O ofendido (ou vítima) corresponde ao sujeito passivo
(imediato)[i] do delito, isto é, ao titular do bem jurídico lesionado ou
exposto ao risco de lesão pela prática criminosa de terceiro. Assim podem ser
considerados a pessoa física (ex.: estupro) e jurídica (ex.: furto), bem como o
próprio Estado (ex.: corrupção passiva) e até mesmo sujeitos tão indefinidos ou
fluidos quanto a coletividade (ex.: crimes ambientais) ou a sociedade (ex.:
crimes contra a paz pública).[ii]
A vítima tem uma disciplina bastante tímida na atual
legislação processual e, no tocante à fase de investigação criminal,
praticamente nula. O seu regramento mais detido, que compreende apenas um
artigo de lei, pode ser encontrado no capítulo V do título VII do CPP ao tratar
da prova processual penal, aplicado por analogia à fase de inquérito policial.
Em verdade, isso diz muito a respeito do lugar ainda
reservado ao ofendido no sistema processual penal brasileiro, visto
prioritariamente como meio de prova ou fonte de informação. Não seria exagero
afirmar que infelizmente aquela pessoa física considerada vítima do crime segue
importando muito mais ao modelo de persecução penal pelo que pode dizer a
respeito do caso sob apuração do que pela violência experimentada contra si em
virtude do fato criminoso.
Não sem motivo a crítica criminológica recupera as noções
de vítima enquanto “duplas perdedoras”[iii], “notas de rodapé do processo
criminal” [iv] ou “persona estranha” ao duelo processual. [v] Alguém que ocupa
uma “posição extremamente débil” no sistema de justiça criminal.[vi] Um sujeito
absolutamente secundário, expropriado de suas faculdades, no modelo de
persecução penal pública,[vii] gravado historicamente pelo “confisco dos
conflitos (do direito lesionado da vítima)”[viii].
É justamente a esse sujeito, ou melhor, a essa fonte de
informação que a autoridade policial vai recorrer, na maior parte dos casos,
como uma de suas primeiras providências investigativas criminais. Em se
tratando de crime praticado contra pessoa jurídica, caberá ao seu representante
legal essa declaração. Por óbvio, naquelas hipóteses em que o sujeito passivo é
coletivo (crimes vagos) ou, embora individualizado, a pessoa física
(específica) não tenha sido localizada ou já se encontre falecida, a sua oitiva
resta prejudicada.
Vale destacar que o ofendido, na estrutura do CPP de 1941,
embora tenha um dever legal de colaboração com a instrução do caso, [ix] não
fica submetido ao mesmo regramento aplicável à testemunha, [x] até mesmo
porque, enquanto vítima, seria impossível considerá-lo juridicamente um
terceiro desinteressado. [xi]
Quanto à oitiva, em si, uma observação preliminar bastante
importante. Embora não haja qualquer elemento de informação que mereça crédito
absoluto ou valoração privilegiada, inegável que as palavras da vítima “devem
ser recebidas com grande reserva”. [xii] Afinal de contas, se o injusto penal
realmente tiver ocorrido, trata-se de sujeito diretamente afetado pela conduta
criminosa e, portanto, com marcas importantes no âmbito da subjetividade. Há,
por óbvio, uma expressão do relato da vítima a partir de seus próprios desejos,
muitas vezes inconscientes, aflorados pela experiência conflitiva (o fato
criminoso) e a necessidade de reprodução histórica sob a forma de declaração no
contexto da justiça criminal.
