejas (que aderiram tanto à teologia da
prosperidade quanto a uma visão teológica empobrecida da luta entre o bem e o
mal), criou-se uma espécie de racionalidade que condiciona e pressiona à
conformidade, naturaliza o empobrecimento da linguagem e leva à crença de que a
simplificação do pensamento é uma dádiva e não a maldição que está levando à
agonia da civilização.
Aqui, peço licença ao leitor para um breve esclarecimento:
conheço a advertência feita por Robert Musil de que quem se aventura a escrever
sobre temas como a “estupidez” e a “idiotice” corre o risco de ser interpretado
como presunçoso ou até mesmo passar como portador de um distúrbio cognitivo
similar ao daqueles sobre os quais escreve. De fato, existem exemplos de
perfeitos idiotas que escreveram sobre a figura do“idiota” (livros, importante
dizer, que tiveram ampla aceitação entre idiotas).
Porém, a estupidez e a idiotice, em especial diante da
emergência do Homo stupidus stupidus, são fenômenos que devem ser levados a
sério e precisam ser objeto de reflexão e estudo aprofundado.
Não são poucos os exemplos históricos de idiotas que foram
ignorados até produzirem muitos danos à civilização. Muitas pessoas que
inspiravam risos, em pouco tempo, nos fizeram chorar. Alguns chegaram a ser
eleitos para cargos importantes, outros passaram em concursos público nos quais
a reflexão e o pensamento crítico não se faziam necessários: todos exerceram
poder… de forma idiota e com consequências trágicas. Há, portanto, de se
considerar a idiotice como um importante fator político, isso porque, diante do
processo de idiotização da população, ela assegura uma significativa base
demográfica e eleitoral.
Feita a pausa, vale recorrer à etimologia. Idiota é uma
palavra que tem origem no grego antigo para designar um “cidadão privado”, ou
seja, alguém que se apartasse da vida pública, um indivíduo incapaz de entender
a importância da comunidade e de agir de acordo com o “comum”. A palavra
“estúpido”, por sua vez, tem origem no latim stupidus que significa a pessoa
sem ação, inerte, incapacitado. A racionalidade neoliberal deseja indivíduos
apartados da vida pública e inertes para que não prejudiquem os negócios e a
acumulação tendencialmente ilimitada de capital. O Homo stupidus não só é mais
facilmente explorado como também é o modelo de consumidor ideal, acrítico e
domesticado.
No mundo do Homo stupidus stupidus, o egoísmo é percebido
como virtude enquanto o “comum” acabou demonizado. Há uma regressão que pode
ser percebida nas interações sociais, na dificuldade de argumentação, na
capacidade de apreender e seguir normas éticas e jurídicas. Mas, não é só.
Tem-se o declínio da verdade e o desaparecimento da objetividade, ou melhor, a
perda de importância dos fatos, da ciência e da reflexão em um mundo em que, ao
lado das fake news, ganham prestígio a
ciência falsa (por exemplo, os negacionistas das mudanças climáticas e da
eficácia das vacinas), a história falsa (no Brasil, temos os negacionistas da
ditadura instaurada a partir de 1964) e até perfis falsos nas redes sociais que
ganham “likes” igualmente falsos que se somam aos “likes” dos idiotas.
Se o Homo sapiens sapiens, que surgiu há mais de trezentos
mil anos na África, se caracteriza pela linguagem, pelo raciocínio abstrato,
pela introspecção e pela resolução de problemas complexos, o Homo stupidus
stupidus pode ser identificado por seu pensamento extremamente simplificado, estereotipado
(com a repetição de chavões e slogans), pelo uso de uma linguagem empobrecida e
pela incapacidade de reflexão e raciocínios complexos. Enquanto o Homo sapiens
busca a verdade, inclusive sobre si mesmo, uma vez que tem por características
a autoconsciência, o desejo de saber e a racionalidade, o Homo stupidus
contenta-se com aquilo que confirma as certezas a que previamente aderiu. O que
hoje se chama “pós-verdade” é a verdade do Homo stupidus.
Porém, vale lembrar com Carlo M. Cipolla, que uma pessoa
estúpida é capaz de causar danos a outras pessoas ou grupos de pessoas sem
auferir qualquer vantagem para si mesmo (podendo, inclusive, suportar perdas em
razão de sua ação). O Homo stupidus acredita estar livre de coações externas e
de restrições impostas por terceiros. Ele foi levado a acreditar e a agir como
um empresário-de-si, cujo sucesso econômico (o único que ele reconhece) depende
apenas de seus próprios méritos (incapaz de perceber o sujeito que se encontra
ao lado como um eventual aliado na construção ou manutenção de algo em comum,
trata as demais pessoas como concorrentes ou inimigos). Não percebe que, em
razão da racionalidade neoliberal, acaba mais explorado (e, agora, se trata de
uma auto-exploração que se sustenta na ignorância e leva à depressão e a outras
doenças psíquicas) do que era o antigo proletário, que pelo menos tinha a
possibilidade de adquirir consciência de classe e de sua exploração. Essa
capacidade de refletir sobre a sua condição, que faz do homem sapiens, é
indispensável à construção de um mundo melhor em que os valores da liberdade,
da igualdade e, principalmente, da fraternidade voltem a importar no projeto
normativo da sociedade.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor.
Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do
Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a
Democracia e do Corpo Freudiano
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