Resumo:
O óbvio do óbvio: Se o STF existe para atender às maiorias, não precisamos de
ministros.
Wittgenstein
dizia que a filosofia é a sinopse de trivialidades. Não vou tão longe quanto o
austríaco, mas minha coluna de hoje honra sua concepção. Não estou aqui para
construir uma casa; só quero arrumar um dos quartos. Um dos quartos. Estou aqui
para trazer de volta algumas trivialidades. Nosso abismo é tão grande que,
orwellianamente, sinto-me na responsabilidade de reafirmar o óbvio. É triste
quando a realidade impõe que nossas pretensões tenham de ser tão banais. Tão
óbvias. Mas, como dizia Darcy Ribeiro, Deus é tão treteiro... que ainda
precisamos dessa classe de gente, os cientistas... para desvelar as obviedades
do óbvio.
Em
minha coluna anterior — na qual de novo tive de reafirmar a obviedade de que,
em uma democracia, x deve ser lido como x —, sustentei que, “ainda que
estivesse certo, o ministro Barroso estaria errado”. Com isso, quis rebater a
sua tese de que se o STF não "corresponder aos sentimentos da
sociedade" acabaria por "perder sua legitimidade".
O
que o ministro Barroso quer dizer, naturalmente, é que, se o STF não reforçar o
entendimento em favor da execução antecipada da pena, estará desmoralizado
perante a sociedade. Só que não é só isso. É mais grave: ele acaba por dizer
que é nada mais que natural que seja assim e, pior, que a legitimidade da
Suprema Corte está subordinada à aprovação moral(ista) das maiorias. De fato,
isso é grave. E é por isso que retomo o ponto.
E
retomo o ponto não como um ataque pessoal. Já que vivemos em tempos de
reafirmar o óbvio, assim o faço: tenho profundo respeito pelo ministro Barroso.
Ele sabe disso desde os tempos do Grupo Cainã, do qual participávamos junto com
Canotilho, Jacinto Coutinho, A. Nunes, Scaff, Lada, Fachin, Eros Grau e tantos
outros.
É
exatamente por respeitá-lo que me sinto na obrigação cívico-epistêmica de dizer
clara e diretamente quando — e quanto — penso que ele está errado. E quão
deletério para a democracia isso pode ser. E é exatamente por acreditar em
Barroso quando ele diz ser um democrata que penso ser necessário que se diga
quando, talvez sem querer, o ministro acaba por reforçar um dos grandes perigos
que assombram nossa já frágil democracia: a emotivização (do velho emotivismo
condenado por MacIntyre) do Direito.
Chega
uma hora em que é necessário parar, colocar a bola no chão, e dizer: “Esperem
aí, paremos um minuto. Olhemos bem para o que temos feito, para o caminho que
temos tomado, e reflitamos se é mesmo desejável que seja assim”. Acostumar-se
com o absurdo pode ser perigosíssimo, porque paramos de ver o absurdo como
absurdo. Esqueça que o errado é errado e o tempo faz com que ele pareça certo
aos olhos de todo mundo.
Quando
foi que virou normal, e aceita, a tese de que a legitimidade de um Supremo
Tribunal esteja atrelada ao que as pessoas pensam politicamente sobre ele? Isso
está rebatido até mesmo na metáfora das correntes de Ulisses e o canto das
sereias. Quando foi que se normalizou que um ministro da própria Suprema Corte
diga que ela deve corresponder aos sentimentos da sociedade, se a Constituição
é um mecanismo contramajoritário?
É
muito simples. Primeiro: “Sentimentos da sociedade”? O que é isso? Quer dizer
que só há pluralismo quando interessa? Que homogeneização ad hoc é essa? Quando
foi que os sentimentos da sociedade se tornaram assim tão convergentes de modo
a apontar à mesma direção? E existiria um “sentimentômetro” para medir esses
sentimentos?
Uma
Suprema Corte, leitores, existe exatamente para fazer valer a Constituição em
face das vontades da maioria. Porque, como bem disse Dworkin, democracia não é
(só) maioria; a regra da maioria não tem valor intrínseco. O majoritarianismo
pode, afinal, ser... antidemocrático.