Segundo Lopes Jr., não se pode ignorar a relação da vítima
com o caso penal, do qual faz parte, o que gera interesses (diretos) na
persecução criminal, os quais podem se manifestar em diferentes sentidos, tanto
para beneficiar o imputado (ex.: por medo) como também para prejudicar um
inocente (ex.: vingança pelos mais diversos motivos). Além desse
comprometimento material, existe, ainda, a disciplina processual, que desobriga
o ofendido de prestar compromisso de dizer a verdade, abrindo-se a porta para
eventuais mentiras impunes. [xiii] Nesse viés, há quem fale em "uma
suspeita objetiva de parcialidade" quanto às declarações da vítima.[xiv]
A doutrina especializada aponta que a oitiva do ofendido é
muito similar à do imputado, uma vez que está em jogo o mesmo interesse que o
investigado/acusado, porém em sentido contrário. O mais comum de se imaginar é
que, se alguém formaliza uma notícia crime ou apresenta uma acusação em juízo
com imputação delitiva a terceira pessoa, manifestando interesse na persecução
penal, justo porque busca a condenação do imputado. Logo não pode figurar como
testemunha. Ademais, tem-se na vítima um protagonista dos fatos em questão. Por
consequência, flagrante interesse na reconstrução narrativa do evento, o que já
enseja por si só consideráveis riscos à instrução do caso penal, bastante
semelhantes aos existentes por ocasião do interrogatório do
investigado/acusado.[xv]
Por tudo isso, defende Hassan Choukr uma nova compreensão
a respeito da oitiva do ofendido como fonte informativa excepcional da
persecução criminal, com vistas a: i) "diminuir a exposição reiterada da
vítima aos danos psicológicos do processo ou da investigação, bem como, em
situações mais rumorosas, ao impiedoso assédio da mídia (vitimização secundária
ou terciária)"; ii) "exigir dos responsáveis pela
investigação/acusação que elevem seus padrões de colheita de vestígios,
indícios, fontes e meios de prova".[xvi]
De fato, em busca de um novo lugar à vítima no sistema
processual penal, [xvii] indispensável repensar a sua instrumentalização
abusiva e exploratória, não apenas endoprocedimental (isto é: nos autos do
inquérito policial ou processo penal), mas também no contexto social em geral.
Por vezes, até mesmo situações aparentemente favoráveis às vítimas, em um
primeiro momento, como a (hiper) valorização de seu relato em crimes às
escondidas, podem funcionar como gatilhos de sobrevitimização, na medida em que
acabam profundamente exploradas de forma vulgar (atécnica) e como recurso único
de apuração.
Aliás, segundo Jordi Fenoll, nessas situações de
clandestinidade delitiva, tendo a vítima como a única pessoa a presenciar os
fatos, bastante recorrente em crimes contra a dignidade sexual (ex.: estupro), imprescindível
a corroboração de seu relato diante de outros elementos informativos. Ademais,
Fenoll sustenta que a forma mais apropriada de declaração da vítima em casos
desse tipo, não apenas quando envolver menor de idade, seja por meio de um
profissional especializado, isto é, um “psicólogo do testemunho”. Nessa linha,
tem-se que o relato deveria ser tomado por meio de uma “entrevista cognitiva”
entre o psicólogo e a vítima, com a produção, ao final, de um parecer a
respeito do que fora observado, bem como das conclusões técnicas do
profissional (psicólogo do testemunho) a respeito da credibilidade da
declaração apresentada pelo ofendido. [xviii]
Há, por óbvio, outras interessantes propostas no campo da
psicologia jurídica como a entrevista autoaplicada [xix] e os diferentes
protocolos de entrevista estruturada para investigação de violência sexual
infantil com destaque ao NICHD[xx], tudo com o fito de estabelecer ferramentas
mais adequadas à coleta e valoração das informações prestadas pelas vítimas (e testemunhas)
a partir da (problemática) memória humana[xxi].
De fato, é preciso rever as atuais práticas, [xxii] bem
como promover alternativas concretas de redução de danos, a partir da
conjugação entre sistemática processual acusatória e psicologia do testemunho,
a fim de evitar os inúmeros (e aberrantes) erros investigativos e
judiciais[xxiii] que assolam o modelo brasileiro.
[i] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal:
parte geral. v. 1. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 293.
[ii] BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. 01
ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 736.
[iii] CHRISTIE, Nils.“Conflict as Property”. British
Journal of Criminology, v. 17(1), 1977, p. 1-15 apud GIAMBERARDINO, André
Ribeiro. Um Modelo Restaurativo de Censura como Limite ao Discurso Punitivo.
2014. 230 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em
Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p. 27.
[iv] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre
o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 31 apud GIAMBERARDINO,
André Ribeiro. Um Modelo Restaurativo de Censura como Limite ao Discurso
Punitivo. 2014. 230 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação
em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p. 27.
[v] CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria
do Processo Penal Brasileiro: dogmática e crítica. v. I: conceitos
fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 402.
[vi] HULSMAN, Louk. Alternativas à Justiça Criminal. In:
PASSETTI, Edson. Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan,
2004, p.46.
[vii] MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal: parte general:
sujetos procesales. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p. 582, 583.
[viii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito
penal. v. 1. 03 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 385.
[ix] Segundo Bento de Faria, as declarações do ofendido
não seriam propriamente “meio de prova, mas um auxílio prestado à justiça”
(FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. v.1. Rio de Janeiro: Livraria
Jacintho, 1942, pp. 259-260). Sublinhe-se, ainda, que, nos termos da legislação
em vigor, a vítima que, regularmente intimada para prestar declarações, deixar
de comparecer sem motivo justo, poderá ser conduzida (coercitivamente) à
presença da autoridade (art. 201, § 1º, do CPP).
[x] O ofendido, ao contrário da testemunha, em geral, não
presta compromisso de dizer a verdade e, portanto, não pode ser alcançado pelo
delito de falso testemunho (art. 342 do CP). A depender do caso, no entanto,
essa falta de verdade do ofendido pode dar ensejo ao crime de denunciação
caluniosa (art. 339 do CP).
[xi] Há, inclusive, uma diferença terminológica quanto à
rotulação dessas oitivas no modelo brasileiro. Diz-se tecnicamente que o
ofendido presta “declaração” (art. 201, caput, CPP) enquanto a testemunha
presta “depoimento” (art. 204, caput, CPP).
[xii] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo
Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 317.
[xiii] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 09
ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 649.
[xiv] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Comentários. Da
Prova. In: ___________________; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo
Henrique (Coord.). Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2018, p. 444.
[xv] FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal
Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires: EditorialBdeF, 2012, p. 242.
[xvi] CHOUKR, Fauzi Hassan. Iniciação ao Processo Penal.
01 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 93.
[xvii] BARROS, Flaviane de Magalhães. A Participação da
Vítima no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[xviii] FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho
Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires: EditorialBdeF, 2012, p. 243.
[xix] Registre-se, no entanto, que, segundo o próprio
autor, “a SAI© não parece apropriada para vítimas de crimes sexuais ou muito
violentos, já que é um meio muito impessoal de entrevista para casos tão
graves” (PINTO, Luciano Haussen; STEIN, Lilian Milnitsky. Nova ferramenta de
entrevista investigativa na coleta de testemunhos: a versão brasileira da
Self-Administered Interview©. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Revista
Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 1, p. 110-128, 2017. Disponível em:
.
Acesso em: 20 maio 2019).
[xx] WILLIAMS, Cavalcanti de Albuquerque et al.
Investigação de suspeita de abuso sexual infantojuvenil: o protocolo NICHD.
Temas em Psicologia, v. 22, p. 415-432, 2014. Disponível em:
.
Acesso em: 20 maio 2019.
[xxi] CECCONELLO, William Weber; ÁVILA, Gustavo Noronha
de; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir) repetibilidade da prova penal dependente da
memória: uma discussão a partir da psicologia do testemunho. UNICEUB. Revista
Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 1058-1073, 2018. Disponível
em: < https://www.rdi.uniceub.br/RBPP/article/view/5312>. Acesso em: 20
maio 2019.
[xxii] Confira, a esse respeito, a seguinte pesquisa
nacional: STEIN, L. M.; ÁVILA, G. N. Avanços científicos em psicologia do
testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses.
Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série
Pensando Direito, No. 59), 2015. Disponível em: .
Acesso em: 20 maio 2019.
[xxiii] Quanto aos dilemas probatórios ligados à memória
humana e os erros do sistema brasileiro de persecução criminal, disponíveis na
internet as excelentes palestras de Janaina Roland Matida e Antônio Vieira no I
Seminário Regional do IBADPP
(https://www.youtube.com/channel/UCtQzzjpXxuUv-CyT8yJccDw).
Leonardo Marcondes Machado é delegado da Polícia Civil de Santa
Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e
Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de
graduação e pós-graduação.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-mai-21/academia-policia-preciso-cautela-palavra-vitima-justica-criminal
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