Vejam:
se o ministro Roberto Barroso estiver certo, e sua tese for levada a sério, ele
está declarando a própria inutilidade da Corte. Porque, ora, se o Supremo lá
está apenas para atender às vontades flutuantes da maioria, não precisamos de
ministros. O Supremo já não serve pra nada. Substituamos o STF por uma urna (ou
pelo Data Folha), e resolvamos tudo por plebiscito. Já chegamos na época em que
prender ou não virou questão de opinião mesmo, então simplifiquemos o processo.
Pronto.
Alguém
dirá que estou exagerando. Certo. Mas será que estou exagerando tanto assim?
Vejamos: Deputados ameaçando fechar o Supremo com um soldado e um cabo.
Discute-se fortemente a revisão histórica de que 64 não foi golpe. Pior de
tudo: vê-se dia a dia o reforço da tese de que um Supremo Tribunal tem sua
legitimidade vinculada à aprovação subjetiva dos jurisdicionados. Mas, ainda
pior, é a notícia, veiculada pelo jornalista Ricardo Noblat (aqui), de que
generais pressionaram-ameaçaram o Supremo face ao julgamento da presunção da
inocência. Tremo só em pensar nisso... Você não, leitor?
Parafraseando
o genial Roberto Bolaño, durante um segundo de lucidez, percebemos que
enlouquecemos. Mas depois esse segundo de lucidez, dizia Bolaño, às vezes vem
um supersegundo de superlucidez, no qual percebemos que esse cenário é nada
mais que um resultado lógico das nossas vidas.
É
isso. Parece loucura, mas tudo isso é nada mais que o resultado daquilo a que
nós próprios demos causas.
Direito
virou questão de opinião. Emotivizamos tudo. E se isso parece loucura, e é, é
também nada mais que fruto de nossa fraqueza institucional, nosso deserto
epistêmico, nossa memória fraca, nossa covardia, nossa doutrina complacente
(que já não doutrina), nossa recusa a chamar as coisas pelos seus nomes. Somos
o país do assassinato que vira suicídio, do golpe que vira movimento, do
empregado que vira colaborador, do Tribunal contramajoritário que vira
plebiscitário.
Wittgenstein,
faço aqui aquilo que você (permita-me a intimidade) disse ser o papel do
filósofo. Eis uma sinopse da trivialidade: a legitimidade de uma Suprema Corte
está subordinada ao Direito, e é o Direito que corrige os problemas das
maiorias, e não o contrário.
Orwell,
faço aqui aquilo que você disse ser nosso papel em tempos de abismo. Eis uma
reafirmação do óbvio: Direito não é questão de opinião.
Vejam,
eu não estou pedindo demais. Não quero que o Supremo Tribunal salve o mundo.
Mas
não estou pedindo de menos. Eu quero que o Supremo Tribunal respeite o Direito,
e não capitule em face das ameaças. Espero que o STF desminta, logo, as
notícias de que está sendo pressionado. Não quero que o STF salve o Brasil;
quero apenas que o Brasil não sucumba face a uma inércia do STF, guardião da
Constituição.
A
crise institucional é agravada se as instituições não respeitarem a si
próprias. Ministros, desembargadores, juízes, PGR: nós precisamos de vocês. Não
cedam. Não cedam às maiorias, mas também não cedam à própria barbárie interior
da modernidade. Lutamos muito para que o poder fosse filtrado pelo Direito.
Onde a lei disser x, leiam x. Não é a democracia que assegura o Direito; é o
Direito que garante a democracia. Sem Direito, não há democracia. Óbvio isso,
pois não? Deus é tão treteiro...
Esqueça
que o errado é errado e o tempo faz com que ele pareça certo aos olhos de todo
mundo. Mas só vai parecer. O errado continua errado.
Porque
na verdade, na verdade mesmo — e verdades existem —, assassinato é assassinato,
golpe é golpe, inconstitucionalidade é inconstitucionalidade,
constitucionalidade é constitucionalidade, empregado é empregado. Toga é toga,
jipe é jipe.
E
o Supremo, que deve ser contramajoritário? Esse pode acabar virando plebiscitário.
Só depende dele próprio, e depende de nós, do respeito que temos por nós
próprios e do apreço que temos pela democracia.
Disse!
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-abr-11/senso-incomum-supremo-nao-salvar-mundo-basta-respeitar-direito
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